O restaurante mais pop de São Paulo fica no bairro onde não tem nada para fazer
Três funcionários do Mocotó contam ao EL PAÍS como é viver na Vila Medeiros, um dos cinco distritos da capital paulista onde não há nenhum aparelho cultural: “Moro em São Paulo, mas nunca fui a um teatro ou museu”
Não são sequer as 11 da manhã de terça-feira, e o primeiro casal de clientes chega ao famoso restaurante Mocotó, na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, ainda que o local só abra ao meio-dia. Ali, as filas e listas de espera são normais de segunda a sábado, quando centenas de pessoas deslocam-se do centro da cidade para saborear as delícias nordestinas da casa. Entre os clientes, há alguns vizinhos do bairro. O Mocotó é, afinal, o "point" da região —como diz a hostess Luzineia Souza, de 32 anos—, um dos cinco distritos da cidade que não conta com nenhum aparato cultural (museus, cinemas, teatros, centros culturais, bibliotecas ou salas de show), de acordo com uma pesquisa divulgada nesta terça-feira pelo Ibope e pela Rede Nossa São Paulo. "Nunca fui em museu ou teatro. Se tivesse um perto, iria conhecer", dIz Luzineia, baiana que mora há cinco anos na Vila Medeiros (65% dos trabalhadores do restaurante vivem na região).
Os distritos Marsilac e Cidade Ademar, na zona sul, e Ponte Rasa e Vila Matilde, na zona leste, completam a lista de "zeros totais" em aparatos culturais na capital paulista, de acordo com a segunda edição da pesquisa Viver em São Paulo: Cultura, que ouviu 800 pessoas acima de 16 anos em dezembro. Em contrapartida, Butantã, Consolação, Lapa, Liberdade, Moema, Pinheiros, República, Tatuapé e Vila Mariana são as regiões que possuem todos os equipamentos de cultura mapeados.
"Queria que aqui tivesse pelo menos uma praça, um espaço cultural onde acontecesse algum show", lamenta Luzineia. Seu colega Sandoval Dias, de 40 anos, que é chefe de produção, faz a mesma queixa: "Gosto de ir ao cinema e ao Parque do Ibirapuera, mas este ano só consegui ir duas vezes. Tudo fica muito longe", diz ele. Vizinho do bairro há oito anos, Sandoval só foi ao centro de São Paulo uma vez, há um ano e meio, para conhecer o Teatro Municipal. "Antes, eu morava na zona leste e acho que lá tem mais coisas. Pelo menos é arborizado, tem um parque para a gente ir".
Para Denis Morais, chefe de manutenção do Mocotó, de 38 anos, a situação é "ainda mais complicada", já que vive no bairro com a filha, de oito anos. "Às vezes, ela pede para ir ao cinema, mas nem sempre dá, porque tem que pagar um Uber e aí já vão R$ 20 só em transporte até o local". A opção mais barata, à qual recorre com frequência, é levar a menina para pedalar ou andar de patins no Parque da Juventude (a 40 minutos de ônibus de sua casa) ou no Parque Tietê (a uma hora e meia em transporte público). Denis nunca foi a um museu. Sua filha só conhece um graças aos passeios da escola. "Eu gostaria de educá-la mais ao ar livre com outras atividades, até para que não fique muito presa ao celular. Ela adora dançar, por exemplo, mas a escola de balé é cara. Gostaria que tivéssemos um centro cultural aqui, onde ela pudesse fazer alguma atividade dessas", diz. Ele tampouco frequentou uma unidade do SESC (Serviço Social do Comércio), que promove atividades culturais gratuitas ou a preços populares, mas esta semana fará uma carteirinha para a filha no SESC Santana —o mais próximo de seu endereço, a 40 minutos em uma viagem combinada de ônibus e metrô—. "Assim, ela vai poder ir pelo menos um domingo por mês".
No distrito com um dos piores IDH (Índices de Desenvolvimento Humano) da cidade, com 21 favelas e uma renda média de dois salários mínimos por trabalhador formal, de acordo com o último Censo do IBGE, a falta de equipamentos culturais é uma preocupação dos donos do único "point" de ócio da região. O chef Rodrigo de Oliveira, responsável pelo Mocotó, pretende construir em frente ao restaurante a primeira praça pública do local, com projeto do arquiteto Ruy Ohtake.
Quase um terço dos paulistanos (28%, o equivalente a 2,7 milhões de pessoas) não frequentou qualquer centro de cultura no último ano, de acordo com o levantamento. A gratuidade ou os preços mais acessíveis são o principal fator de estímulo de consumo cultural, de acordo com 42% das pessoas ouvidas. O segundo facilitador é a proximidade dos espaços culturais de suas casas, citado por 25% dos entrevistados. "A mensagem da pesquisa é clara: as pessoas querem cultura de qualidade, perto de casa e gratuita", resume Américo Sampaio, coordenador da Rede Nossa São Paulo. A organização realiza um mapeamento cultural da cidade há sete anos e faz a pesquisa de opinião desde 2017. Sampaio explica que, ao longo dos anos, se manteve o padrão de concentração dos equipamentos culturais no centro da cidade. "É uma desigualdade congelada".
Para reverter esse cenário, Sampaio propõe potencializar leis como a do programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais) e a de Fomento à Cultura das Periferias. "Se a prefeitura não dá a resposta, a própria sociedade civil organiza-se na forma de coletivos e assume o papel de promover a cultura, através de saraus, slams, grupos de teatro independente", explica. O levantamento da Rede Nossa São Paulo aponta que o orçamento da Secretaria Municipal de Cultura caiu em 10%: em 2018, a pasta recebeu R$ 436.993.850; em 2019, a previsão é de R$ 392.131.006.
Apesar de que o levantamento não faz cruzamentos com outros dados sociais, o coordenador da Rede Nossa São Paulo afirma que nos locais onde há mais dificuldade de acesso à cultura, há mais violência. "Onde há aparato cultural estruturado, ocorrem debates mais amplos sobre problemas sociais como desigualdade, racismo ou abuso policial. Por isso, a política de investimento direto nos coletivos da periferia tem um potencial gigantesco: educacional, social e de promover conexão das pessoas com o bairro, gerando renda, inclusive. Esse é o papel do poder público, criar essa movimentação local".
Há também um recorte racial: no centro de São Paulo, onde concentram-se os centros de cultura, pardos e negros representam menos de 15% da população. Nos distritos periféricos, aproximadamente 60% da população é não branca. "Tem gente que fala em racismo estrutural, mas é também um planejamento urbano branco, uma cidade que expressa seu racismo. Se você não garante o acesso à cultura aos mais pobres, você aprofunda todas essas desigualdades. E isso desumano", diz Sampaio.
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