“O que vocês veem no ‘RuPaul’s Drag Race’ a gente via em São Paulo nos anos 80”
O EL PAÍS acompanhou os preparativos do concurso que nasceu na periferia paulistana muito antes do comandado por RuPaul. Pela primeira vez, uma mulher cis participou. A grande vencedora desfila neste domingo na parada
“Quem aqui vai participar do concurso?”, pergunta um jovem esguio, de camiseta branca e cabelos loiros curtos, que está sentado com uma peruca sintética verde no colo. Está cercado por dez pessoas em uma sala abafada do subsolo do prédio público. Meia dúzia de dedos de unhas feitas se levantam.
É tarde de domingo, 2 de junho, e faz menos de 48 horas que RuPaul coroou a ganhadora da décima primeira temporada do seu concurso televisivo de drag queens nos Estados Unidos, e no Centro Cultural da Juventude, na periferia de São Paulo, uma competição está prestes a começar. O Drag Contest nasceu antes do reality show americano que virou um dos programas mais assistidos do mundo. E começou longe das câmeras, no Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoeirinha. O bairro, na zona norte de São Paulo, tem um dos maiores índices de violência da cidade e nenhuma sala de cinema.
A distância entre Hollywood e o concurso pode também ser medida pelos prêmios. A vencedora de RuPaul’s Drag Race leva 100.000 dólares (cerca de 400.000 reais), mais fama mundial. A ganhadora do Drag Contest leva 1.000 reais, uma coroa de strass e o direito de se apresentar na feira da Parada LGBT de São Paulo. A grande vencedora também desfila no trio-elétrico oficial do evento, que acontece neste domingo e reúne milhares de pessoas na avenida Paulista.
Só pode participar do concurso quem for a pelo menos duas das quatro aulas que precedem o show de talentos. No dia anterior, um sábado, havia acontecido a primeira aula, sobre saúde. Uma drag queen que convive com o HIV há décadas contou sua história. Uma candidata narrou a vez que ela e as amigas começaram a ser perseguidas por um grupo de homofóbicos. “Eu dei minha bolsa para minha amiga levar para a boate. Tirei o sapato, peguei um toco de madeira que estava no chão e corri atrás deles. Foi meio tenso, mas bem engraçado.”
De volta à sala do subsolo, o jovem magro, que parece um menino espichado, é na verdade um professor. E não só isso. Ele é Musa Voncarter, uma drag queen que ficou famosa na noite paulistana por seus looks —um dos mais memoráveis foi quando incorporou as drags do FBI protagonistas da comédia de 2004 As Branquelas.
"Peruca é paciência. Passa a escova de baixo para cima. Depois alisa o cabelo todo com chapinha."
Voncarter está demonstrando para a classe como fazer penteados em perucas e maquiagem. Dá dicas de como economizar na maquiagem: usa leite de magnésio no lugar do primer e amido de milho em vez de pó translúcido. “O pó da Vult custa 30 reais. Quando o meu terminou, coloquei Maizena dentro e nunca mais comprei outro”, ensina o professor. No andar de cima está acontecendo um concurso de hip-hop. A música faz as divisórias que delimitam a sala tremer.
Um competidor diz que transpira muito perto dos olhos. E que descobriu um truque para evitar que o suor leve a maquiagem embora: passar base de unha em cima da sobrancelha: “Na hora de tirar queima que é um incêndio, mas é a única coisa que funciona.” A classe ri.
Um aluno levanta a mão: “Você chega a lavar a peruca?” O professor responde. “Lavo. Eu tomo banho com ela. Uso shampoo, condicionador, leave in. Se estou com pressa, eu seco com secador. Se não estou, ponho no varal.”
Enquanto prepara a maquiagem no próprio rosto, o professor pede que os alunos se apresentem e falem um pouco da sua história como drag. Um dos primeiros a levantar a mão é um homem rechonchudo que usa um boné com a estampa “Fé”. Ele se apresenta: é o cabeleireiro André Lima, que criou a personagem Audrey Top. É um veterano da competição, aos 32 anos. O concurso, ele conta, foi onde encontrou segurança para se montar. Desde 2014, ele já participou quatro vezes.
“Na boate é outro esquema. Falavam: ‘Olha o seu corpo, você não tem corpo pra isso!” André tem 89 quilos distribuídos por 1,79 m. “Também me cobravam que eu fizesse bate-cabelo.” Bate-cabelo é um estilo de dança em que a drag balança a cabeça ao ritmo da música. O movimento vai evolui em todas as direções, como um helicóptero: tudo para mostrar que seu cabelo é natural (ou que a peruca está bem fixada).
Por se sentir desajustado, André ficou anos sem se montar. Voltou a criar números de dança e dublagem, mas não pensa em ser drag profissional. Prefere tirar o sustento no salão de beleza e colocar a peruca só por hobby, quando consegue. “Para viver de drag é 24 horas correndo atrás das coisas. Eu não consigo. Nunca fui de virar a noite em boate.”
Enquanto isso, o professor ensina como usar cola em bastão para esconder as sobrancelhas, e depois desenhar outras, mais altas e finas, por cima. Voncarter mostra uma cola roxa. “Essa é a Elbers, que infelizmente não tem no Brasil, então Pritt serve mesmo.” Seguem as apresentações.
Há uma mulher cisgênero (identificada como mulher desde o nascimento). Ela levanta a mão para se apresentar. “Eu sou Elis Pessotti. Tenho 42 anos, faço dança há 20 anos. Fiz contemporâneo, pole dance. Estou agora entrando nesse universo maravilhoso de drag. Faço cosplay da Elsa, do Frozen. Mas gosto de fazer uma Branca de Neve bem drag, abastecendo o carro no posto”. A sala ri.
Elis tem um corpo torneado de bailarina e um rosto que, talvez por sugestão do nome, lembra o de Elis Regina. Em 2018, ela estava na plateia do Drag Contest. E em 2019 pretendia ver o show sentada também. Mas seus planos estão prestes a mudar. Penélope, a funcionária do CCJ que acompanha a aula, pergunta se Elis vai participar da competição: “Seu nome já está aqui na lista.” “Sim, porque eu vim fazer a oficina.”Não, você pode participar do concurso, se quiser. Está no regulamento deste ano. Pode mulher.” Ela será a primeira mulher cis a participar do concurso de drag queens.
Drag de classe média
No sábado seguinte, 8 de junho, a aula é de história. Não do tipo que Planalto acha que deve no vestibular: história do movimento LGBTQ e histórias de vida de drag queens. A começar pela história do concurso: o Drag Contest foi bolado por uma funcionária do Centro Cultural da Juventude, que via seus amigos LGBTQs sofrerem com o preconceito e com a distância das boates em que se concentram as apresentações de drag queens, no centro da cidade. O concurso nasceu na gestão Gilberto Kassab (então DEM), e sobreviveu aos governos Fernando Haddad (PT), João Doria (PSDB) e, neste ano, Bruno Covas (PSDB).
Uma das professoras da aula de história é Alexia Twister. Com 22 anos de drag, Twister foi jurada na primeira edição do concurso e lembra que a atriz Glamour Garcia, que está na novela das nove, A Dona do Pedaço, também concorreu no concurso e não levou. "Eu também nunca ganhei nada. Esse concurso é um lugar muito legal para você mostrar o seu trabalho”, diz a professora.
O que aconteceu na sala foi mais um bate-papo do que uma aula, diz Twister. "Acabou sendo muito mais história delas. A maioria só se apresentou e contou a história da drag. O que me toca muito é que, depois de 22 anos,fazendo show, as meninas de hoje têm muito apreço por quem veio antes.”
Stefany Katz se apresenta e conta como nasceu o personagem que encarna. “Eu comecei obrigada.” Anos, atrás, trabalhava no Burger King e tinha um colega que se montava e insistiu que ela dava para a coisa. “Eu lembro a primeira vez que eu me montei. Coloquei um vestido verde e fui para (a boate) Tunnel e as pessoas me chamavam de alfação. E me chamavam de macho também, porque meu salto tinha seis centímetros e eu não sabia andar”, ela ri. Uma amiga que o acompanha se levanta e encena como ele andava: pernas arqueadas e braços jogados ao longo do corpo, que nem um chimpanzé.
Num momento, a sala passa a debater a explosão da arte drag na cultura pop. A ascensão de artistas drag como Pabllo Vittar e Gloria Groove acontece no mesmo momento em que os shows rareiam, diz Alexia. "A gente tem tido visibilidade no meio hétero, mas menos trabalho. A gente viajava muito, trabalhava muito mais. Dificilmente alguém vai pagar um cachê de viagem para uma drag de classe média, tipo eu.”
Muitas das competidoras se espelham nas artistas que conhecem no programa de RuPaul. E ficam surpresas com as drag queens que encontram na noite de São Paulo. Positivamente surpresas. “É o que a gente falou, as americanas são lindas, maravilhosas. A diferença delas para nós é o filtro que tem na TV. Quando você vê de perto é a mesma maquiagem, a mesma roupa”, diz Twister. “Só falta a mesma oportunidade.”
No domingo, dia 9 de junho, a aula é de dança. São 14h quando os alunos começam a chegar ao teatro, onde vai ser a aula e também a competição da semana seguinte. Um homem desce de uma moto. Tem cabelo raspado na máquina, barba castanha por fazer e o braço completamente coberto por uma tatuagem preta. “Quem é o boyzão? Namorado de alguém?”, pergunta um concorrente, quando ele passa, carregando o capacete na mão. O boyzão é Ramon Oliveira, que se apresenta com o nome de Lavynia Storm, uma drag sensual com toques góticos.
Elis chega para a aula. Diz que ainda está em dúvida se vai criar um nome de drag. “Então, eu ainda não tenho nome. Acho que vou me apresentar como Elis Pessotti mesmo. Eu gostaria muito de achar um personagem, mas acho que ainda não rolou.” É a primeira vez que uma mulher cis vai competir —anos atrás, uma participante tentou se inscrever, e pode se apresentar, mas não teve o direito de entrar no páreo. “Eu estou feliz. É uma arte muito inclusiva. A arte é de todos. É transcender.” Ela sente que transcende. “Quando eu sou drag não tenho problema, não tenho conta para pagar, não tenho boleto.”
André Lima, ou Audrey Top, está no tablado, suando em uma camiseta estampada com o rosto de Wanessa. Faz mais de um ano que não dubla uma música da filha de Zezé di Camargo, mas o amor por ela segue vivo. Quando ele ainda dublava músicas como Amor, Amor, foi a um show de Wanessa e teve a oportunidade de ficar cara a cara com a própria. “Ela me recebeu no camarim e disse que a minha roupa, que eu tinha copiado do figurino que ela usa num DVD, era mais brilhante que a dela”, lembra Lima. Grávida de nove meses, abençoou sua dupla drag.
André rebola no ritmo das palmas do professor e sabe de cor os passos que ele pede (“Depois de um cambré vem o quê?”, ele pergunta). É que Lima foi dançarino de axé e dançou em boates como o Cabral, no Tatuapé, antes de mudar o tipo de show.
“Toda drag tem um processo de criação. E eu gosto de entrar na minha vibe sozinha, escutar minha Rihanna.”
Quem dá as instruções é Jairo Azevedo, coreógrafo das drags mais famosas do país e da Blue Space, a casa noturna na zona oeste de São Paulo reconhecida por ter os shows mais elaborados do gênero. “Hoje, o que vocês veem no RuPaul’s Drag Race a gente via aqui em São Paulo na década de 1980”, diz Azevedo.
Enquanto o professor, um homem musculoso de regata, dita o ritmo da música com palmas, os alunos dançam contra a parede. No momento mais intenso, em que a coreografia pede que corram, caiam no chão e levantem-se em seguida, uma das participantes, Ashilley Prado, para e começa a arfar: “E o ar que não vem? Acabei de operar o nariz”.
Assim que terminam a coreografia —depois de duas horas e meia—, a turma é chamada para cima do palco por um homem de boné e barba branca. É Claudinei Hidalgo, diretor artístico da competição. Ele repassa as regras do concurso. “Cada um tem três minutos. Nem um segundo a mais. Sem balé. Não pode líquidos, pirofagia, nenhum tipo de papelzinho que vá atrapalhar a próxima.” Hidalgo explica como resolveram um problema recorrente: ninguém gosta de se apresentar primeiro. Portanto, há um sorteio. “E, se alguém chegar atrasado, é automaticamente a primeira”, avisa.
Claudinei aconselha que os candidatos fiquem calmos. “Não vai ganhar aquela que vai bater mais cabelo ou aquela com a melhor roupa. Aqui ganha aquela que agradar ao público e ao júri. Você não precisa fazer música de boate. Pode fazer um bolero, um samba, o que quiser. É um concurso que visa a descobrir talento, mas não só. Ele visa a tirar o melhor de dentro de cada artista.”
E é um concurso com um histórico de surpresas e de azarões. Em 2018, a vencedora foi Corona Boogie Oogie, uma drag queen praticamente recém-nascida. “Eu nunca tinha me apresentado em boate”, conta Corona. Ela participou do Miss Gloriosa, um concurso no Capão Redondo, um mês antes do Drag Contest. Venceu os dois. Desde então, se apresentou em boates como a Danger e dividiu camarim com seus ídolos, como Silvetty Montilla e Márcia Pantera. “Esse concurso mudou a minha vida.”
No palco, Claudinei continua dando instruções para os participantes: “Isso aqui não é uma competição. É pra você mostrar sua arte. Você pode trazer sua mãe, seu irmãozinho de cinco anos. O tio que vende pipoca aqui na frente vai estar aqui. Isso aqui é tirar a drag da boate e levar para o mundo.”
Todos batem palma e se abraçam. Claudinei encerra a última aula: “Até domingo que vem. Boa sorte.”
Dia da competição
Na manhã do dia da competição, 16 de junho, Édipo Ruan mal tem tempo para dar uma entrevista. Está na casa do seu namorado, em Santana, terminando de montar o figurino. Em uma mão tem o telefone celular. Na outra, um tubo de Pegamil, uma cola de silicone para artesanato. Está colando as pedrarias no body que vai usar debaixo de um vestido azul. Assim que terminar o vestido, ele vai começar a maquiagem, que leva mais de uma hora. Vai para o CCJ quando estiver pronto, por mais que haja camarins para ele se montar lá. “Toda drag tem um processo de criação. E eu gosto de entrar na minha vibe sozinha, escutar minha Rihanna.”
Seis anos atrás, quando se mudou de Pernambuco para São Paulo, Ruan nunca pensaria em se vestir com brilhos. “Eu não estava desconstruído. Achava que você podia ser gay, mas não precisava se vestir de mulher. E hoje me visto de mulher”, ele ri. Foi em um trabalho de atendente de telemarketing na avenida Paulista que começou a ter contato com uma nova realidade. “Minha supervisora era drag queen. Foi daí que eu comecei a entender, e a gostar.”
Da primeira vez que colocou uma peruca e um vestido, Ruan foi com os amigos para uma boate do centro. “As pessoas chegavam e diziam que eu estava linda. Aquilo foi incrível.” “Meu primeiro nome foi Amannda Collen. Meus amigos que deram. Mas não era um nome meu. Daí eu escolhi Meguitha, porque é mais eu. A Meguitha sou eu, é parte de mim. Ela está no processo de eu construir quem eu sou. Sou bicha, sou preta e sou nordestina.É mais do que um personagem.”
Faz quatro anos que Ruan participa da competição. “Eu já fico ansioso quando faço a inscrição. Fico pensando em música, coreografia. Eu preciso estar bem seguro do que estou fazendo, para conseguir passar firmeza para quem está assistindo.” Ele já tem duas faixas de princesa (segundo e terceiros lugares), mas só vai parar quando for coroado a rainha. Em 2018, Ruan foi desclassificado porque entrou no palco com bailarinos, o que era proibido. “Eu me senti muito mal, mas foi descuido meu. Eu tinha os regulamento em mãos e não li. Mas fui elogiado pelos jurados. É isso que conta”.
São 16h. Quando faltam duas horas para o concurso, desce de um carro 1.0 um vestido amarelo e uma peruca loira que pareciam não caber lá dentro. É Tchaka, a Rainha das Festas, uma drag veterana que é conhecida pelo bom humor, pela língua rápida e por ter conseguido conquistar um grande público —Tchaka anima chás de revelação a despedidas de solteiro de mulheres hétero. Entrevistada pelo Provocações, da TV Cultura, nesta semana, Tchaka será a apresentadora da Parada LGBT, na avenida Paulista, e é a mestre de cerimônias do concurso.
Meia hora depois, chega uma figura feminina de quase dois metros de altura, com cabelo castanho e um decote vertiginoso. É Márcia Pantera. Pantera foi uma das primeiras drag queens do Brasil a se definir por esse termo, em vez de “transformista”, um termo popularizado nos shows do SBT. Foi jogadora de vôlei e uma das criadoras do bate-cabelo. Atuou em filmes como Corpo Elétrico e foi musa do estilista Alexandre Herchcovitch na década de 1990, quando descia a rua Augusta em cima de um skate, de salto. Hoje, mora na Alemanha.
O salão do CCJ, composto pelo palco, 60 cadeiras de plástico e uma passarela no meio meio do público, começa a encher. Um participante chega de moto. Outro, de carona. Uma drag veio a pé, montada mas com um tênis de corrida no lugar do sapato de salto do figurino. Não é possível chamar um Uber na Vila Nova Cachoeirinha, por mais que o bairro fique a 12 quilômetros do centro, colado em bairros de classe média, como Santana. O aplicativo afirma que bloqueou seus motoristas de trabalhar ali por "desafios de segurança pública".
No segundo andar, em cima do palco, ficam os dois camarins. Um é para os jurados, outro para as competidoras, e eles são unidos por uma passarela. Márcia Pantera percorre o caminho entre os dois cômodos. Entra no camarim das competidoras, sem peruca ou figurino, só com um short cor de pele. “Alguém tem um óleo de corpo babadeirinho?” Cumprimenta uma por uma com um beijo. Pega na parte de trás da peruca de uma candidata que está agachada: “E esse cachorro perdido aqui, é de quem?”. Todas riem. Alguém joga para ela um frasco de óleo. Ela começa a espalhar o óleo nas pernas ali mesmo. Uma das maiores drag queens do país se prepara junto com as novatas que vai julgar.
Poucos minutos antes havia acontecido o sorteio que determinou a ordem das apresentações. Elis pegou o número 13, dos 16 candidatos que se inscreveram e compareceram. Já pronta, com três vestidos um em cima do outro, um turbante na cabeça e várias guias cruzando o torso, ela anda pelos bastidores do palco, para lá e para cá.
Às 18h, dez fileiras de cadeiras estão cheias. Há crianças. Há idosos. Mas há mais adolescentes do que qualquer outro grupo etário. Uma mãe da vizinhança veio com as duas filhas pequenas. Isabel, de sete anos, ama drags, ela explica.
O show começa. Tchaka apresenta os jurados e pede que a plateia seja justa. “Sem panelinha. Vocês não sabem como é bom ser aplaudido, ser reconhecido. Vamos apoiar as nossas artistas!”. Uma criança de cabelos crespos como a peruca de Marcia Pantera levanta e vai até ela. “É minha filha! É minha filha!”, diz a drag queen no microfone, e então pega a criança pela mão e a coloca em cima do palco, para as duas ficarem da mesma altura. Pantera ensina a menina a balançar o cabelo ao ritmo da música, e depois a convida para assistir às apresentações sentada ao seu lado. A mãe, na primeira fileira, sorri e tira fotos.
Muito talento
Começa o concurso, com uma surpresa. Regina Esparviero, de peito nu, bigode, piercing no septo e peruca rosa, não dubla. Canta com a própria voz Bang Bang (My Baby Shot Me Down), de Nancy Sinatra. Três minutos depois, Pyetra Haas entra com o corpo coberto por uma capa preta e um tecido ao redor do pescoço. Puxa o tecido para cima, como se estivesse se enforcando, e então tira a capa de uma vez. Começa a bater o cabelo ao som do bate-estaca.
Ashilley Prado toma o palco com uma roupa de paquita vermelha. Sua versão de Ilariê tem uma coreografia diferente: quando Xuxa canta “Dá um pulo e vai pra frente”, ela vira uma estrela. “De peixinho vai pra trás”, ela rebola para o fundo do palco, movendo a peruca loira. Audrey Top, que decidiu sua música no dia da competição, dubla Buzina, de Pabllo Vittar, na sequência, enquanto pula e chicoteia uma peruca loira e lisa que vai até sua cintura. Pede palmas da plateia.
Com um vestido longo de paetês e um arranjo de penas na cabeça, Suzana Hernandes dubla Mulher do Fim do Mundo, música de Elza Soares, apostando mais na expressividade do seu rosto do que em dança. Drag Verona, que tem a cabeça raspada, a pele embranquecida por pancake e um rabo de cavalo azul que vai até a cintura, Mistura Cardi B, Shaggy e Rihanna no seu número. Abre espacates, dá cambalhotas e se contorce no palco. A plateia aplaude antes de ela terminar de dançar.
Aesha Von Teese entra com uma boina, luvas vermelhas e uma camiseta que lembra a estética dos Panteras Negras. Entoa Freedom, de Beyoncé. É seguida de Lavynia Storm, a motoqueira, que, com uma peruca castanha ondulada, dança com um maiô de couro, cheio de correntes e anéis de metal, e uma bota que vai até o meio da coxa. Ela transforma o palco da Vila Nova Cachoeirinha num Cirque du Soleil, com chutes altos, estrelas, cambalhotas.
Sétima competidora, Antonia Pethit entra no palco segurando um tapume de papelão pintado de preto impede que o público veja o seu corpo. Só há um buraco para seu rosto rosto. Começa uma música. É Linn da Quebrada, artista que se denomina "bicha, preta, trans e periférica" e ganhou fama no Brasil todo depois de fazer uma mistura com funk com rap. A dublagem de Pethit é de uma versão à capela da música Talento. Ela dubla a letra:
Não adianta pedir
Que eu não vou te chupar escondida no banheiro
Você sabe que eu sou muito gulosa
Não quero só pica
Eu quero o corpo inteiro
Nem vem com esse papo
Feminina tu não come?
Quem disse que linda assim
Vou querer dar meu cu pra homem?
Se achou o gostosão
Pensou que eu ia engolir
Ser bicha não é só dar o cu
É também poder resistir
Vou te confessar
Que às vezes nem eu me aguento
Pra ser tão viado assim
Precisa ter muito mais
Muito talento
Antes de chegar à palavra “talento”, Antonia se vira. Está nua, a não ser por uma peruca laranja presa em um coque e uma calcinha. E com o corpo todo pintado de guache branca, com manchas coloridas. A música muda junto com a virada. Começa a tocar um remix de Born This Way, de Lady Gaga. A competidora flexiona os braços no ritmo da batida, corre na passarela. Sobe na mesa dos jurados. A plateia vira uma avalanche de palmas e de gritos. Marcia Pantera se levanta para aplaudir. Um dos jurados chora (no caso, o repórter).
Lunna Black entra no palco com Elza Soares declamando: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, e depois emenda com uma dança afro. Depois, dois contra-regras instalam um poste de pole dance no palco. Drag Angel entra com uma roupa de ginástica fluorescente e se pendura no mastro, fica de ponta cabeça enquanto dubla.
Com o corpo pintado com padrões brancos, como os da Timbalada, Brunessa Lopes dança músicas afro como Maimbê Dandá, na voz de Margareth Menezes, e Ilê Pérola Negra, de Daniela Mercury, enquanto roda a saia de palha. Elis Pessatti, a primeira mulher cis a competir, entra no palco. Enquanto ela dubla Gira, de Larissa Luz, vai se despindo. Tira um lenço, enquanto gira. Arranca uma saia, revelando outra por baixo. Joga os colares de contas. Quando termina a música, Elis está praticamente desmontada, é uma mulher sem paramentos. Tchaka a abraça: “Galera, lembra que a gente tinha comentado que pode tudo? Pode aplaudir. Mulher, cis e drag queen.” A plateia aplaude.
"A Meguitha sou eu. Sou bicha, sou preta e sou nordestina.É mais do que um personagem.”
Em seguida vem Meguitha. Ela tira uma bandeira do arco-íris do decote do vestido azul que terminou de montar de manhã. Dubla O canto dessa cidade em uma versão acústica. Samba em cima de uma bota de franjas brancas. Depois, aparece Yasmin Carraroh, que pintou sua pele de azul-celeste e se fantasiou do gênio de Aladin. Depois de dublar meia música do desenho da Disney, ela tira as calças bufantes e o colete dourado. Fica de maiô e dança uma música de Ludmilla com Anitta.
Leandra Gitana corre para o palco com um vestido rosa e preto bufante. Quando está desfilando na passarela, levanta os braços e revela asas de borboleta. Depois, dança um can-can com o vestido de listras. A plateia se levanta, grita, aplaude.
Acabam as apresentações. Enquanto Corona Boogie Oogie aproveita seus últimos minutos de reinado para se apresentar, dançando Beyoncé, enquanto as notas dadas pelos jurados são somadas. Todas as competidoras são trazidas de volta ao palco. Ficam perfiladas enquanto a apresentadora abre o envelope que contém o nome da segunda colocada, que vai ganhar a faixa de primeira princesa, e do terceiro lugar, que irá para casa com a faixa de segunda princesa.
Tchaka lê o resultado e anuncia: “É um empate!”. Duas drags tiveram a exata mesma nota, por mais que elas fossem fracionadas. “Vamos deixar para o público decidir. Quem acha que a Drag Verona merece ganhar?”, pergunta a mestre de cerimônias. Pausa para palma e gritos. “E quem acha que Leandra Gitana merece ganhar?”. Ainda mais palmas. A plateia parece ter decidido. Mas Tchaka pergunta para as duas finalistas quem elas acham que gerou mais comoção.
Drag Verona exercita o espírito esportivo: “Eu queria muito ganhar, mas ela realmente teve mais aplausos.” Com o terceiro lugar, Verona ganha a faixa de segunda princesa. E Leandra Gitana, segunda colocada do concurso, é a primeira princesa. Ambas podem voltar a participar ano que vem, caso queiram.
É chegado o grande momento da noite.
Tchaka anuncia: “E a vencedora é…”, silêncio de dois segundos, “Antonia Pethit!”. A drag que nasceu nove meses atrás ganhou. Uma mulher de blusa rosa, cuja cabeça bate no peito de Pethit, sobe no palco. A vencedora, que estava prestes a ser coroada por sua antecessora, Coronna Boogie Oogie, se afasta da coroa e abraça com os dois braços.
“É sua mãe?”, pergunta Tchaka. A mulher diz que sim. É a mãe de Gustavo, o ator que criou Antonia Pethit. Os dois se abraçam de novo. A apresentadora dá o microfone à mãe da ganhadora: “O Gustavo merece tanto. Ele se esforça muito. Eu estou muito orgulhosa”, diz a mãe, que começa a chorar. A rainha passa a mão embaixo dos olhos. E engole o choro para fazer seu discurso de posse. Agradece ao namorado, Lucas, que a ajudou a se montar. E à sogra, que empresta a casa para que faça suas produções.
“Tem que ter muita coragem. Coragem para colocar uma peruca. Coragem para subir no palco. E a gente tem coragem.” Antonia Pethit, com a coroa na cabeça, olha para as outras concorrentes e diz: “Parabéns para mim e para todas as meninas. A gente está junto nessa. Estamos todos no mesmo barco.”
Meia hora depois, às 21h30, o evento está se dispersando. Na porta do centro cultural, Lavynia Storm faz uma selfie com uma mulher de 60 anos que diz “Você é linda!”. Passa um carro na avenida Deputado Emílio Carlos. De dentro dele, sai o grito de “Viado!”. A drag queen não pestaneja: “Tem mais alguém querendo tirar foto comigo, pelo jeito”, e joga um beijo na direção do carro, que sumiu na noite.