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Coluna
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Será que importa para Deus se as hóstias são feitas de pão de trigo, de cevada ou de milho?

Em nenhum dos Evangelhos está escrito que o pão que Jesus dividiu com os discípulos era de trigo

Juan Arias
Reprodução

O Vaticano, que parece ter tempo de sobra para tratar as questões importantes que afligem os cristãos, publicou um documento papal, defendendo que as hóstias da missa devem continuar sendo de farinha de trigo com glúten, sem levar em conta os católicos celíacos.

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Ninguém deixa de notar que a Igreja tem hoje problemas bem mais sérios do que discutir se as hóstias devem ser de trigo como se, ademais, não houvesse outro pão além desse. Sem contar que, com toda certeza, o pão que Jesus comia quando era criança, em sua casa, e mais velho pelas ruas da Palestina era de cevada, pois era o que os pobres comiam. Só os ricos comiam pão de trigo.

Sempre foi assim entre os pobres do mundo todo. Lembro que na minha infância, durante a Guerra Civil Espanhola, o pão de trigo e branco era apenas para os ricos da cidade. Os agricultores pobres comiam, quando podiam, pão de cevada, centeio ou milho.

No precioso livro Memorias dun neno labrego (Memórias de um menino camponês), de Xosé Netra Vilas, traduzido para várias línguas, é contada em duas linhas a cara do filho do senhor rico da aldeia no interior da Galícia: “Um rapaz muito limpinho que come pão de trigo, bebe leite com café e não precisa se levantar cedo para levar o gado para pastar”.

Em nenhum dos Evangelhos cristãos está escrito, na verdade, que o pão que Jesus dividiu com os discípulos na Última Ceia era de trigo. Certamente não era porque Jesus, como seu grupo de discípulos, era pobre e às vezes nem tinha o que comer. O mais seguro é que fosse de cevada.

A Eucaristia foi, desde as primeiras comunidades cristãs, um jantar normal, com pão e vinho, o que tivessem à mão, que as pessoas levavam de suas casas para compartilhar em memória de despedida de Jesus na Última Ceia. O importante daquela comemoração era a celebração da fraternidade.

Mais tarde, a Igreja foi transformando aquele ágape fraterno, que acontecia nas casas das famílias, em um ritual simbólico, nos templos, com uma liturgia especial, com hóstias que não parecem pão, cada vez mais distante da simplicidade, do calor e da autenticidade do amor compartilhado pelos seguidores do profeta Jesus, que não tinha nem casa e sempre privilegiou os pobres e esquecidos da sociedade.

Hoje, quando o mundo está a milhares de anos-luz daquela época, se a Igreja não possui preocupações mais importantes do que se as hóstias da Missa devem ser de pão de trigo e com glúten, que nem sequer lembra a antiga tradição onde os pobres comiam pão de cevada, é bem possível que continue perdendo interesse e influência global.

Pior do que isso, são os verdadeiros pecados da Igreja, como a pedofilia, a proibição de que mulheres sejam sacerdotes, a rejeição dos divorciados e dos homossexuais, a negligência com os mais pobres, a riqueza do clero, a obsessão com o sexo como se fosse o grande pecado do nosso tempo.

No Brasil, o catolicismo continua perdendo fiéis, segundo os especialistas porque deixou de ser a Igreja dos mais humildes e está se transformando na fé das classes médias, dos que estão em uma posição melhor na sociedade. Não serão, sem dúvida, os bizantinismos das hóstias de trigo com glúten que devolverão para a Igreja a esperança dos que confiam nela como um refúgio de paz e acolhida sem medo de serem julgados. Ela deveria ser a continuadora daquele profeta que dizia a seus seguidores que quem preferia sedas e luxos deveria ir aos palácios, já que o Filho de Deus “não tinha nem onde deitar a cabeça”.

Nem pão de trigo.

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