O ano louco em que tudo mudou (ou nem tanto)
Preparem-se. Se 2016 lhes pareceu movimentado, segurem-se, porque 2017 vai começar
O ano político, como sempre, começou em março, com a abertura dos trabalhos legislativos. De repente, de madrugada, com uma explosão midiática que prenunciava a velocidade e a voltagem que o Brasil teria neste louco 2016. No dia 4, às seis da manhã, vários agentes da Polícia Federal bateram à porta da casa de São Paulo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para depois interrogá-lo, por suposta corrupção, no aeroporto de Congonhas. O interrogatório, que durou algumas horas, sacudiu o país. E o polarizou ainda mais. O Brasil começou a ganhar uma inércia frenética que, com o tempo, ganharia ainda mais velocidade.
Após o interrogatório, Lula, já na rua — mas sem perder a condição de investigado —, com lágrimas nos olhos, acusou o juiz Sérgio Moro de querer montar um espetáculo político contra ele. “Quiseram matar a jararaca, mas não bateram na cabeça, bateram no rabo”, exclamou. Como contrapartida, as forças da oposição organizaram um protesto no domingo, dia 13, contra Dilma Rousseff (lembram-se dela?). Foi a maior marcha política da história democrática do Brasil. Só na Avenida Paulista saíram mais de 500.000 pessoas, segundo o método de medição da Folha de S.Paulo. Muitas delas com cartazes alusivos à serpente.
Dilma se enfraquecia cada vez mais, atingida por uma popularidade ínfima, uma crise econômica crescente, a falta de apoio no Congresso, as acusações de corrupção que minavam o PT e o processo de impeachment que avançava, tic-tac, irrefreável, desde novembro. Eduardo Cunha (lembram-se também dele?), então presidente da Câmara, liderava a alavanca parlamentar com mais poder do país, capaz de derrotar a presidenta da República. E todo mundo sabia que ele a utilizaria. Hoje Cunha está atrás das grades: uma verdadeira metáfora da enlouquecida montanha-russa de personalidades em queda livre em que se transformou a política brasileira durante este ano.
Num mesmo dia, 14 de março, Lula foi nomeado ministro, destituído por um punhado de juízes dizendo que ele se escondia da Justiça naquele cargo, objeto de recursos do Governo para lhe devolver o posto e presa, no final, de um limbo jurídico que invalidava sua função e deixava o ex-presidente — e o país inteiro — na indefinição. Até hoje ninguém sabe direito se o presidente mais carismático do Brasil moderno chegou a ser ou não ministro por mais de uma hora.
As agências de classificação de risco apostavam na queda, os mercados esperavam que Dilma deixasse o poder de uma vez e o mundo econômico confiava na destituição enquanto o relógio do impeachment, maquiavelicamente controlado por Cunha, continuava avançando.
Paralelamente, o até então coadjuvante Michel Temer mantinha perfil baixo para que nada na já previsível queda de Dilma o arrastasse. E se preparava em silêncio para se tornar presidente interino em menos de um mês. A mandatária, simplesmente, chamou-o de traidor enquanto advertia que não pensava em renunciar antes do tempo e que, para tirá-la do Palácio do Planalto, deveriam ser cumpridas todas as etapas do impeachment. Cunha cumpriu a sua: em 17 de abril, um Congresso em que mais de 50% dos membros tinham contas pendentes na Justiça votava a favor do impeachment numa sessão em que muitos desses deputados, para a vergonha dos cidadãos, retratavam-se justificando seu voto “por meu querido povo”, “por minha tia que me cuidou desde pequeno”, “pelos agentes de seguro” e pela “mãezinha”, entre outras frases de mesmo teor. Ninguém acusou a presidenta de roubar um real. O motivo da acusação era outro, muito mais recôndito: as manobras contábeis de seu Governo para equilibrar o orçamento do ano anterior com dinheiro do ano seguinte. As chamadas pedaladas fiscais (quem se lembra delas?).
O roteiro do impeachment foi cumprido passo a passo, com precisão de relojoeiro. Dilma cumpriu sua promessa e decidiu apressar cada etapa como sinal de protesto, negando-se a deixar o poder em marcha (como fez o ex-presidente Collor). Finalmente, foi destituída em 31 de agosto numa sessão histórica depois de pronunciar um belo discurso inútil diante dos senadores que lhe indicavam o caminho da saída. Não houve muitos protestos na rua, ou ao menos suficientemente grandes para evitar o avanço do processo. A esquerda simplesmente mostrou-se exausta, cansada de si mesma. E Temer, que já governava interinamente havia meses com um Executivo formado quase exclusivamente por homens brancos maiores de 50 anos — o que muitos viram como um sintoma claro de regressão —, dispunha-se a se transformar em presidente com todas as letras, com o objetivo declarado de arrumar a economia com base em cortes orçamentários. Na mesma tarde do dia 31, em Brasília, tomou um avião para a China a fim de participar de uma cúpula internacional e se reunir com o principal parceiro investidor do país, o que constituía uma verdadeira declaração de princípios. Os otimistas (e os mercados) pensaram que, com Dilma fora, a rua mais tranquila e livrando-se do delírio político permanente, o país começaria a andar. Os otimistas — lembram-se?
Mas o Governo monocromático de Temer, que se supunha garantidor de certa estabilidade, começou a acusar escandalosas baixas, à razão de um ministro por mês, todos acusados de corrupção ou de falar em favor de acobertar a corrupção. O penúltimo foi o ministro da Cultura, Marcelo Calero, que renunciou no fim de novembro depois de acusar o ministro da Secretaria de Governo, responsável pelas relações com o Congresso, Geddel Vieira Lima, de tê-lo obrigado a interceder para que um organismo aprovasse a construção de um edifício numa área protegida de Salvador, na Bahia, onde Vieira Lima tinha comprado um apartamento milionário. O último — até agora — foi o próprio Geddel, homem de confiança de Temer. O ambiente político de Brasília oscilou entre a neurastenia e a paranoia, com gravações comprometedoras e ministros que gravam às escondidas o próprio presidente.
O Congresso declarou guerra aos juízes e suavizou uma bateria de medidas anticorrupção, os juízes declararam guerra aos políticos por rirem deles, a população declarou guerra a todos. Voltaram as manifestações (embora muito menos numerosas), desta vez contra Temer, cada vez mais fustigado, mais questionado, mais isolado, com as possibilidades de que seu mandato não acabe em 2017 em alta. Quase em desespero, conseguiu aprovar um corte nos gastos públicos que deixa de mãos atadas todos os governantes brasileiros nos próximos 20 anos, mas que, acredita, tranquilizará de uma vez os mercados e fará com que a emperrada máquina da economia volte a girar. Mas, quase em paralelo, a confissão de um ex-alto funcionário da Odebrecht, Cláudio Melo Filho, acusando o coração do partido de Temer de aceitar doações fraudulentas para campanhas eleitorais, de traficar com leis em troca de dinheiro e, finalmente, de ser tão corrupto quanto o Partido dos Trabalhadores de Dilma Rousseff, sacudiu o país inteiro (outra vez até agora neste ano e já são...).
Os mesmos ministros, deputados e senadores que derrubaram a presidenta Dilma por uma minúcia contábil apelando à mais escrupulosa das legalidades são agora acusados de aceitar subornos para interpor e desenvolver emendas e decretos que favoreçam uma determinada empresa. O próprio Temer foi pessoalmente acusado de aceitar 10 milhões de reais para sua campanha eleitoral num jantar realizado na varanda de seu palácio em Brasília. Tudo indica que até serão divulgadas confissões ainda mais explosivas, que trarão à tona mais podridão, ainda mais nomes e ainda mais dados obscuros. Preparem-se. Se 2016 lhes pareceu movimentado, segurem-se, porque 2017 vai começar. E talvez comece antes de março.
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