Poesia que grita contra o patriarcado
Criado primeiro em Brasília e depois em São Paulo, o Slam das Minas realiza batalhas entre poetas e dá protagonismo às vozes de artistas mulheres
"Abre essa boca, mulher!". O primeiro verso é um convite, mas soa quase como uma intimação. Em um palco decorado com tecidos verdes e roxos, oito poetas, "rainhas", "panteras negras", como elas mesmas se definem, revezam-se ao microfone para declamar e interpretar seus textos. Os poemas falam de amor, força, dor, negritude, feminilidade, feminismo. No cenário tem música e dança. Depois de cada batalha poética, cinco juradas (sempre mulheres) dão as notas. Duas das poetas se apresentam enquanto seus filhos pequenos, de não mais de três anos, correm, brincam e dançam no palco. Uma outra carrega o bebê que dorme em seus braços te depois senta-se para amamentá-lo ao lado da caixa de som. É assim a cada terceiro domingo do mês, desde o 8 de março de 2016, quando surgiu o Slam das Minas em São Paulo, um coletivo coordenado por quatro poetas e criado para ampliar os espaços ocupados por elas nos saraus, recitais e competições.
No primeiro encontro deste ano, realizado no início de fevereiro, com o coletivo Sarau das Pretas, havia música. As poetas improvisavam, com humor, passos antes de pegar o microfone. A plateia ria, mas também chorava. Muitos olhos marejaram com os poemas sobre o fardo das mães que criam filhos sozinhas, quando "os pais acham que pagar uma pensão é suficiente, que faz a mulher ficar rica". Um senhor de idade avançada esforçava-se para levantar da cadeira e, ajeitando os óculos no rosto, posicionava-se à frente do palco para fotografar e filmar as apresentações.
O slam, linguagem artística que surgiu na década de 1980, nos Estados Unidos como uma batalha de poesias ao microfone e junto com as culturas do grafite e do rap, ganhou coro nas periferias do mundo inteiro nas décadas seguintes. A partir de 2012, o Brasil começou a participar da Campeonato Mundial, que acontece anualmente em Paris. O problema é que as poetas brasileiras não passavam da primeira fase da competição nacional. "Por isso criamos o Slam das Minas, para fortalecer esse cenário", conta Pam Araújo, poeta, escritora e produtora cultural de 24 anos. O coletivo nasceu em 2015, em Brasília, e ramificou-se em São Paulo um ano depois. Hoje, está em 17 Estados —e, só em São Paulo, há uma centena de coletivos de outras poetas—.
"Logo vimos que garantir uma vaga feminina no Mundial era o mais básico que poderíamos oferecer. Pensando na diversidade das vozes que chegaram e o que elas tinham para contar, percebemos que esse era um objetivo menor", continua Pam, que, ao lado de Carol Peixoto, Luz Ribeiro e Mel Duarte, coordena as batalhas na capital paulista. "Já fazemos poesia há muito tempo, mas não nos sentíamos confortáveis em muitos desses espaços. E quando você sente que falta um espaço para você, você cria um", diz Mel, de 30 anos. Graças a iniciativas como a do coletivo, a final do Slam BR de 2018 já tinha mais mulheres do que homens.
“Que todas existam
Somos falas e temos falanges
Somos gritos, luta, liberdade e gozo"
Uma das poesias que soa no palco parece traduzir um dos lemas do Slam das Minas. "A rua grita pela sua razão de existir e as mulheres nas cidades são silenciadas. Queremos dignidade, espaços para nossas poesias. Quando as minas vêm nos saraus ou no slam, elas veem que não estão sozinhas", explica Jô Freitas, de 30 anos, atriz e poeta, vencedora do primeiro Slam das Minas de 2019.
Para Carolina Peixoto, de 30 anos, a poesia foi também uma descoberta de consciência política e social. "Há dois ou três anos, eu sequer gostava da palavra feminista, e hoje entendo a importância de me colocar como mulher feminista", conta ela, que chama a atenção para a ausência de homens na plateia do Slam das Minas. As organizadoras estimam que, entre as cerca de 500 pessoas que assistem as batalhas, só 5% são homens. "E os que vêm geralmente são nossos parceiros ou amigos", lamenta.
Por que? "Ninguém quer ouvir mulher, né?", diz Pam. "A voz da mulher e o que ela tem a dizer são consideradas chatas. E é muito complicado querer que os homens que vivem diariamente a cultura do machismo venham e entendam que hoje eles não vão falar, só vão ouvir. O poder da palavra, que sempre foi dado a eles, não é mais", acrescenta.
"É muito algo muito poderoso. Porque, pensando no processo histórico, durante quanto tempo outras pessoas contaram a minha história por mim? Pegar a caneta e construir retórica, dialética, minha própria narrativa é muito potente", complementa Luz Ribeiro, de 30 anos. Ao tornar-se mãe há seis meses —a "poesia mais bonita e demorada" que já fez— ela incluiu as pautas da maternidade nessa narrativa, como já tinham feito outras companheiras, como Thata Alves, poeta de 26 anos do Sarau das Pretas, que é mãe de gêmeos de sete anos.
"Quando você tem filhos, há uma segregação dos espaços onde você pode ir. O choro, o riso, o correr da criança incomodam. Eu tive que abrir mão da faculdade, dos espaços acadêmicos e intelectuais, então o que eu tinha para me formar intelectualmente eram os espaços de cultura. Se até nesses locais a criança é excluída, as mães também são", protesta Thata.
É através da palavra que ela expressa sua frustração. E outras falam de amor lésbico, do poder da periferia, de violência machista, de feminicídio. "O verbo empodera pelo simples poder dizer. E a partir daí é possível entender, por exemplo, que dá para sair de um relacionamento abusivo, ter coragem de sair de casa, conseguir emprego, perceber que está livre daquele cara", diz Jô Freitas. Para além da cartilha do feminismo, a poesia trata de forma mais humana essas dores. Nas palavras da poeta, é "um grande eco de mulheres gritando por resistência". Eu, tu, nós, voz.