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Celso de Mello se despede do STF cobrando que Bolsonaro seja tratado como um “igual perante o Estado”

Em sua última sessão, decano defende que presidente preste depoimento presencial no caso que investiga interferência na PF. Nos bastidores, ministro sinalizam que autorizarão fala por escrito

O ministro Celso de Mello, em 2019.
O ministro Celso de Mello, em 2019.Carlos Moura / SCO/ STF

Em sua última sessão no Supremo Tribunal Federal, o decano da Corte, Celso de Mello, voltou a defender que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem de prestar depoimento presencialmente no inquérito em que é investigado por interferir politicamente na Polícia Federal. Ele ressaltou que ninguém está acima da lei e da Constituição Federal e que o presidente só poderia depor por escrito, como ele pretendia, caso fosse testemunha ou vítima do processo. Também poderia fazê-lo se fosse surdo ou surdo-mudo.

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Após duas horas e dez de leitura do voto, a sessão do STF foi encerrada pelo presidente da Corte, Luiz Fux. Ele queria que a última palavra do dia fosse de Mello. Era uma espécie de homenagem ao decano, que se aposenta no próximo dia 13. Os outros dez ministros precisam votar no caso. A nova data para a análise do processo não foi agendada.

Mais informações
O vice-presidente da Corte é o também ministro do STF, Luiz Fux, indicado para a Suprema Corte brasileira por Dilma Rousseff, em 2011. Foi um dos juízes mais duros com os petistas no mensalão. Durante o julgamento no TSE, mostrou-se mais alinhado com o relator Herman Benjamin, que se contrapõe a Gilmar Mendes.
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Nos bastidores do Supremo há a sinalização de que os ministros deverão, em sua maioria, discordar de Celso de Mello e autorizar que Bolsonaro deponha por escrito. E, para que o magistrado que serviu ao STF por 31 anos não terminasse seus trabalhos com uma derrota em plenário, houve uma espécie de acordo para que a sessão fosse encerrada de maneira célere. O movimento ocorre em um momento que Bolsonaro tem se aproximado de ministros da Corte, como José Antônio Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Na semana passada, o mandatário esteve com ambos para apresentar sua indicação para substituir Celso de Mello, o desembargador Kássio Nunes Marques.

Os demais ministros deverão embasar seus votos na prerrogativa dada a Michel Temer (MDB) que, quando presidente, foi autorizado a depor por escrito. O ano era de 2017 e o então mandatário era investigado pela prática dos crimes de corrupção passiva, embaraço à investigação da Operação Lava Jato e organização criminosa. O relator de Temer, Edson Fachin, autorizou que os questionamentos da Polícia Federal e as respostas do presidente fossem feitos por escrito.

Em seu voto nesta quinta-feira, Celso de Mello ressaltou que não era possível prescindir da oralidade em um processo penal. “A ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental, de igualdade de todos perante as leis do Estado (...) Ninguém, absolutamente ninguém está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado brasileiro”, disse.

Mello ainda enviou alguns recados indiretos durante a leitura de seu voto. Citou que outros chefes de Estado ou de Governo, prestaram depoimentos pessoalmente quando investigados por delitos cometidos em seus países durante suas administrações. Tratou nominalmente do norte-americano Bill Clinton, do israelense Benjamin Netanyahu e do italiano Silvio Berlusconi. Citou ainda a obra distópica A Revolução dos Bichos, de George Orwell, para dizer que não era possível tratar os cidadãos de maneiras distintas. No livro, essa diferenciação é feita no trecho em que o autor afirma que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. No romance, Orwell faz uma alusão à revolução russa. As autoridades da fazenda imaginária descritas pelo autor são representadas por porcos.

Dos outros dez ministros, ao menos mais um já demonstrou que concorda com a tese de que o presidente pode depor por escrito, o ministro Marco Aurélio Mello. No mês passado, durante uma licença médica de Celso de Mello, Marco Aurélio adiantou o seu voto no caso afirmando que estava de acordo com os questionamentos da Advocacia Geral da União, que pedia autorização para o presidente responder aos questionamentos dos investigadores da Polícia Federal por escrito.

O inquérito contra o presidente surgiu após a saída do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça, em abril. Na ocasião, o ex-ministro alegou que estava deixando o cargo porque não concordava que o presidente estivesse trocando a chefia da Polícia Federal por interesses pessoais, sem que houvesse razões profissionais para fazê-lo. Afirmou que Bolsonaro queria indicar um novo diretor-geral da PF para que pudesse ter acesso a informações sigilosas e relatórios de inteligência.

Desde então, Moro e Bolsonaro passaram a ser investigados pela PF em um inquérito autorizado pelo Supremo. Ao presidente foram atribuídos como passíveis de investigação os supostos delitos de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça e corrupção passiva privilegiada. Enquanto que ao ex-ministro os crimes de denunciação caluniosa, crime contra a honra e prevaricação. Moro já prestou depoimento no caso. Falou diretamente aos policiais envolvidos na apuração. Para Celso de Mello, caso sua tese seja acatada, o ex-ministro poderia assistir ao depoimento presencial de Bolsonaro e fazer indagações por meio de seus advogados, caso queira.

Ainda não está claro quem vai ficar com a relatoria desse processo específico, que atualmente está com Celso de Mello. O substituto de um ministro do STF costuma herdar todos os processos de quem sai. Mas, como Kássio Nunes Marques foi indicado por Bolsonaro, há uma tentativa dentro do Supremo de que o provável futuro ministro não tenha que julgar uma ação de interesse direto do presidente. Nunes Marques também pode se declarar impedido de pegar não apenas este caso, como outro processo nas mãos do decano, o que o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, pede que a investigação contra ele por supostos desvio de recursos de antigos assessores de seu gabinete ―a rachadinha―, seja julgada por um tribuna colegiado, não por um juiz de primeira instância.

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