_
_
_
_

A esterilização forçada de mulheres indígenas canadenses: um assunto muito recente

Essa prática acabou oficialmente em 1973, mas investigações e testemunhos indicam casos posteriores. Uma senadora pede que seja feito um estudo para conhecer seu verdadeiro alcance em nível nacional

No Canadá, a esterilização forçada era tida como uma prática extinta havia décadas
No Canadá, a esterilização forçada era tida como uma prática extinta havia décadasDavid Goldman (AP)

As esterilizações forçadas de mulheres indígenas no Canadá cessaram oficialmente nos anos setenta, mas investigações e testemunhos indicam que esses procedimentos continuaram sendo praticados décadas depois, e teme-se que ainda existam casos. A senadora Yvonne Boyer pediu a seus colegas legislativos que seja realizado um estudo para conhecer o alcance real dessa prática em nível nacional. “Muitas mulheres do país todo entraram em contato comigo pedindo ajuda”, afirmou Boyer no dia 11 à agência de notícias The Canadian Press. A senadora mencionou a tragédia de Liz, obrigada a abortar e a se submeter a uma ligadura de trompas em um hospital de Ontário aos 17 anos.

Mais informações
Trudeau sugere que Papa peça desculpas aos indígenas do Canadá
Como um promotor e um juiz do interior de SP esterilizaram uma mulher à força
“Brasil é, de longe, o país mais perigoso para os defensores dos direitos indígenas”

No campo legal, apenas duas províncias canadenses permitiram essa prática, levada a cabo principalmente com as mulheres dos grupos autóctones. A lei em Alberta vigorou de 1929 a 1972 e na Columbia Britânica, de 1933 a 1973, com 2.800 e 400 esterilizações, respectivamente. No entanto, existem registros desses anos sobre esse procedimento em outras províncias e territórios.

A crença generalizada era a de que essas esterilizações tinham acabado nos anos setenta, até que o jornal StarPhoenix e a rede CBC apresentaram uma série de reportagens em 2015 com testemunhos de algumas mulheres submetidas a esse método, entre 2008 e 2012, em hospitais de Saskatoon, na província de Saskatchewan. Como resultado das denúncias da imprensa, as autoridades de saúde dessa cidade encomendaram uma investigação independente a duas especialistas de origem indígena: Judith Bartlett, professora de medicina da Universidade de Manitoba, e Yvonne Boyer, advogada especializada em direitos humanos.

Bartlett e Boyer apresentaram seu relatório em julho de 2017. Apesar do clima de medo e desconfiança, conseguiram falar com sete mulheres que foram forçadas à esterilização em Saskatoon. Quase todos os casos ocorreram entre 2005 e 2010. “Insistiram em que o procedimento era para não superar o tamanho ideal de uma família”, “o médico me indicou que era o único método para não ficar grávida de novo”, “falaram comigo usando términos técnicos que não entendi e me senti forçada a assinar a autorização”, dizem alguns dos testemunhos que aparecem no documento. As especialistas concluíram que as mulheres foram vítimas de discriminação e preconceito, dentro de um sistema que reflete a herança do colonialismo e que provoca receios no momento de solicitar outros apoios de saúde.

No dia em que o relatório foi divulgado, Jackie Mann, vice-presidenta dos serviços de saúde de Saskatoon, apresentou desculpas oficiais em uma entrevista coletiva. “Sinto profundamente que estas mulheres tenham sofrido a ligadura de trompas sem seu consentimento, que não tenham sido tratadas com o respeito e a compaixão que se mereciam e que não tenham obtido a ajuda que requeriam. Nenhuma mulher merece ser tratada dessa forma”, disse Mann entre soluços.

Pouco tempo depois, Yvonne Boyer começou a receber mensagens de outras mulheres indígenas, tanto de Saskatoon como de cidades em outras províncias, afirmando que tinham passado pelas mesmas experiências. Liz foi uma delas. Boyer se tornou senadora em março de 2018 e espera que sua petição conte com o apoio do Senado. Jagmeet Singh, líder do Novo Partido Democrático, escreveu no Twitter no dia 12 que a esterilização de mulheres nativas é uma grave violação dos direitos humanos e pediu que o Governo de Justin Trudeau ponha fim a esse procedimento em todo o país. De acordo com o Estatuto de Roma, essa prática é um crime contra a humanidade. A Associação de Mulheres Indígenas e a Anistia Internacional do Canadá também expressaram suas críticas.

Como resposta, a ministra de Serviços Indígenas, Jane Philpott, declarou que a esterilização forçada das mulheres indígenas é uma violação muito grave dos direitos humanos. “Sabemos que os pacientes desses grupos podem enfrentar barreiras sistêmicas para ter acesso aos serviços médicos, como o racismo e a discriminação. Todos nós temos um papel a desempenhar para garantir que os povos nativos recebam atendimento de qualidade e sem preconceitos”, assinalou.

O médico exclamou após realizar o procedimento de ligadura de trompas: 'Cortadas, amarradas e queimadas. Pronto. Não passará mais nada por aí”

William Olscamp, porta-voz do ministério, comentou que o órgão está determinado a trabalhar com todos os setores para melhorar as normas de serviços de saúde para os povos indígenas. No entanto, detalhou os diferentes níveis de competências: “No Canadá, todas as medidas sanitárias devem ser tomadas de forma consensual, já que os serviços são oferecidos principalmente pelas províncias e territórios, à exceção das reservas. Como só os médicos praticantes podem exigir que seja realizada uma intervenção como a ligadura de trompas, também devem ser consultados os grupos que regulam essa profissão. As políticas de consentimento, por sua vez, são administradas localmente, nos hospitais. É por isso que as gerências dos hospitais e seus supervisores também devem contribuir para evitar essa prática”.

Em outubro de 2017, duas mulheres entraram com uma ação contra o Governo de Saskatchewan, as autoridades regionais de saúde, alguns médicos e o Governo federal. Elas afirmam que sofreram esterilização forçada e pedem uma indenização de 7 milhões de dólares canadenses (20 milhões de reais) para cada uma. Segundo o processo, o procedimento médico teve um impacto considerável em sua saúde física, mental e emocional, além de acabar com sua possibilidade de ter mais filhos e afetar seus relacionamentos.

O processo inclui detalhes sobre essas experiências. “Em 2001, a afetada deu à luz por parto natural e foi levada à sala de cirurgia pouco tempo depois para ser esterilizada. Ela protestou, mas ninguém lhe deu atenção. Ela não se lembra de ter assinado a autorização. O médico exclamou após ter feito o procedimento de ligadura de trompas: ‘Cortadas, amarradas e queimadas. Pronto. Não passará mais nada por aí’”, assinala o documento. Outra descrição, sobre um caso ocorrido em 2008: “Os profissionais de saúde lhe falaram sobre o procedimento quando ela estava em situação de vulnerabilidade. Pediram sua aprovação por escrito momentos antes de que ela fosse submetida a uma cirurgia de emergência, enquanto lhe administravam opiáceos em meio a uma dor associada ao trabalho ativo de parto”.

Alisa Lombard pertence ao escritório Maurice Law, que preparou a ação judicial. Trata-se do primeiro escritório de advocacia do Canadá fundado por membros de povos indígenas. “Até agora, 70 mulheres entraram em contato conosco. A maioria é da província de Saskatchewan, mas também há mulheres de Columbia Britânica, Manitoba, Alberta e Ontário. O caso mais recente teria ocorrido em 2017”, afirma Lombard. A demanda ainda não foi admitida como um recurso coletivo. “Temos de aguardar a decisão do juiz, já que ele deve estudar muitos elementos. Também existe a possibilidade de chegar a um acordo fora dos tribunais”, acrescenta. Nos próximos dias, Lombard estará em Genebra para expor essas esterilizações perante um comitê das Nações Unidas. Falará sobre uma prática deplorável que se acreditava estar erradicada havia várias décadas no Canadá.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_