Parem de culpar as cidades densas pela covid-19
Se a realidade aponta que a densidade urbana não é causa central das infecções, ela também mostra como moradias de baixa qualidade, superlotadas, com muitas pessoas morando em um mesmo cômodo, se tornam proliferadoras da doença
Diante da necessidade de distanciamento social imposta pela covid-19, cresceu o conceito equivocado de que a densidade das cidades era, de alguma maneira, culpada pela disseminação do novo coronavírus.
Mas uma análise mais detalhada dos dados mostram que não é bem assim. Algumas das cidades mais densas do mundo, como Hong Kong, apresentaram relativamente poucas infecções, enquanto Xinyang e Wenzhou na China, enfrentaram taxas mais altas da doença.
Além disso, o vírus não poupou áreas rurais nem comunidades indígenas do Brasil e dos países vizinhos. E mesmo dentro de Nova York, os números altos de casos não estão nas áreas mais densas (Manhattan), mas nos bairros de baixa densidade com casas superlotadas, como Bronx.
É esse último exemplo que dá pistas do debate que nossas cidades deveriam iniciar agora. Se a realidade aponta que a densidade urbana não é causa central das infecções, ela também nos mostra como moradias de baixa qualidade, superlotadas, com muitas pessoas morando em um mesmo cômodo, se tornam proliferadoras da doença. É o caso das favelas brasileiras, de um arranha-céu na Coreia do Sul ou em um prédio de apartamentos no Bronx.
Densidade pode ser inteligente
Pandemias como essa trazem a oportunidade de as cidades se repensarem e melhorarem. Foi o que aconteceu em Paris, que construiu seu sistema de esgoto depois do surto de cólera no século 19, por exemplo.
Da mesma forma, agora, as cidades de todo o mundo, incluindo as nossas, deveriam examinar mais de perto as características que realmente colocam seus moradores sob risco de contrair uma doença.
A crise habitacional, por exemplo, direcionou o Brasil para uma generalização das moradias superlotadas. Além disso, indivíduos nessas comunidades ―com frequência trabalhadores essenciais― precisam viajar longas distâncias até o trabalho, em linhas de transporte lotadas, o que aumenta a exposição a doenças contagiosas. Também a falta de acesso aos serviços de saúde significa que esses indivíduos em alguns casos não são diagnosticados ou não recebem o adequado tratamento.
Contradizendo o senso comum, grande parte desses riscos poderia ser mitigado, vejamos bem, justamente com o adensamento inteligente das cidades. E uma tendência em urbanismo emerge nesse sentido: o Desenvolvimento Orientado ao Transporte (DOT). É um conceito que propõe, de uma só vez, enfrentar as questões relacionadas não só à moradia, mas ao acesso a serviços básicos, como escola, lazer e saúde. Para isso, propõe o adensamento residencial e de estruturas públicas em torno de polos de transporte.
Cidades com vários centros
Algumas mudanças trazidas pelo distanciamento social e pelo home office em meio à covid-19 podem constituir oportunidades para avançar em relação ao DOT. Muitas empresas estão considerando desocupar os centros, e isso deverá resultar em espaços vazios em áreas bem servidas por transporte público. Seria também a chance para as cidades ampliarem, em zonas privilegiadas em relação a serviços públicos, a presença de residências ―inclusive de interesse social. Essa transformação, por sua vez, ajudaria a reduzir a superlotação residencial, a enfrentar o déficit habitacional e ainda aumentaria a resiliência contra surtos de covid-19 ou outras doenças contagiosas.
Outra tendência que favorece a mudança no uso do espaço urbano é o de muitas empresas quererem, no futuro próximo, instalar seus escritórios em áreas menos densas ―uma tendência que coincide com a de muitas pessoas querendo casas com mais espaço verde, fora dos grandes centros.
É provável que o resultado seja um modelo policêntrico com novos nódulos de atividades, além do núcleo central da cidade. Mais núcleos de uso misto naturalmente estimulam a densidade inteligente e criam uma oportunidade única para as cidades avançarem de acordo com os princípios do DOT. Afinal, é sempre mais fácil fazer desenvolvimento urbano ordenado antes de as cidades crescerem. Ao mesmo tempo, também pode-se expandir a infraestrutura regional de transporte ou o zoneamento estratégico para a densificação em torno dos nós de transporte existentes. Isso, por sua vez, ajuda na redução de distâncias exigidas para o deslocamento e no acesso a uma ampla variedade de equipamentos e recursos, incluindo serviços de saúde.
Como bancar essa revolução?
Em meio a situações fiscais agravadas pela pandemia, surge o desafio de custear melhorias urbanas.
Mas mesmo com investimento público limitado, os municípios têm o potencial de instigar mudanças por meio de políticas públicas. É preciso aproveitar as oportunidades de “redesenvolvimento” e de alterações de zoneamento que o esvaziamento de escritórios traz. Exemplos de sucesso nesse sentido vêm de cidades como Holanda, Toronto, Nova York (Lower Manhattan Revitalization Plan), Wellington, e Washington, D.C.
Não há respostas prontas, e novos desafios invariavelmente exigem novos métodos. Resta saber estimular o redesenvolvimento necessário, ou se a inovação completa será a saída.
Jason Hobbs é planificador urbano com 17 anos de experiência em desenvolvimento sustentável na América Latina e no Caribe.
Renata Seabra é arquiteta e urbanista atuante em Planejamento e Desenvolvimento Urbano para organismos internacionais e setor privado.
Anne Hudson é pesquisadora do Laboratório de Mobilidade Urbana do MIT.
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