A deliciosa culinária que chega ao Brasil fugindo da guerra, repressão e fome
Vindos da África, Venezuela e Oriente Médio, imigrantes trazem na bagagem pratos típicos que caem no gosto do brasileiro
No início de 2016 Natali Torrellas se viu encurralada. Aos 23 anos, a moradora de Puerto Ordaz, na Venezuela, não conseguia enxergar nenhum futuro para si ou para a família. Mesmo com diploma universitário a jovem, que trabalhava em um escritório de contabilidade, sofria com a grave crise econômica e política que arrasou o país. "Um quilo de frango custava 800.000 bolívares. Meu salário era de 2 milhões. Dá pra ter uma ideia da dificuldade", diz. Com o tempo, Torrellas e sua família começaram a perder peso. Os remédios do sogro, diabético, precisavam ser enviados do exterior por algum amigo ou parente - "Nos hospitais muitas vezes não tinha sequer soro". "Foi quando eu e meu marido decidimos emigrar para o Brasil e tentar alguma coisa nova", afirma.
O casal chegou a Fortaleza em novembro de 2016 e, apesar da falta de experiência no ramo culinário, decidiu abrir um food truck de comida típica venezuelana chamado Toston. "Além de quase não ter nenhum conterrâneo nosso aqui, vimos que as pessoas não conheciam nossa comida. E em meio a tantas notícias ruins, é bom conseguir atrelar o nome da Venezuela a algo bom, como a comida", diz. Localizado no Imprensa Food Square, em Dionísio Torres, bairro da região central da capital, o Toston, cujo carro chefe são as arepas (massa de milho com recheios variados) caiu no gosto do cearense. Segundo a jovem, o prato apresenta uma versatilidade útil para os venezuelanos, já que em tempos de crise é possível recheá-la "com qualquer coisa!".
A mais vendida, a arepa reina (rainha em espanhol) custa 18 reais, e é fartamente recheada com frango, abacate e queijo. A saudade da família é grande, mas Torrellas agora consegue ajudar os parentes que ficaram na Venezuela com remédios comprados no Brasil e eventualmente algum dinheiro.
Torrellas não é uma exceção. Com crises políticas e conflitos armados varrendo o globo da América Latina à África, passando pelo Oriente Médio, o Brasil, com sua relativa estabilidade, recebe refugiados e migrantes de diversos países. Muitos, como a jovem venezuelana, encontram na comida seu sustento —e uma forma de manter os laços com a terra de origem.
Da República do Congo - também conhecido como Congo-Brazzaville -, veio Pitchou Luhata Luambo. O professor de francês, advogado e militante dos direitos humanos fugiu para o Brasil no começo dos anos de 2010. Sua terra natal, rica em diamantes, vive desde a década de 1970 forte instabilidade política, com golpes de Estado, assassinato de presidentes e conflitos armados vitimando a população do campo. Aqui Luambo abriu o restaurante Congolinária - Descobrindo os Sabores do Congo (avenida Professor Alfonso Bovero, 382, Pompéia, zona oeste de São Paulo). Foi também no Brasil que ele entrou em contato com o veganismo, e fez de seu estabelecimento um baluarte da culinária sem crueldade com animais.
Mas não espere encontrar lá uma comida sem graça. Da cozinha do restaurante sai nhoque de banana da terra - criação da chef Marie Luambo - e vários pratos típicos do Congo, como o Kuku (arroz branco cozido no suco de gengibre, feijão preto refogado no azeite de dendê, legumes, shimeji e funghi e um acarajé servido em cama de quiabo refogado na pasta de amendoim), que custa 33 reais. Para os mais animados há o Tangawisi, um drink de abacaxi, gengibre e cachaça artesanal.
A adaptação ao Brasil, no entanto, não foi simples. "Nós, refugiados negros, enfrentamos muitas dificuldades na adaptação enquanto imigrantes em qualquer lugar do mundo, pois carregamos o peso e a dor da sermos discriminados pela pigmentação da nossa pele", escreveu em seu blog. Além de se dedicar ao restaurante, Pitchou também milita pelos direitos dos refugiados, e se articula com movimentos sociais como a Frente de Luta por Moradia, para tentar garantir uma acolhida digna para os que chegam aqui fugindo da fome ou guerras.
Também do outro lado do mundo veio Mohammed Othman, 30. Vítima de um dos conflitos mais longevos da história contemporânea, ele é nascido e criado em Sbeinah, um campo de refugiados palestinos nas proximidades de Damasco, na Síria. Lá o jovem viveu os horrores da guerra de perto. Desde o início dos anos de 2010 o local se tornou uma das linhas de frente dos embates entre o Exército da Síria Livre e as tropas de Bashar Al Assad, e os bombardeios e ataques ao bairro densamente povoado ceifaram a vida de três primos de Mohammed. Para sobreviver, a família ainda se refugiou em um campo palestino no Líbano, mas a situação se tornou insustentável. “Quando fomos, já estavam lá dois milhões de refugiados do conflito sírio. Isso em um país muito pequeno que não tem nenhuma estrutura para receber essas pessoas”, diz o jovem. Até que em setembro de 2014 Mohammed e seu irmão Raame vieram para o Brasil.
A chegada não foi um mar de rosas. “Ficamos em Guarulhos, inicialmente. Conhecemos alguns árabes, outros refugiados africanos. Demoramos para estabelecer relações com brasileiros”, conta. Em 2015 os irmãos foram morar na ocupação Leila Khaled, na Liberdade, região central de São Paulo. Na época começaram a trabalhar com culinária árabe, e em abril deste ano abriram o Majaz, seu próprio restaurante (rua Fortunato, 88, Vila Buarque, em São Paulo). “A gente fica feliz de ver os brasileiros comendo falafel, kafta e shawarma, que são comidas que a gente come”, diz. As paredes do local são decoradas com os nomes dos campos de refugiados palestinos, e o carro chefe da casa é o falafel, bolinho de grão de bico e especiarias frito. A porção sai por 20 reais, e o sanduíche, 17 reais. “É um prato simples, bem palestino e muito gostoso”, diz Mohammed.
Satisfeito com a recepção do restaurante, o jovem não esconde a saudade de sua terra natal e da de seus pais. “Também não posso voltar para a Palestina, que é o meu país porque tem outro Estado ocupando as nossas terras”, diz, referindo-se à ocupação israelense dos territórios palestinos.
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