O chef do sertão quer que você coma cactos
Como Timoteo Domingos, um jovem cozinheiro alagoano, está revolucionando a gastronomia de raiz utilizando ingredientes pouco explorados do sertão brasileiro
Depois de comer uma lasanha de quiabo acompanhada por uma cerveja de cacto, a sobremesa do dia é xique-xique, ouricuri, beldroega e fruto de cabeça de frade frescos, colhidos na hora. Para quem prefere algo mais doce, a opção é o brigadeiro de palma, imerso em calda de xique-xique com folhinhas de velande. Se você pouco entendeu dos ingredientes desse cardápio, é porque não está habituado a ver chegar à mesa pratos feitos à base do que há de mais sertanejo entre os vegetais: os cactos.
Esse tipo de suculenta é a matéria-prima de muitas receitas criadas pelo chef Timoteo Domingos, 21. Nascido no pequeno município de Maravilha (AL), com pouco mais de 10.000 habitantes, Domingos cresceu cozinhando com a avó. Com ela, aprendeu o que muitos chefs estrelados de grandes restaurantes cosmopolitas se gabam por fazer: a chamada cozinha patrimonial, ou cozinha de raiz. “Timoteo, sim, é um chefe de cozinha patrimonial”, diz a gastrônoma Ana Cláudia Frazão, autora de diversos livros sobre cultura gastronômica. “Ele se tornou um pesquisador e esses ingredientes que ele usa fazem parte das necessidades dele e da família dele”.
Na cozinha da avó, Domingos aprendeu a fazer sarapatel, bolo de macaxeira, bode, cocada, doce de leite e bolos. Trabalhando na roça da casa onde morava com os avós, os pais e os irmãos, passou a conhecer as plantas que anos mais tarde seriam usadas como principal insumo para suas criações culinárias.
A descoberta dessas receitas com alimentos que nas prateleiras de supermercados de grandes cidades são chamados de PANCs, ou plantas alimentícias não convencionais, aconteceu para Domingos por necessidade, quando ele se mudou com a família para Canindé de São Francisco. O município sergipano é margeado pelo Rio São Francisco e faz parte do chamado polígono das secas. Lá, ele conta que faltava dinheiro para comprar os insumos de algumas das suas criações gastronômicas. “Eu não tinha dinheiro para comprar ingredientes que não tinha na roça, como leite condensado, por exemplo”, conta. “Então eu vendia cocada na porta da escola para, com o dinheiro, comprar o que faltava para as minhas receitas”.
Um dia, porém, não tinha coco suficiente para o doce. Inventivo, o chef decidiu colocar xique-xique —uma espécie de cacto— na receita. “Ralei e misturei com o coco. As pessoas não perceberam e até acharam que ficou mais cremosa, mais molhada”, diz ele. “Aquilo foi um estímulo para eu começar a fazer as receitas que eu rabiscava no caderno”. Logo surgiram outras receitas com o que ele ia encontrando, como o brigadeiro de casca de melancia.
Com o tempo, as pessoas começaram a bater na porta da casa dele atrás dos doces que ele preparava. Com as duas mãos na massa, Domingos decidiu estudar gastronomia em Maceió e depois em Aracaju, onde trabalhou em um restaurante. Mas um AVC, aos 19 anos, forçou o jovem chef a se afastar da cozinha e voltar para Canindé de São Francisco. Embora tenha ficado longe do fogão, não largou da cozinha. Fundou o projeto Gastrotinga, que busca valorizar a agricultura e ingredientes locais, por meio dos agricultores da região, e levar esses alimentos para restaurantes de todo o país. “Queremos apresentar esses produtos às pessoas e despertar o interesse delas de virem à caatinga e levarem isso para todo o Brasil”, diz ele.
A "princesa do sertão"
Timoteo Domingos, o chef do sertão é um entusiasta dos cactos. Coxinha, cerveja, sopa, doces, ceviche, e até picolés têm algum tipo de cacto como ingrediente. A palma, uma das espécies, é chamada pelo chef de “princesa do sertão”. Mas se hoje ele tem orgulho de usar a planta em tantas receitas, nem sempre foi assim. “No início, quando eu fazia alguma comida e dizia que tinha palma, as pessoas não queriam provar porque diziam que era comida de vaca, de animal”, diz. “Aí eu não falava pra ninguém que usava esse ingrediente”.
Mas Domingos estava certo de prestigiar o cacto. No final do ano passado, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) reconheceu a palma como um alimento do futuro. A resistência a climas secos, e a grande quantidade de água que essa espécie de cacto retém, são as principais qualidades para o reconhecimento. Sem saber do endosso da ONU, Domingos, há algum tempo, já dizia “eu como cactos”. Agora, ele quer que você coma também.
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