
As mentiras que a Disney conta para não traumatizar as crianças
Ou como apanhar um relato clássico e modificar a seu desejo para que tudo que limpo e bonito

De que estamos falando. De ‘Pocahontas’ (1995), filme da Disney baseado nos diários do marinheiro e explorador John Smith, por volta de 1610.
Onde está a mentira. Nos diários de Smith, fica claro que Pocahontas e ele nunca se apaixonaram. Ela tinha 10 anos e o chamava de “pai”, porque ele tinha 27. Na realidade Pocahontas se casou com Kokoum, por quem realmente estava apaixonada, e salvou a vida de Smith colocando sua cabeça (que provavelmente não tinha um cabelo tão brilhante quanto no filme) sobre a do colono. Anos depois, já viúva, Pocahontas viajou para Londres, onde se casou novamente, mas morreu aos 22 anos. Desde então, o mito de seu romance com John Smith, alimentado pela Disney, aliviou a culpa branca diante do genocídio que os colonos perpetraram contra os nativos americanos: exterminaram seus povos e roubaram suas terras, mas também mostraram a eles a força do amor verdadeiro.

Do que estamos falando. Do filme da Disney ‘Cinderela’, de 1950, baseado no conto ‘A gata borralheira’, que o francês Charles Perrault escreveu em 1967.
Onde está a mentira. No conto de Perrault, o príncipe fica com Cinderela (aqui chamada Aschenputtel) depois de muita insistência e ela o aceita sem muita vontade. Ele a persegue em três ocasiões diferentes, mas ela se esconde graças a seus poderes mágicos. Na terceira, o príncipe obsessivo não está disposto a deixá-la escapar, então cobre as escadarias do palácio com breu para que os sapatos de sua perseguida fiquem grudados. Finalmente, Aschenputtel se casa com o príncipe porque se dá conta de que não vai conseguir se livrar dele. Muito diferente do que contou a Disney: príncipe bonito e rico se casa com donzela bonita e pobre porque os dois se apaixonam, literalmente, sem proferir uma palavra.

Do que estamos falando. Do filme da Disney ‘Hércules’ (1997), que pegou a mitologia grega, bateu-a no liquidificador e nos deu uma delirante sátira pop no qual a única semelhança com o poema em que se baseia (popularizado por Peisander no século VII a. C.) são os nomes dos personagens.
Onde está a mentira. Em todo lugar. Segundo o mito, Heracles (ou seja, Hércules) é o filho da aventura (e com aventura queremos dizer estupro) de Zeus com a humana Alcmena. Entre os 100 filhos que Zeus tem fora do casamento com sua esposa (e irmã) Hera, a mulher pega uma birra especial com Heracles, então envia duas serpentes para matá-lo e não consegue. Antes de fazer 20 anos, Heracles tem 52 filhos, e tanta má sorte que durante um ataque de loucura mata os dois que tem com Megara, sua primeira esposa, e bem menos cintilante do que a do filme. Heracles casa Megara com seu primo e embarca nos 12 trabalhos para expiar seu crime. Não seria preciso dizer, mas no conto também não há um coro gospel de negras saltitantes.

Do que estamos falando. Do filme da Disney ‘Mogli - O menino Lobo’ (1967), baseado na fábula (e, segundo os historiadores, apologia) do colonialismo que Rudyard Kipling escreveu em 1894.
Onde está a mentira. A Disney reduz a violência do relato original, no qual Mogli por duas vezes destroça povoados humanos sedento de vingança e o urso Balu o educa a pancadas que escandalizam os demais animais. Além disso, apresenta o personagem do Rei dos Macacos, Louie, com todos os estereótipos dos negros e que chega a cantar para Mogli “Dubidu, quero ser como tu”. Em plenos protestos de rua e insurreição social pelos direitos civis da comunidade negra, esta paródia ofensiva criou controvérsia e alimentou a percepção de que Walt Disney (‘Mogli - O menino Lobo’ foi o último filme que ele supervisionou pessoalmente) utilizava o cinema para difundir mensagens ultraconservadoras.

Do que estamos falando. Em 1992, Disney rodou ‘Aladdin’ baseando-se em um dos contos de ‘As mil e uma noites’, compilação do folclore oriental datada em torno de 850.
Onde está a mentira. No texto de 850, os desejos de Aladdin ao Gênio (que, longe de ter a personalidade divertida de Robin Williams no original em inglês, não diz mais do que três palavras em toda a história) são diferentes dos do filme da Disney. O primeiro é que ele seja tirado da Caverna das Maravilhas, o segundo é um faustoso banquete depois do qual Aladdin e sua mãe (que, sim, está viva no conto original, enquanto o pai morreu literalmente de vergonha por ter um filho tão safado) vendem a vasilha de prata e se garantem, e o terceiro desejo é o mais perverso: como a princesa Badrulbudur (Yasmin, no filme) se casou com o filho do vizir (o conselheiro do sultão), Aladdin os teletransporta para sua alcova toda noite, tranca o marido no banheiro e fica com a garota até que o sultão dissolve o matrimônio porque não são capazes de consumá-lo. O filho do vizir é a verdadeira vítima da história.

Do que estamos falando. Do filme da Disney ‘O corcunda de Notre Dame’ (1996), adaptação do romance de mesmo nome, escrito por Victor Hugo em 1831.
Onde está a mentira. Quasímodo era surdo no romance de Victor Hugo. Não é que não cante dando corridinhas pelos corredores, é que mal fala. Ao mesmo tempo, é bem mais violento do que na versão da Disney: sequestra Esmeralda, a liberta, provoca acidentalmente sua prisão, mata por engano vários ciganos que tentam libertá-la de sua cela e, quando descobre que Frollo a enforcou, o atira do alto do campanário. O romance termina com um salto temporal, depois do qual alguns soldados descobrem o esqueleto disforme de Quasímodo abraçado ao esqueleto de Esmeralda. Não se fazem histórias de amor como as de antigamente.

Do que estamos falando. Do filme da Disney ‘Peter Pan’ (1953), adaptação da peça de teatro ‘Peter Pan, o menino que não queria crescer’, publicada em 1904 por J. M. Barrie.
Onde está a mentira. Na obra original de J. M. Barrie, os Meninos Perdidos tentam matar Wendy porque não gostam que sua líder namore, enquanto que na versão da Disney é Sininho, louca de ciúmes, que atenta contra a vida da menina. Felizmente, Peter Pan a salva como sempre se ressuscita na Disney: com um beijo de amor verdadeiro. No filme, os Meninos Perdidos preferem dedicar seu tempo livre (e têm muito tempo livre) a caçar peles-vermelhas, cujo retrato por parte da Disney (incultos, selvagens, incapazes de dizer nada que não seja “Hau!”) já foi considerado irresponsavelmente racista em 1953.

Do que estamos falando. Do filme da Disney ‘Mulan’ (1998), adaptação de um conto popular chinês do século VI.
Onde está a mentira. Depois de 1.400 anos, o filme da Disney é mais conservador do que o original. A Mulan do folclore chinês é uma super heroína a todo momento: seus dotes como esposa são impecáveis e é especialista em artes marciais, manejo de espada e tiro com arco. Sua família a envia à guerra porque sabem que vai arrasar e a única preocupação de sua mãe é que volte virgem. Quando os colegas de pelotão descobrem que é mulher, dão de ombros e a aplaudem, em vez de condená-la à morte, perdoá-la e repudiá-la como no filme. Depois de doze anos causando sensação no exército, Mulan volta para casa e retoma sua vida de onde a deixou: casando-se com o vizinho. E não precisa da ajuda dos espíritos de seus antepassados, porque o relato original é realista. Foi a Disney que considerou que o público ocidental esperaria que houvesse fantasmas em uma história ambientada na China.

Do que estamos falando. Dos filmes que invadiram o império da Disney copiando sua fórmula. E isso inclui inventar metade da história.
Onde está a mentira. O filme ‘Anastasia’ (1998) foi protagonizado por pessoas mortas. Na realidade, a heroína, herdeira da família real Romanov, foi assassinada em um sótão depois da Revolução de Fevereiro. Como seu corpo não foi encontrado, surgiu a lenda urbana de que estava viva (no filme, além de vida, ela tem amnésia), mas anos depois se descobriram seus restos. Outro exemplo é o filme ‘O príncipe do Egito’ (1998), que dá uma melhorada na imagem de Deus: o faraó se nega a libertar os hebreus por ciúmes de seu irmão adotivo Moisés, mas na Bíblia ele era ruim porque Deus “endurece seu coração”. O filme acaba com os judeus cantando no deserto, sem saber que os esperam 40 anos de sofrimento, agonia e morte pela frente.