Ativistas ofuscam oposição em ações para conter os ataques antidemocráticos de Bolsonaro
Grupos como Coalizão Negra por Direitos e coletivos de juristas buscam unidade em defesa de garantias constitucionais para evitar retrocessos como na Hungria e Polônia
O mundo celebrou neste 15 de setembro o Dia Internacional da Democracia num momento em que as credenciais democráticas do Governo brasileiro perderam o respeito. Se por um lado o presidente ultradireitista Jair Bolsonaro investe contra conquistas que pareciam consolidadas, diversos grupos da sociedade civil se organizam ou ganham força num ecossistema que mostra resistência mais palpável que os adversários políticos do Governo. São esses movimentos que se colocam como principal muro de contenção do bolsonarismo, atuando principalmente na defesa de direitos e garantias constitucionais. “Existe um risco de a democracia se deteriorar no Brasil, e esse risco vem sendo contido principalmente pela sociedade civil, com atuação no Judiciário, no Congresso, na arena internacional. Muito mais que pela oposição política, que está focada em pequenas disputas eleitorais”, argumenta o advogado Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundations para a América Latina e Caribe.
Na arena internacional, as ONGs Conectas e Justiça Global, que atuam na defesa dos Direitos Humanos, estão entre as mais articuladas dentro de organizações internacionais como a própria ONU. Com atuação anterior ao Governo Bolsonaro, possuem acesso a reuniões internacionais e conseguem influenciar diretamente nos relatórios em que se questiona o Governo brasileiro. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua na defesa dos direitos dos povos indígenas, é tido como outro ator importante nos fóruns internacionais. Uma das novidades do atual momento é que essas e outras entidades vêm se unindo e assinando em conjunto comunicados, ações e denúncias contra Bolsonaro.
Outra novidade é a formação, no início do Governo Bolsonaro, da Coalizão Negra por Direitos, que reúne 150 entidades do movimento negro e deu novo impulso na luta antirracista no Brasil. Além de campanhas que denunciam a matança da população negra, a coalizão já denunciou Bolsonaro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e apresentou uma notícia crime no Supremo por sua gestão da pandemia de coronavírus. “Chamamos essa estratégia de litígio estratégico, que consiste em mobilizar esse aparato jurídico para que mudanças políticas aconteçam", explicou ao EL PAÍS a jornalista Bianca Santana. O grupo também levou ao Congresso, em 12 de agosto, o 56º pedido de impeachment contra Bolsonaro. Com o apoio de outras 600 entidades, denunciou a política negligente do Governo Federal contra a pandemia de coronavírus.
O Governo Bolsonaro também fez surgir a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, que reúne figuras do mundo político, juristas, acadêmicos e intelectuais. Junto com o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), formado em 2013, acusou Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio contra povos indígenas, em novembro do ano passado. Por sua vez, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, surgida em 2018, comunicou ao TPI que Bolsonaro contrariou as recomendações da comunidade científica na pandemia e boicotou o isolamento social. O tribunal suspendeu temporariamente na segunda-feira esta última denúncia, argumentando que irá esperar novos fatos.
O TPI poderia condenar o próprio Bolsonaro caso entenda que ele cometeu um crime contra a humanidade, mas alguns juristas ainda se mostram céticos com relação a essa possibilidade. Já os comitês da ONU e da OEA podem condenar o Estado brasileiro, como já ocorreu em ações referentes aos crimes da ditadura militar. Até o momento, relatórios de entidades internacionais vem mostrando suas preocupações com a deterioração institucional brasileira.
No âmbito da segurança pública estão grupos como o Instituto Igarapé, Instituto Sou da Paz, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública ou, em plano mais local, a Redes da Maré. Esta última, que possui uma atuação de anos no Complexo de Favelas da Maré, foi uma das entidades que acionou a Justiça para impedir o uso de helicópteros em operações policiais. Mais recentemente também conseguiu, em união com várias outras organizações, que o Supremo proibisse operações policiais nas favelas durante a pandemia de coronavírus.
Já o Projeto Liberdade, coletivo de advogados que defende gratuitamente as pessoas que têm os direitos fundamentais violados, atuou, por exemplo, na defesa dos brigadistas de uma ONG que foram presos no Pará, acusados de causar incêndios na floresta amazônica. Neste ano ainda surgiu o Instituto Nacional de Defesa da População Negra, outro grupo de juristas que oferece assistência gratuita para as pessoas que tiveram seus direitos violados assim como trabalha na formação de novos profissionais que pretendem atuar na área criminal.
“Existe no Brasil uma resistência muito mais forte que na Hungria e na Polônia [também governados pela extrema direita]. Nosso caso é mais parecido ao dos Estados Unidos, onde a sociedade civil foi para a Suprema Corte barrar medidas de Trump que eram claramente inconstitucionais”, explica Abramovay. Para ele, a sociedade civil também tem tido um papel importante na promoção de uma agenda positiva, como no caso da implementação de uma renda básica emergencial durante a pandemia. A agenda, abraçada pela classe política no Congresso vem sendo impulsionada pela Rede Brasileira de Renda Básica. “Mesmo as ações no Supremo assinadas por partidos políticos foram feitas por alguma coalizão de organizações da sociedade civil. São elas que vêm acionando Judiciário e Congresso”.
Transparência nos dados
O advogado também destaca que as entidades da sociedade civil vêm se empenhando em produzir dados, enquanto o Governo muitas vezes tenta escondê-los. “Estão também no debate público apontando, criticando, colocando outras soluções... Em várias ocasiões o Governo recuou depois de reações da sociedade civil”, explica Abramovay. “Há uma chance de Bolsonaro ser reeleito porque a oposição que está sendo feita não é eleitoral, é de proteção da democracia e da Constituição.”
A antropóloga Isabela Kalil, que estuda o fenômeno do bolsonarismo, explica que o papel desses grupos e da classe política são diferentes. Mas aponta para um rol fundamental da sociedade civil na oposição ao bolsonarismo: “Determinados movimentos e formas de resistência já denunciam o conservadorismo antes de Bolsonaro. Para determinados grupos ligados ao movimento feminista, LGBT, a pautas raciais e indígenas, Bolsonaro já é um velho conhecido”, argumenta. “Enquanto que para a política institucional Bolsonaro é uma novidade, esses grupos já estavam envolvidos em embates, sobretudo no campo da educação e dos direitos humanos. As forças que Bolsonaro representa, como grupo religiosos e antidireitos, já são conhecidos desde 2010 e 2011. Um exemplo foi a discussão em torno do kit anti-homofobia, apelidado de kit gay. Então, esses grupos já vêm alentando um risco que essas forças representam já faz uma década”.
Kalil também aponta que “grupos antifascistas já vinham fazendo um embate no espaço público contra grupos neofascistas e extremamente homofóbicos”. Aponta, contudo, que atuação desses diversos grupos em frentes e redes, conectando temas como ambientalismo e desigualdade, é outra das grandes novidades do momento. “Considero um grande avanço, é uma combinação muito produtiva”.
Apesar do muro de contenção erguido pela sociedade civil, Bolsonaro vem utilizando decretos e portarias para reduzir mecanismos de controle e retroceder em algumas áreas, segundo constatou Juana Kweitel, diretora-executiva da Conectas, em entrevista ao EL PAÍS. Ela também citou o desmantelamento de órgãos de fiscalização na área ambiental, assim como a redução de verbas para o combate ao trabalho escravo ou a limitação da participação no comitê da prevenção da tortura. “Você mantém a casca, para parecer que existem, mas por dentro não tem mais nada”, argumentou.
Por outro lado, enquanto esse setor organizado da sociedade civil trabalha para conter o bolsonarismo, outra fatia fortalece a popularidade ao presidente. Depois de ter costurado um acordo com o Centrão e aumentado sua base de apoio dentro do Congresso, o Planalto pretende agora fazer uma nova investida no campo dos costumes e aprovar leis sobre educação familiar, porte de armas e leis de trânsito. “Os atos do Governo estão orientados a transformar em legal o que era ilegal”, afirmou Kweitel.
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