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Excelência em vacinas, SUS e voluntários tornam Brasil laboratório mundial da corrida contra o coronavírus

Quatro empresas realizam testes clínicos no país, onde pandemia já matou 114.000. Boa rede de distribuição e milhares de interessados em participar de estudos são fatores de atração

Naiara Galarraga Gortázar
Voluntário recebe em São Paulo a vacina desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac.
Voluntário recebe em São Paulo a vacina desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac.Sebastiao Moreira (EFE)
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Ainda que o coronavírus comece a dar um pequeno sinal de que os contágios no Brasil se multiplicam em menor velocidade, ainda causa por dia 1.000 mortes e por volta de 50.000 contágios. Como costumam lembrar alguns divulgadores científicos, é como se a cada 24 horas caíssem três aviões cheios de brasileiros. Mas a virulência do surto, o segundo pior do mundo após os Estados Unidos, tem outro efeito. É um dos fatores que transformaram o Brasil em um atrativo laboratório para os cientistas e empresas envolvidos na frenética corrida para conseguir uma vacina da covid-19. Quatro delas estão sendo testadas nesse país de território continental e 210 milhões de habitantes.

A constante sabotagem do presidente Jair Bolsonaro aos esforços iniciais dos governadores para tentar conter o vírus causou uma crise sanitária em que os Estados há tempos deixaram de agir de maneira coordenada. O resultado são 114.000 mortos e mais de 3,5 milhões de infectados desde a detecção do primeiro caso, logo após o Carnaval. São números expressivos, ainda que a ausência de testes maciços à população indique que a subnotificação é enorme. Com os números oficiais, a taxa de falecidos é menor do que a de vários países da região e europeus.

Demanda

O país é um banco de testes muito procurado porque, além do vírus há meses estar em rápida expansão, tem um consolidado e extenso programa de vacina nacional, prestigiosos institutos de pesquisa biomédica e conseguiu milhares de voluntários dispostos a receber a vacina (e placebo). O Brasil tem capacidade de produzir 500 milhões de doses de vacinas por ano.

Um milhão de pessoas se inscreveu na Internet para o recrutamento de voluntários, mesmo que nem todos cumprissem os critérios exigidos. É imprescindível ser trabalhador da área da saúde que trabalha diretamente com doentes de covid-19 e que não tenham se infectado nesses meses. Mas o número de inscritos dá ideia do nível de entusiasmo.

Nessa semana foi anunciado o acordo para testar aqui uma quarta vacina experimental, a desenvolvida pela Janssen, a farmacêutica da Johnson & Johnson, com 7.000 voluntários que serão recrutados por duas dezenas de centros de pesquisa espalhados por vários Estados. Essa iniciativa se soma aos testes clínicos que já estão sendo feitos: o da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e a empresa AstraZeneca, que está na última fase de teste com 5.000 voluntários no Brasil, e o da farmacêutica chinesa Sinovac, com 9.000 pessoas. Os dois estão sendo realizados em diversos pontos de um território que tem o dobro da extensão da União Europeia e onde o vírus avança em velocidades diferentes. Uma quarta vacina, elaborada pela Pfizer, será testada em mil profissionais sanitários na Bahia.

A infectologista Nancy Bellei detalha os motivos pelos quais o Brasil é um bom laboratório. Melhor, por exemplo, do que os Estados Unidos. “Somos um país que tem um dos melhores programas de vacinação do mundo, a imunização é muito aceita pela população. Além disso, temos experiência tanto em colaborações público-privadas para produzi-las, como em transferência de tecnologia e na elaboração de testes clínicos”, enumera a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que está envolvida no teste de Oxford. Diz que faz parte do grupo de médicos encarregados de testar os voluntários que ficam doentes após receber a vacina experimental contra a covid-19 (e que a usam como placebo, nesse caso a da meningite).

A rivalidade política e científica também explica por que o Brasil recebe quatro testes clínicos sem que se descarte que possa receber vários outros. Governantes e cientistas, todos querem ter o seu. De modo que, paralelamente à corrida entre países para ser o primeiro a encontrar, comercializar e distribuir a vacina, dentro do próprio Brasil se desatou uma corrida da qual participam políticos, por um lado, e os principais centros de pesquisa, do outro.

Como pano de fundo, o confronto entre Bolsonaro e governadores como os de São Paulo e Bahia sobre qual é a forma mais eficaz de gerir a doença (e suas consequências econômicas); e a rivalidade entre duas instituições científicas fundadas no começo do século XX: o Instituto Butantã, dependente do Governo estadual de São Paulo e fabricante da maioria das vacinas brasileiras , e a fundação Fiocruz, com sede no Rio de Janeiro e ligada ao Executivo Federal.

A especialista Bellei aponta dois outros motivos que em sua opinião pesaram para escolher o Brasil, que tem um bom sistema de distribuição de vacinas, que chegam aos rincões mais remotos, e que não faltam voluntários em participar dos testes. “Há fila de espera para ser voluntário”, diz a infectologista antes de lembrar que “quando surgiu a epidemia de H1N1 (gripe A) as pessoas faziam fila de madrugada para receber a vacina”. Os movimentos antivacinas também chegaram ao Brasil, mas aqui não são tão fortes como em países como os Estados Unidos.  

Descoordenada gestão política

A descoordenada gestão política da crise sanitária causada pelo coronavírus é uma catástrofe para muitos dos profissionais do Sistema Único de Saúde, a maior rede de saúde pública do mundo, envolvida na batalha contra o zika, a febre amarela, a dengue e a AIDS.

“Se tudo der certo, no Brasil teremos vacina para os grupos prioritários no primeiro trimestre de 2021”, diz Ricardo Palacios, diretor médico de pesquisa clínica do Instituto Butantã, em uma entrevista à edição brasileira do EL PAÍS. “Antes do final do ano deveremos ter algum estudo preliminar eficaz. O que é absolutamente incrível levando em consideração que ficamos sabendo da existência do novo coronavírus nos últimos dias de 2019. É algo inédito e isso demonstra que a coordenação global de cientistas está funcionando”, destaca o pesquisador.

Acordos de preferência com farmacêuticas

Os acordos assinados pelas autoridades brasileiras lhes dão preferência. As empresas se comprometeram a vender-lhes dezenas de milhões de doses de suas vacinas. O compromisso com a Sinovac obriga o Instituto Butantã, que depende do Governo estadual de São Paulo, a investir 16 milhões de dólares (89 milhões de reais) na pesquisa. Em troca, receberá doses suficientes para vacinar 60 milhões de pessoas, uma quantidade muito superior à sua população.

O do Governo federal com a AstraZeneca implica o desembolso de 100 milhões de dólares (558 milhões de reais) em troca de 30 milhões de doses mesmo se os testes fracassarem. Se forem bem-sucedidos e conseguirem uma imunização eficaz, o Governo de Bolsonaro terá prioridade para comprar mais 70 milhões de doses. Números insuficientes para vacinar toda a população do país.

No começo de agosto, Bolsonaro anunciou que o Governo brasileiro reservou 1,9 bilhão de reais para processar e produzir a vacina de Oxford.

O Brasil finalmente recebeu a primeira boa notícia desde o início da pandemia. O último relatório do Imperial College de Londres sobre a velocidade do contágio o coloca abaixo de 1, o que significa que cada infectado transmite a doença a menos de uma pessoa, ou seja, seu avanço diminui de velocidade. As regiões que mais preocupam são o Sul e o Centro-Oeste, com quatro Estados onde as mortes duplicaram no último mês. Mas a situação se estabilizou nos Estados mais populosos, São Paulo e Rio de Janeiro, onde a normalidade avança, a movimentação volta e as empresas e os comércios reabrem com algumas limitações. Escolas e museus continuam fechados. O panorama também melhorou no Norte e Nordeste, as regiões em que o coronavírus causou proporcionalmente mais estragos porque a rede sanitária é muito mais frágil. Em lugares como Manaus tanto os hospitais como a rede funerária entraram em colapso.

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