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Marcos Nobre: “Em 2017, sentimento de insatisfação pode virar contra o STF”

Para o filósofo Marcos Nobre, o horizonte político brasileiro é nebuloso para o ano que vem

Marcos Nobre, filósofo e professor da Unicamp
Marcos Nobre, filósofo e professor da UnicampRafael Roncato

No final do ano passado, o filósofo e cientista político Marcos Nobre disse em entrevista ao EL PAÍS que a crise vista durante 2015 se prolongaria por 2016. Também fez a leitura de que o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que tinha acabado de ser aceito por Eduardo Cunha, era só uma tática do sistema político para se salvar da Lava Jato. Agora, depois de um ano, ele avalia que a instabilidade vista lá atrás continua e que a operação, sediada em Curitiba, continua ditando o ritmo da vida nacional. Nobre traça um horizonte nebuloso para 2017, em que até o Supremo Tribunal Federal (STF) pode se ver no centro da insatisfação popular.

Pergunta. No final do ano passado, logo depois de Eduardo Cunha deflagrar o impeachment de Dilma Rousseff, você disse que o processo era um mecanismo de autodefesa do sistema político. Funcionou?

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Resposta. Por enquanto não, mas isso não significa que o sistema político não esteja tentando encontrar alguma maneira de se autoanisitiar. O problema é que quanto mais tempo passa, quanto mais delação aparece, mais difícil fica. A ideia inicial era tentar circunscrever a Operação Lava Jato à corrupção do PT. Era uma tática semelhante a do mensalão, em que figuras de alto escalão do sistema político foram entregues em uma bandeja e o resto se salvou. Só que dessa vez não deu certo. Do ponto de vista da insatisfação popular, a rejeição antipetista de certos setores virou uma rejeição à política como tal, já que a Lava Jato se estendeu por todo lado.

P. Na sua leitura, por que lá atrás a tática teve êxito e dessa vez não?

R. Por causa da maneira de operar da Lava Jato. O juiz Sergio Moro inventou uma espécie de linha de montagem processual penal. Ele não segue os passos clássicos de um processo, como aconteceu no mensalão, em que havia toda uma investigação, depois o estabelecimento de uma teia de ação e do universo de possíveis atingidos. Moro inverteu a lógica e passou a fazer um por um: esse sujeito vai me levar a outro e esse outro vai me levar a outro. Ou seja, só vai haver uma rede, uma narrativa mais consolidada, se, ao final, for possível montá-la. Quando essa lógica foi invertida, o sistema político entrou em pânico, porque já não é possível ter horizonte algum. Ninguém sabe onde isso vai acabar e qualquer acordo fica impossível. Por isso o impeachment não deu certo e, por isso, o Governo Temer está em uma situação praticamente insustentável.

P. Apesar das delações, é um Governo que conseguiu aprovar uma mudança na Constituição para aprovar o ajuste fiscal mais duro desde 1988. A situação é tão delicada assim?

R. A lógica do impeachment nunca foi a lógica das ruas. No começo das manifestações de 2015, ninguém pedia a deposição de Dilma Rousseff. Foi só depois de Temer sair da articulação política do Governo e dizer que o país precisava de alguém para reunifica-lo, que a energia foi canalizada para essa pauta. A mensagem dele, naquele momento, foi de que a porta estava aberta e de que ele trabalharia pelo impeachment. Acontece que, uma vez que ele colocou esse mecanismo em marcha, por que ele não pode se voltar contra ele? Esse era o drama na época do Collor, mas naquela época havia um projeto no horizonte. O Plano Real estava lá e a Lava Jato não existia. Agora qual é o projeto? Não há. Só há uma agenda negativa de cortes e cortes, como a PEC 55. Isso, somado ao fato de que o impeachment de Dilma não colocou ninguém a salvo, é explosivo. Se Temer não apresentar um novo Governo, se não conseguir convencer as pessoas de que é um novo Governo, ele não vai conseguir se sustentar até 2018.

P. Você acredita que a tranquilidade das ruas, então, é tão importante neste momento quanto o apoio da Câmara?

Qual é o projeto do Temer? Não há. Só há uma agenda negativa de cortes e cortes, como a PEC 55. Isso, somado ao fato de que o impeachment de Dilma não colocou ninguém a salvo, é explosivo

R. Sim, os dois são importantes, mas se engana quem acha que não há fraturas na base. Ela está expressa hoje, por exemplo, no funcionamento miúdo do sistema político. A possível indicação do Antonio Imbassahy (PSDB) para a Secretaria Geral e a reação do centrão mostra bem isso [a nomeação do tucano foi vista como um sinal de que Temer apoiaria a recondução de Rodrigo Maia (DEM) à presidência da Câmara, almejada pelo dito centrão]. O que acontece? É que ao mesmo tempo em que existe um interesse generalizado do sistema se salvar, está impossível de achar uma saída para todos e isso cria divisões internas aos montes. Como uma união contrária a Lava Jato não está funcionando como estratégia, cada ator, conforme tiver mais ou menos implicado, está tentando uma saída diferente. Por isso a presidência da Câmara é tão importante e, por isso, essa base do Governo Temer é tão delicada. Cantar vitória agora, nos seis primeiros meses, soa precipitado.

P. Mas, por enquanto, tirando as manifestações à esquerda, Temer não enfrentou uma rejeição nas ruas como a de Dilma.

O que acontece é que está funcionando já faz algum tempo, do ponto de vista da opinião pública, a história de escolher um inimigo número um, um alvo privilegiado. Por que isso? Porque tem tanta gente delatada, tem tanta gente sob suspeita, que você não pode, do ponto de vista da indignação, dirigir sua ira contra 200 ao mesmo tempo. Uma pessoa, que representa uma ojeriza geral, acaba virando o alvo. Primeiro foi a Dilma, o Lula, o PT, depois com o afastamento da ex-presidente, virou o Eduardo Cunha. Aí vieram as eleições municipais que acalmaram o cenário e agora, depois dos enfrentamentos com o Ministério Público, o alvo virou o Renan Calheiros. Nesse momento, o que o Renan mais queria, provavelmente, era sair da presidência do Senado, submergir no sistema e deixa a poeira baixar. Mas quem será o novo alvo? Vai depender muito das delações, mas o que está parecendo é que será o Temer. E se o alvo é ele, o Governo também é. Acredito que ele tem duas possibilidades: ou dá um jeito de desviar dessa indignação, sabendo que em algum momento ela pode vir para cima dele, ou, mais uma vez, dá um jeito de se reconfigurar. De fazer com que pareça que ele está começando de novo.

R. E essa reconfiguração seria uma troca ministerial no começo do ano, por exemplo?

P. Também. Ele precisa fazer alguma coisa para apresentar um horizonte. A PEC do teto de gastos só foi relativamente compreendida pela população no momento em que ela estava sendo votada em segundo turno no Senado, mas vem aí uma reforma da Previdência. E de Previdência as pessoas entendem. É algo palpável, sensível. É de se esperar que vão reagir de outro modo. Não dá para governar na base de corte. Quer dizer, por enquanto, o Governo consegue aprovar as coisas, porque essa é a especialidade do PMDB: ser base. Mas o que vem funcionando nos últimos 20 anos no Brasil é que você tem dois polos e um centro. Os polos são representados por PT e PSDB, o centro é essa coisa meio amorfa que é o PMDB, especializada em oferecer apoio parlamentar. PT e PSDB são especialistas em coordenar, em criar agendas minimamente transversais que apontam para um lugar. É só pensar nos anos FHC, Lula e Dilma. Você sabia para onde eles estavam indo. A grande questão é que o PMDB não vai conseguir fazer isso sem esse tipo de expertise. Bom, o PT está fora do jogo no momento, então a questão é: ou o PSDB entra com tudo e coordena esse Governo, assumindo sua função clássica, ou esse Governo não dura. O dilema do Temer, no momento, passa por isso, porque ele já perdeu sua cozinha política. Não caiu só o Geddel, mas a capacidade de articulação de figuras como Eliseu Padilha e Moreira Franco também está debilitada. O Temer precisa do PSDB.

Não caiu só o Geddel, mas a capacidade de articulação de figuras como Eliseu Padilha e Moreira Franco também está debilitada. O Temer precisa do PSDB

P. E o PSDB precisa do Temer?

R. O partido está rachado de maneira irremediável e não se sabe como e nem se vai conseguir se reunificar. Hoje, Geraldo Alckmin é o candidato mais forte. Ele tem o segundo e o terceiro orçamento da união: Estado e cidade de São Paulo [comandada por João Doria, prefeito eleito e afilhado político de Alckmin]. Serra e Aécio, por outro lado, não tem dinheiro, mas são mais expressivos e estão fazendo uma aliança contra Alckmin. Para o Governador, o interessante é fugir dessa aliança, mas os dois querem tomar o Governo Temer. É um risco para o futuro? É, mas é como eles podem lutar contra a influência de Alckmin. O que isso significa? Que a política, como funcionou desde 1994, não existe mais. Os polos coordenadores estão fraturados e o centro, que sempre foi responsável por apoio parlamentar e conquista de votos, está desnorteado com a Lava Jato. Ninguém sabe até onde ela vai e nem quanto ela acaba.

P. Moro vem dizendo que ano que vem gostaria de morar nos Estados Unidos e parece pouco provável agora, mas já falou em encerrar a operação até o final deste ano.

R. Só que ela continua no STF. Ele terá que lidar com todos os processos com foro privilegiado que vão chegar lá. E aí está uma questão central do problema vivido hoje no Brasil. Quando eu digo que o sistema político não sabe o que fazer, estou incluindo também o Judiciário. Nunca considerei que a Justiça está fora desse sistema. O que quero dizer é que o STF terá problemas pela frente. No momento em que a Corte e as instâncias superiores foram concordando com os procedimentos controversos da Lava Jato, passaram a mensagem de que esse procedimento vale lá também. Como o STF vai fazer para julgar tudo o que vai chegar lá no ano que vem? O risco é que o sentimento de insatisfação que virou contra o Renan, que pode virar contra o Temer, também pode virar contra o STF.

P. Em algumas manifestações já teve pixuleco de juízes do Supremo...

R. Sim. Uma coisa é você ter um juiz de primeira instância, com dedicação exclusiva, que é o caso do Sergio Moro. Outra coisa é o funcionamento normal do Judiciário. Não foram apenas as sucessivas confirmações do trabalho da Lava Jato, mas também algumas decisões, como a prisão do Delcídio do Amaral, um senador em exercício de mandato, que colocaram em marcha uma maneira de funcionar que não cabe dentro do sistema. Acho que o STF vai receber uma bola de Curitiba que não está preparado para lidar. Se não se preparar, vai ser apedrejado. Não existe nenhuma figura, ou instituição, hoje que seja incontroversa.

P. Moro não é essa figura?

R. Não, de jeito nenhum. É só citar a divulgação do áudio em que a presidente aparecia falando, o caso do promotor que apresentou um PowerPoint esdrúxulo, e, mais recentemente, a foto de Moro em uma espécie de convescote com Aécio Neves. Essas coisas só são aceitas sem conflitos por um ódio antipetista ensandecido. Ele é uma figura controversa.

P. Uma pesquisa recente do instituto Ipsos mostra que 96% da população é favorável à Operação Lava Jato custe o que custar.

R. O que essa pesquisa mostra é que a luta contra corrupção é uma unanimidade e hoje, no Brasil, Lava Jato virou sinônimo dessa luta. Agora, quando você vai para as figuras, sempre há controvérsias. O principal é que esse sentimento é um reflexo do fato de que a maneira de funcionar do sistema político brasileiro acabou com as manifestações de junho de 2013. Essa história de um Governo que só governa com uma supermaioria não dá mais. Só que ninguém se dá conta disso, porque a Lava Jato impõe um ritmo de salvação para esse sistema. Quem está pensando no futuro, não consegue pensar na semana que vem. É um horizonte muito curto.

Hoje, poucas pessoas estão contando com a possibilidade de Lula ser candidato, mas ninguém pode colocar alternativa enquanto isso não for resolvido. A reconfiguração da esquerda depende dele

P. Enquanto o Governo Temer termina o ano envolto em turbulência, a esquerda, por outro lado, não consegue se reorganizar. Talvez o momento mais significativo do ano tenha sido a manifestação de 4 de setembro contrária a deposição de Dilma Rousseff, que reuniu 100 mil pessoas, em São Paulo. Por que isso não se repete?

R. Aquele foi um momento muito significativo, porque o campo progressista entendeu que a defesa do mandato de Dilma não era uma defesa do Governo dela ou do PT, mas uma defesa da esquerda. É uma pauta que mobiliza, que diferencia. Isso só vai acontecer de novo quando a esquerda construir, novamente, uma agenda. Qual é o programa econômico da esquerda hoje? Quais são as ações propostas para se enfrentar o retrocesso? Não há. O Lula hoje é o principal nome desse campo, continua crescendo nas pesquisas, mas a discussão fica travada porque não se sabe o destino dele. Estão todos à espera do que vai acontecer com ele. Hoje, poucas pessoas estão contando com a possibilidade de ele ser candidato, mas ninguém pode colocar alternativa enquanto isso não for resolvido. A reconfiguração da esquerda depende dele.

P. No final do ano passado, você disse durante as eleições de 2014, a rua, que protestou em 2013, foi organizada em duas calçadas distintas. 2017 pode começar com a união dessas duas calçadas entorno de uma pauta?

R. Acho pouco provável. Os últimos anos fraturaram demais a opinião pública. O que pode acontecer, isso, sim, são manifestações que pedem a mesma coisa em dias diferentes ou em locais diferentes. Podem ter o mesmo objetivo e adotarem a pauta do Fora Temer ou se virarem contra a reforma da previdência, mas as razões serem diferentes. E as razões, na política, importam muito.

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