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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A saúde como forma de política de morte: por onde anda o Departamento de Aids?

Governo mudou nome do departamento sobre DSTs por decreto, excluindo a palavra Aids. Mudança em um governo conservador e em meio à crise econômica pode invisibilizar políticas na área

Ação do Instituto de Infectologia Emílio Ribas solta 10 mil balões vermelhos em São Paulo para celebrar luta contra a Aids.
Ação do Instituto de Infectologia Emílio Ribas solta 10 mil balões vermelhos em São Paulo para celebrar luta contra a Aids.Rovena Rosa (Agência Brasil)

O Brasil foi pioneiro mundial na construção de respostas governamentais à epidemia de HIV/Aids. Em 1986 foi criada a Coordenação Nacional DST/Aids, depois denominado de Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais, vinculado ao Ministério da Saúde. No dia 17 de maio de 2019 recebe a mais nova denominação “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis” por meio do Decreto nº 9.795. O que quero destacar é que não se trata apenas uma questão de nomenclatura, mas é interessante no atual contexto político a exclusão da palavra Aids do Departamento. Voltaremos a essa questão no texto.

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Um pouco de história é necessário para contextualizar o que estou falando. O extinto Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais era uma agência governamental responsável por ações relativas à Aids (educação e prevenção, assistência à saúde, distribuição de medicamentos, tratamento às pessoas vivendo com Aids, pesquisa e vigilância epidemiológica). Desde 1996 disponibiliza tratamento gratuito para pessoas vivendo com HIV/ Aids através do Sistema Único de Saúde (SUS). A participação de militantes, muitos dos quais vinculados a ONGs, foi fundamental para a formulação, desde o início, de políticas públicas pautadas pelo referencial democrático, não discriminatório e de defesa dos direitos de pessoas vivendo com HIV/Aids.

Foi nesse diálogo entre gestores, militantes e pesquisadores que fez o Brasil ser reconhecido como modelo de enfrentamento ao HIV/Aids e, também, compreender que o combate para uma epidemia como a Aids envolve mais do que ciência e financiamento. Ela nos ensinou que precisamos incluir a pauta de direitos humanos e vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas pois somente dessa forma vamos conseguir enfrentar a epidemia.

Um dos marcos simbólicos que não podemos negar é que a Aids possibilitou incluir nos discursos oficiais os diversos sujeitos sociais que constroem a luta diária das pessoas vivendo e convivendo HIV/AIDS, população LGBT, negras e negros, mulheres, pessoas trans, jovens e usuários de álcool e outras drogas. Esses sujeitos foram visibilizados a partir da construção democrática da política de combate ao HIV/Aids e nos ensinaram que hoje ninguém morre mais de Aids, mas morre de estigma e discriminação que, ainda, afeta as pessoas vivendo e convivendo com HIV/Aids. Nesse sentido, extinguindo a palavra Aids o governo invisibiliza qualquer existência que escape à limitadíssima perspectiva do governo Bolsonaro, como nos lembra, o manifesto do Movimento Social de Luta Contra Aids.

No entanto, a nota do Ministério da Saúde destaca que "o HIV/Aids, a tuberculose e a hanseníase possuem características de doenças crônicas transmissíveis, com tratamento de longa duração, o que permite uma integração das ações. As pessoas vivendo com HIV, por exemplo, têm maior risco de desenvolver a tuberculose, além de ser um fator de maior impacto na mortalidade nesses casos. Também é comum que o diagnóstico da infecção pelo HIV seja feito durante a investigação/confirmação da tuberculose". No entanto, o momento que vivemos no Brasil para realizar essa mudança é o pior possível, tanto a nível político, com um governo de extrema-direita, como a nível de financiamento, com o teto de gastos públicos vigorando por vinte anos e o fim dos blocos de investimentos (verbas carimbadas). O nosso principal receio é termos uma crise financeira nas respectivas áreas e que tanto a Aids como a tuberculose e a Hanseníase tenham invisibilidade, não tenham as especificidades reconhecidas.

Retomando a nota do Ministério da Saúde que logo no início alerta que as "estratégias de resposta brasileira ao HIV não será prejudicada. Ampliação da assistência e a melhoria do diagnóstico são ações que continuarão sendo adotadas pelo novo departamento". Assim, entendo que as ações de assistência, como por exemplo a distribuição gratuita de medicamentos, irá continuar, apesar que desde 2016, estamos tendo crises de abastecimento de antirretrovirais em diversos estados do Brasil. Mas o que chama atenção é a ausência da discussão da prevenção nesse debate. As estratégias de prevenção atuais buscam combinar intervenções estruturais, comportamentais e biomédicas usando, por exemplo, a Profilaxia Pós-Exposição – PEP e a Profilaxia Pré-Exposição – PrEP, denominadas de Prevenção Combinada. Sabemos que essas estratégias foram criticadas por parte do movimento social por acreditar que o destaque era nas estratégias biomédicas em detrimento as ações comportamentais. Com essas mudanças e com o foco, cada vez mais, no diagnóstico precoce, onde ficará as ações de prevenção comportamentais, sociais e programáticas? Haverá recursos para garantir a oferta de antirretrovirais para as pessoas vivendo com HIV/aids e para as ações de PEP e PrEP, lembrando que a oferta dessas tecnologias de prevenção é prioritária para gays, travestis, transexuais e profissionais do sexo, pessoas que na atual gestão federal estão sendo invisibilizadas.

Quero concluir trazendo para a cena o texto do colega Carlos Henrique de Oliveira do coletivo Loka de Efarirenz: "Achille Mbembe, filósofo camaronês, já vem colocando que a soberania de um Estado neoliberal se funda no poder de morte sobre as populações, e não no poder de vida. O desmonte do SUS é uma forma sofisticada de aumentar a política de morte das populações negra, pobre e LGBTI+ do Brasil, através da total desassistência à saúde, somada ao grande adoecimento provocado pelo saneamento básico deficitário e os bolsões de pobreza cada vez mais frequentes devido ao aumento da desigualdade social. Ademais, com a compra de fuzil podendo ser feita por qualquer um, a tendência é que a lógica de Milícias como poder local, nas periferias, tende a aumentar, e a se somar a já dramática conjuntura de genocídio da população negra e pobre, engendrado pela Polícia e o crime organizado.vPortanto, fiquemos atentas e atentos. Querem nos matar de distintas formas. Não deixaremos! O SUS é nosso, e precisamos mantê-lo, resistir agora é fundamental para poder existir".

Adriano Henrique Caetano Costa é doutor em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

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