_
_
_
_
_

Líder de Myanmar e Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi se cala diante da ofensiva contra os rohingyas

Uma transição que era considerada modelo apodreceu. A crise dos refugiados rohingyas é uma atrocidade e um exemplo de limpeza étnica, mas deu grande popularidade aos militares birmaneses

Refugiados rohingyas chegam a Bangladesh em 1º de outubro.
Refugiados rohingyas chegam a Bangladesh em 1º de outubro.KEVIN FRAYER (GETTY)
Naiara Galarraga Gortázar
Mais informações
A dama da decepção: uma Nobel da Paz criticada por seus pares
Minas antipessoas e hospitais lotados: o drama dos rohingyas em terra de ninguém
Famintos e amontoados: crise dos refugiados de Myanmar supera capacidade de ajuda humanitária

Ela era o símbolo perfeito da luta não violenta dos oprimidos. A Dama contra os militares. Encarnava a vitória da democracia frente a uma ditadura cruel. Mas agora o feitiço se quebrou. A mulher que venceu o Exército com sua palavra e com a ajuda das sanções internacionais não impediu que os militares promovessem uma operação de “limpeza étnica de manual”, conforme definiram as Nações Unidas. Tampouco criticou o ocorrido. Aung San Suu Kyi, 72 anos, não é a presidenta de Myanmar – por causa de uma artimanha constitucional criada por seus antigos inimigos e hoje aliados –, porém comanda o colegiado que controla o poder na antiga Birmânia. Para decepção de seus defensores, olhou para o outro lado enquanto uma minoria muçulmana, da etnia rohingya, era sistematicamente expulsa da sua terra, numa política de terra arrasada.

Longe dos holofotes, o êxodo continua. Colunas de famílias – mulheres, homens e crianças, muitíssimas crianças – marcham com meia dúzia de pertences por uma língua de terra rodeada de água. As imagens gravadas com um drone pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) impressionam. Recordam a fuga de Ruanda. Essas pessoas fogem de Myanmar, onde viviam há gerações, para Bangladesh. Começou em 25 de agosto, como um êxodo quase bíblico, atiçado pela represália militar a ataques do braço armado rohingya. Em menos de um mês, meio milhão de pessoas deixaram tudo para trás em aldeias incendiadas pelos soldados. Agora persiste a conta-gotas. No fim de semana passado, 2.000 pessoas cruzaram a fronteira. Os 607.000 rohingyas chegados agora (quatro vezes o número de migrantes através do Mediterrâneo neste ano) se somam aos 200.000 instalados em Bangladesh desde episódios anteriores.

O ódio aos rohingyas é um potente fator de coesão em Myanmar, uma ex-colônia britânica com 60 milhões de habitantes, encaixotada entre a China e a Índia. Um mosaico com 135 etnias reconhecidas, entre as quais não se encontra essa minoria. “Existe entre muitas minorias étnicas e religiosas um apoio majoritário às políticas do Governo de coalizão da Liga Nacional Democrática [o partido de Aung San] e inclusive aos militares. A discriminação contra os rohingyas é quase uma posição de consenso. Nesse sentido, a desumanização dos rohingyas foi quase completa”, diz por e-mail Nicholas Farrelly, diretor do Centro de Pesquisas de Myanmar da Universidade Nacional da Austrália.

Os historiadores explicam que esse processo começa pela discriminação institucionalizada, prossegue com a desumanização e a expulsão e culmina com a eliminação na história oficial de qualquer rastro da existência da minoria perseguida.

Para muitos birmaneses, os muçulmanos rohingyas representam uma ameaça, um temor agitado por radicais budistas liderados por monges

A Birmânia cassou a cidadania dos rohingyas em 1982; transformou um milhão de indivíduos, a população que vivia em Myanmar antes da atual crise, na maior comunidade apátrida do mundo. Em 2012, 10% deles foram internados em campos de detenção, sem liberdade de movimento, educação ou saúde. Para o birmanês médio, o muçulmano rohingya é uma grande ameaça. Um medo que os ultranacionalistas budistas liderados por monges exploraram com gosto depois da ditadura, graças à liberdade de expressão e ao Facebook. Até o nome lhes é negado. Seus compatriotas os chamam de bengaleses, os consideram estrangeiros, cidadãos de Bangladesh chegados do outro lado do rio, embora vivam há várias gerações em Rakhine, um Estado que se debruça sobre a baía de Bengala. A ganhadora do Nobel da Paz de 1991 visitou a região nesta semana pela primeira vez desde que lidera Myanmar.

Esta zona fértil, que foi um vibrante núcleo de comércio e cenário de periódicos confrontos entre budistas e muçulmanos, é um dos Estados birmaneses mais pobres.

Tampouco Aung San os chama por seu nome. “A pedido da conselheira estatal [Aung San], a comissão não usa bengalês nem rohingya, e sim muçulmanos”, observa Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, em um relatório sobre como confrontar a questão dessa minoria.

A expulsão não parece improvisada, nem obra de soldados ou comandantes insubordinados. A ONU constatou “um padrão consistente e metódico” de assassinatos, torturas, estupros e incêndios intencionais. Os testemunhos dos sobreviventes apontam para atos bárbaros, como atirar bebês vivos em fogueiras antes de estuprar sua mãe e irmãs. A altíssima taxa de natalidade dos rohingyas enerva os birmaneses.

Em 1982, a Birmânia cassou a cidadania dessa minoria, transformando um milhão de pessoas na maior comunidade apátrida do mundo

Há pouco tempo, algo impensável aconteceu. A ofensiva contra os rohingyas transformou os militares nos novos heróis nacionais. Os mesmos que confinaram durante 15 anos essa líder tenaz, de aspecto frágil e inglês impecável, numa casa de Yangon e que em 2007 abriram fogo contra manifestantes pacíficos liderados por monges budistas são hoje saudados em manifestações gigantescas, com música militar de fundo. Seria possível dizer que cumpriram sua missão.

Os rohingyas se foram, e nada indica que vão voltar por vontade própria. O Governo começou a colher os arrozais que cultivavam em suas aldeias antes de fugir desse pogrom. “Antevejo que a maioria dos rohingyas viverá em Bangladesh em longo prazo”, diz o professor Farrelly, que exige “uma investigação independente e imediata” sobre o que considera uma limpeza étnica, “por mais que isso incomode a alguns no Governo de Myanmar”. E recorda que a maioria dos rohingyas que deixaram Myanmar nas últimas três décadas quase nunca conseguiu retornar.

Jeff Crisp, ex-alto-funcionário do ACNUR e pesquisador do Centro de Estudos de Refugiados de Oxford, adverte para o risco de que Myanmar e Bangladesh pactuem a volta forçada dos refugiados, “algo que ocorreu no passado e que o ACNUR deve assegurar que não volte a acontecer”. As 800.000 pessoas que se instalaram como puderam em precárias tendas representam um desafio para a ONU e as ONGs. São também uma bomba-relógio para Bangladesh, um país paupérrimo, com graves problemas ambientais e uma população que aumenta velozmente. Essa nação de maioria muçulmana é o quinto maior emissor de migrantes que chegam à Europa pelo Mediterrâneo.

A expulsão dessa minoria representa um forte revés para uma transição democrática que parecia servir de modelo. As críticas internacionais são calibradas, ninguém quer enfraquecer as autoridades civis. No final de 2010, enquanto o mundo olhava absorto para as primaveras árabes, os militares birmaneses começaram a renunciar parcialmente ao poder e empreenderam uma transição pacífica. Libertaram Aung San Suu Kyi, legalizaram sua Liga Nacional para a Democracia, permitiram que ela disputasse e vencesse as eleições de 2015. As sanções foram revogadas, um imenso mercado virgem se abriu aos investimentos estrangeiros, vieram as liberdades, os celulares, a Internet e o turismo de massa. O bem havia vencido os soldados. Mas esta imagem ocultava grandes dificuldades. As melhoras econômicas demoraram; tornar o país pacífico e coeso seria uma tarefa hercúlea… e o caso de sucesso perdeu brilho com vários episódios de violência. Os choques inter-religiosos em Rakhine, em 2012, sob a liderança de um monge apelidado de Bin Laden budista, resultaram na destruição de milhares de moradias de muçulmanos. Em 2015, milhares de outros fugiram por mar para os países vizinhos. A Dama se calou.

Enquanto isso, Aung San recebia finalmente o seu Nobel da Paz, após 21 anos de espera. E seu partido arrasou nas eleições de 2015. Após enormes sacrifícios pessoais, ela era nomeada conselheira de Estado, o cargo mais poderoso do Gabinete. Praticamente repetia o seu pai, o general Aung San, pai da Birmânia independente. A transição democrática de manual apodreceu. Primeiro o silêncio, e depois a cumplicidade, transformaram a Nobel em uma pária. Seu país volta a estar na mira. Os Estados Unidos cogitam reimplantar sanções. Myanmar não voltará a ser um Estado pária, mas o ostracismo espreita.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_