_
_
_
_
Ideas
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Cinquenta anos após o Maio de 68, a França está ‘entediada’ novamente?

Análise do estado de ânimo do país pré-revolução publicada no 'Le Monde' tem paralelo com a atualidade

Marc Bassets
Manifestação gaullista em Paris, em 30 de maio de 1968
Manifestação gaullista em Paris, em 30 de maio de 1968Roger Viollet (Getty)
Mais informações
O paradigma ‘esquerda e direita’ já não explica a França de Macron
Ferroviários franceses desafiam Macron com greves em série
Anne Hidalgo, prefeita de Paris: “As cidades são o antídoto para o populismo”

Apenas os melhores jornalistas são capazes de diagnosticar em 996 palavras – 12 parágrafos, 6.180 caracteres – o estado de ânimo de um país. Somente os melhores possuem a rara capacidade de percepção, o sensor para captar as correntes profundas que acabam definindo um momento da história. E apenas os melhores, como os grandes clássicos da literatura, dão origem às mais variadas interpretações, a ponto de seus textos, lidos com perspectiva, poderem significar uma coisa e todo o contrário. O artigo em questão foi o diagnóstico mais agudo da França pré-revolucionária do inverno de 1968, ou um dos mais descomunais erros de análise da história do jornalismo.

Quando a França se entedia... é o título do texto que Pierre Viansson-Ponté, experiente jornalista do Le Monde, publicou na primeira página do vespertino parisiense na edição datada de 15 de março de 1968. O artigo foi uma demonstração do jornalismo francês mais clássico: informava sem sobrecarregar com dados; interpretava sem opinar; era claro e, ao mesmo tempo, com um estilo refinado. Viansson-Ponté descreveu uma França afundada na letargia e no tédio, uma espécie de fim da história 25 anos antes de Francis Fukuyama ter popularizado o termo. Um país próspero, sem guerras, sem tensões políticas, sem conflitos sociais. O paraíso, ou o inferno.

Seis semanas depois da publicação do artigo, explodiu o Maio de 68, uma revolta inicialmente estudantil, depois operária, e finalmente uma crise política que colocou a V República à beira do abismo. A sociedade conformista e melancólica retratada por Viansson-Ponté, a França que se entediava profundamente, organizou de repente uma desenfreada quermesse revolucionária – a antítese do tédio – que concentraria, em poucas semanas, todos os sonhos e aspirações de uma parte da juventude ocidental do momento e ajudaria a colocar em movimento muitas das transformações sociais – da igualdade de gêneros à cultura do eu e do individualismo – que definem o mundo em que vivemos hoje.

Pode parecer que, 50 anos depois, a França está entediada novamente. Tem um Governo forte, como o de 1968, sem oposição, e com um presidente seguro de si, quase monárquico. Somente agora, 11 meses depois que Emmanuel Macron venceu as eleições, o descontentamento com suas reformas começa a ser visível pouco a pouco. Mas os problemas existenciais que angustiavam os franceses há alguns meses – a fratura social, as divisões étnicas e os guetos jihadistas, um pessimismo que parecia endêmico e um declínio inexorável – parecem coisa do passado. Os alertas antiterroristas continuam ativos desde o verão de 2016, a economia cresce, o desemprego cai e o presidente é admirado no mundo.

Os problemas existenciais parecem coisa do passado. A economia cresce, o desemprego cai e o presidente é admirado no mundo

A França se entedia? Não, respondeu há poucos dias Frédéric Dabi, vice-diretor geral do instituto de pesquisa de opinião Ifop. “A França espera...”, acrescentou. Este, disse, seria hoje um título mais adequado para o artigo de Viansson-Ponté. Ou melhor: a França está à espera... De quê? Do que vai acontecer com as reformas de Macron. De que a economia continue crescendo e o desemprego caindo. De que seja superada a fratura entre a França de cima e a França de baixo, entre a França das cidades e a França periférica.

O ensaísta Alain Minc, considerado até recentemente como o apóstolo da globalização feliz, analisa o mal-estar em seu último livro, Une Humble Cavalcade dans le Monde de Demain (Uma Humilde Cavalgada no Mundo de Amanhã). “Não é uma novidade na história: o capitalismo é uma máquina que fabrica eficiência e desigualdade”, escreve. E constata, na França de 2018, “sintomas de uma onda estrondosa, de uma frustração que sacode uma geração, de um clima pré-1968”.

Uma foto da França em março de 2018 poderia ser aquela oferecida pelo Insee (Instituto Nacional de Estudos Estatísticos e Econômicos) em seu relatório anual França, Retrato Social. A última edição se concentra no que chama de França mediana, isto é, a que se encontra na mediana de renda, a meio caminho entre os mais ricos e os mais pobres. Pertencem a ela 18,5% da população. É uma França que ganha entre 1.510 e 1.850 euros líquidos por mês. Mais próxima dos pobres no nível educacional, na profissão, se é que trabalham, e em sua visão do futuro, e mais próxima dos ricos na taxa de emprego, na raridade das famílias monoparentais ou no acesso tanto a produtos de primeira necessidade quanto à propriedade da moradia.

Outro relatório recente, escrito pelo pesquisador Jérôme Fourquet e publicado pela Fundação Jean-Jaurès, disseca outra fratura, a cultural, que vai para além das desigualdades econômicas, menores na França em comparação com outros países desenvolvidos. O relatório, intitulado1985-2017: Quando as Classes Favorecidas Fazem Secessão, descreve um “processo invisível” que levou a um “separatismo” das elites.

Os espaços de troca entre as diferentes Franças, como o serviço militar ou as colônias de férias, desapareceram ou entraram em declínio

As elites vivem nos mesmos bairros e cidades e são educadas nas mesmas escolas. Se relacionam, se casam e se reproduzem entre si. Espaços de troca entre as diferentes Franças, como o serviço militar ou as colônias de férias, desapareceram no primeiro caso ou entraram em declínio no segundo.

Um diagnostico de hoje como o que Viansson-Ponté fez em 1968 poderia falar da fratura étnica e da presença de jihadistas nos guetos, mas seria incompleto caso esquecesse os temores – e riscos – do francês médio de cair na precariedade, deduzidos do relatório do Insee, ou da secessão ou separatismo, como diz Fourquet, entre as classes sociais. Essa segregação ajuda a explicar o mal-estar político de hoje, e não apenas na França.

“O que caracteriza atualmente nossa vida pública é o tédio. Os franceses estão entediados”, começava em 15 de março de 1968 o artigo Quando a França se entedia... de Viansson-Ponté. A França, argumentou ele, não participava naquele momento das convulsões globais no Vietnã, na América Latina ou na Ásia. Vivia em uma espécie de bolha de ignorância e paz. “Em todo caso, são problemas deles, não nossos...”. Na França, então, o Governo era estável e os trabalhadores, entorpecidos pela televisão, obedeciam às regras e às autoridades, como os estudantes. O tédio era palpável na juventude. Na Espanha, Itália, Bélgica, Argélia, Japão, Estados Unidos, Egito, Alemanha ou Polônia, escreveu o jornalista: “os estudantes se manifestam, se mexem”. Na França, por outro lado, nada: apenas “se preocupam em saber se as garotas nos [campi de] Nanterre e Antony poderão ter livre acesso aos quartos dos rapazes”. O problema, concluiu, era que “sem entusiasmo não se constrói nada”. “Finalmente, e isso foi visto, um país também pode acabar morrendo de tédio”, dizia a frase final.

A genialidade do artigo era que, sem saber, o autor havia detectado os sintomas da revolta que estava prestes a explodir. O diagnóstico do mundo de hoje está por ser escrito.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_