A vida um ano depois do resgate de imigrantes no navio ‘Aquarius’
Desde o resgate do barco, a Espanha acolheu 1.000 pessoas que estavam à deriva no Mediterrâneo. Estas são algumas das suas histórias
Hazrat, um jovem de Bangladesh que não sabia cozinhar, auxilia o chef de um bistrô. Khingsley, um menino que passou mais da metade da vida migrando, aprende a ler num colégio francês. Diokel, um rapaz senegalês resgatado por um barco pesqueiro de Santa Pola, ganha a vida como trabalhador braçal numa rotatória. A Espanha se transformava, há um ano, no destino improvável dos migrantes aos quais a Itália e Malta fecharam seus portos. O Aquarius foi o primeiro e o símbolo, mas não foi o único. Desde então e até janeiro, quando a Espanha decidiu impedir a saída de barcos de resgate espanhóis, mais de 1.000 resgatados no meio do Mediterrâneo chegaram ao país com uma passagem para construir uma vida nova. O EL PAÍS conversou com alguns de seus protagonistas um ano depois do desembarque.
Lágrimas no bistrô. A francesa Virginia Texier e o chef argentino Nacho Sirven ficam com lágrimas nos olhos ao falar de seu novo ajudante de cozinha no Le Bistrot, no centro de Reus. Texier, a chefa, recebeu o currículo de Hazrat Ali, um jovem de 29 anos natural de Bangladesh, com três advertências: “Não tem experiência e não fala muito bem o espanhol, mas tem muita vontade de trabalhar.” Ela não hesitou. “É pontual, sempre está de bom humor e escuta muito”, conta. Ali está há apenas duas semanas com o avental e já encheu o celular de fotos de pratos de inspiração francesa. Sobre as imagens, escreve seus nomes em espanhol: “geleia de maçã”, “abobrinha recheada”... Ali, que chegou ao porto de Barcelona a bordo do Open Arms em 4 de julho passado sem conhecer sequer o alfabeto latino, é um dos vários casos de sucesso entre os 60 resgatados da embarcação.
O chef, que o adora, já precisou se esconder no banheiro para que Ali não o visse chorando ao ouvir alguns episódios de sua história. “Sou muito sortudo por tê-lo conhecido. Ele me ensinou a valorizar as coisas. Vê-lo na TV nos comovemos, mas estar perto dele nos afeta de outra maneira”, relata.
A fuga de Ali da Líbia foi desesperada. Escravizado na construção, ele não tinha dinheiro para tomar um barco que o levasse à Itália. “Abracei as pernas do traficante para que me deixasse subir”, conta. O homem por enquanto tem um contrato de apenas 30 horas, e seu primeiro salário não chegará aos 900 euros (3.900 reais) que precisa para se manter e ajudar a família. “Estou muito feliz, mas agora tenho que ajudar meus pais. Estão muito velhos para trabalhar. Eu gostaria que pudessem vir. Cuidar da família é o sonho de todos nós.” Apesar de suas limitações, no dia da entrevista ele ofereceu 20 euros (86 reais) à chefa para pagar o almoço ao EL PAÍS.
O rei do colégio. Khingsley tinha apenas nove anos quando cruzou a África e o Mediterrâneo. Seu périplo migratório, iniciado em 2013, deixou uma marca em sua infância. Enquanto o seu padrasto, Narcise, trabalhava na Líbia, o garoto e sua mãe, Judith, passavam os dias encerrados em casa com medo de serem sequestrados pelas milícias. Os três, contou Judith a bordo do Open Arms em 30 de junho passado, ainda assim sofreram tortura. Quando foram resgatados, a mulher chorava suplicando que não fosse mandada de volta para a Líbia.
Em apenas um ano, desde o seu resgate, a família que tinha medo de morrer agora comemora as notas do garoto num colégio da Normandia, a uma hora e meia e Paris. “Ele fala bem o francês, começou a ler e escrever e fez amigos muito rápido. As professoras o adoram”, diz sua mãe, pelo telefone. “Ele também adora ir ao colégio.”
Os três viveram um tempo em Manresa (Catalunha), mas foi muito difícil aprender espanhol e catalão. Ela, agora penteada e maquiada com esmero, diz que a França a reconheceu como refugiada e espera a resolução para o restante da família. Narcise, da República Centro-Africana, quer se dedicar à construção. Judith, da República do Congo, deseja cuidar de crianças e idosos. “Estamos muito felizes e agradecemos a Deus por nos salvar. Nunca esqueceremos a Espanha porque nos ofereceu uma nova vida”, afirma.
Pai pelo Facebook. O sírio Houssein Karrit era chamado no barco de “vovô”. Aos 59 anos, era o mais velho dos 60 resgatados pelo Open Arms naquela manhã do final de junho. Fumava sem parar e sorria com os olhos, escondendo os dentes quebrados. Não era o homem rude que parecia à distância. Agora, quase um ano depois e já arranhando o espanhol, está feliz embora mais frágil do que nunca: é um pai sem seus filhos. “Nunca imaginei que passaria tanto tempo sem vê-los. Os pequenos nem sequer me conhecem”, lamenta, mostrando o Facebook da esposa, o único lugar onde os vê crescer.
Karrit foi para a Líbia em 2012, quando a guerra síria já havia começado. Seu caçula tinha só quatro meses e a filha do meio, pouco mais de um ano. Sua meta era trabalhar, juntar algum dinheiro e se reunir com eles no ano seguinte. Mas, como tantos outros, seu plano não deu certo. Karrit tem outros dois filhos mais velhos na Alemanha que fugiram antes dele.
Enquanto aguarda a concessão ou não do asilo, Karrit já pode trabalhar. Acaba de fazer alguns “estágios” de três dias colocando azulejos numa piscina, mas não lhe deram emprego. Ele nem sabe se receberá por esse período de teste, mas não reclama. Coisas consideradas naturais pelos espanhóis, como ligar para o 112 para pedir uma ambulância, reconfortam Karrit. “Aqui me senti finalmente tratado como uma pessoa. Sinto paz. Os espanhóis me deram confiança e tranquilidade de maneira desinteressada”, diz ele num restaurante turco de Reus.
Sonhando com o asilo. Vivian, uma nigeriana de 24 anos, foi vendida, sequestrada e estuprada na Líbia. Depois obrigada a se prostituir para pagar os 6.000 euros (25.800 reais) que inventaram que valia sua liberdade. Engravidou e a obrigaram a abortar. Sua fuga desesperada mar adentro acabou no convés do Aquarius com outras 629 pessoas, em 9 de junho do ano passado. Falar da Líbia ainda a estremece, mas ela agora estuda espanhol em Valência e se prepara para ser camareira de hotel. Inquieta, aguarda a decisão sobre o seu pedido de asilo. Frequenta a igreja nos finais de semana e depois toma o ônibus com suas amigas, outras mulheres que a acompanhavam no barco, para ir à praia. “Só entro um pouco no mar. Jogo a água no corpo porque não sei nadar”, diz.
A jovem respira aliviada com a sua nova vida, mas está ansiosa porque continua longe dos filhos – o mais velho, de oito anos, e o pequeno, agora doente, de seis. “Se o Governo está me ajudando e cuidando de mim, talvez me dê documentos e permissão para trazer os meus filhos. Ficaria muito feliz. Viveríamos juntos, eu trabalharia limpando hotéis ou casas e não teria mais problemas. Mas se disserem que não, eu não sei o que acontecerá porque não tenho para onde ir. Espero que Deus não permita”, diz emocionada.
Salvo por um cabo. O jovem senegalês Diokel Diop nasceu de novo no meio do Mediterrâneo, após o encontro improvável entre o seu bote de borracha, um pesqueiro de Santa Pola e uma patrulha líbia em 21 de novembro. Hoje, aos 19 anos, ele vive numa espécie de fazenda com sete senegaleses numa pequena localidade de Múrcia (Espanha).
Ele pediu asilo, mas foi embora do abrigo onde o acolheram no centro de Madri. Ainda sem autorização para trabalhar, ele fica numa rotatória esperando que os agricultores da região o chamem para colher alface a cinco euros (21,50 reais) a hora. Seu tio Abdoul, que chegou às Canárias na chamada “crise das canoas” de 2006, cobre as despesas com dificuldade. “Se ele tivesse me consultado, eu teria dito que não viesse. A vida aqui é muito dura”, adverte com carinho.
O resgate de Diop foi uma luta de Davi contra Golias. Quando o capitão do Nuestra Madre Loreto, Pascual Durá, viu como os tripulantes do bote remavam desesperados até ele, lançou um cabo. O jovem e outros 11 migrantes jogaram-se no mar gelado e escalaram o barco até o convés. “Preferia morrer de fome a ir com eles de volta para a Líbia”, conta em wolof (idioma africano) o garoto, que foi escravizado no país do Magreb. A decisão de Durá colocou a Espanha numa situação difícil. O comandante passou 10 dias esperando um porto, enquanto a Itália e Malta se negavam a aceitá-los. O mesmo Governo socialista que tinha aberto as portas ao Aquarius agora dizia aos pescadores que fossem para a Líbia. A tripulação se negou a obedecer e chegou a rumar para Alicante por sua própria conta e risco. Até que Malta, in extremis, aceitou-os desde que os transferisse à Espanha o quanto antes.
Diok ainda tem pesadelos com o mar da Líbia, mas traçou seu próprio plano para quando conseguir os documentos. “Vou ligar para o Pascual pedindo que me contrate como pescador em seu barco.”
Cronologia dos desembarques
17 de junho: O Aquarius chega a Valência com 630 migrantes.
4 de julho: O Open Arms desembarca 60 pessoas em Barcelona.
9 de agosto. Algeciras (Espanha) recebe 87 migrantes resgatados pelo barco catalão.
21 de novembro: O barco pesqueiro Nuestra Madre Loreto resgata 12 pessoas. Após 10 dias de incerteza, Malta aceita seu desembarque, e 11 delas são levadas à Espanha.
28 de dezembro. O Open Arms volta a Algeciras com 308 pessoas, entre elas 147 menores.
8 de janeiro. O Governo impede a saída de barcos espanhóis de ONGs de resgate.
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