_
_
_
_
_

Marcos Nobre: “O impeachment é estratégia de defesa contra a Lava Jato”

Saída da presidenta não é reflexo das ruas, mas tentativa de atrasar apuração, diz ele

Neste ano aconteceu de tudo em Brasília, mas a sensação quase que geral é de que não saímos do lugar. Segundo o filósofo e cientista político, Marcos Nobre, três fatores que se auto-alimentam causam essa sensação: Lava Jato, crise política e econômica. Por isso, para começar o próximo ano, ele recomenda cabeça fresca: “O que vimos em 2015 vai se prolongar por 2016”.

Divulgação/Companhia das Letras
Mais informações
Singer: “A democracia vai pagar um preço alto se o impeachment vingar”
“Se existe uma área que dará boas notícias é a do comércio exterior”
PMDB pró-Dilma mostra força e se prepara para resistir ao impeachment
STF devolve impeachment à estaca zero e Senado decidirá sobre afastamento de Dilma
Esquerda se une contra impeachment e supera mobilização anti-Dilma em São Paulo
Janot pede afastamento de Cunha ao STF, mas decisão só sai em 2016

Em entrevista ao EL PAÍS, enquanto acompanhava pelo rádio os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal sobre os tramites do andamento do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, Nobre definiu o pedido de impedimento como um mecanismo de autodefesa do sistema político brasileiro e recomendou cautela com a Justiça. Para o professor da Unicamp, no centro de todas as decisões, o Judiciário é parte integrante da política e não deve ser visto como um árbitro externo e desinteressado do jogo.

Pergunta. O ano passou e a sensação que fica é de que, apesar do ritmo frenético dos acontecimentos, não se avançou em nenhuma questão de fato. Por quê?

Resposta. Por causa de uma conjuntura de três fatores que se reforçam em um ciclo vicioso: a Operação Lava Jato, que torna o sistema político instável, que por sua vez impede a resolução da crise econômica. Com a Lava Jato em curso, não é possível saber quem está no jogo político e quem não está, ela impede qualquer acordo minimamente estável. Enquanto ela não fizer todo seu trabalho, revelando até onde vai, o sistema político permanecerá em parafuso. Desse modo, solucionar a crise econômica é impossível. Nesse cenário, em que os acordos políticos são provisórios, durando meses, semanas, é preciso ter cabeça fria e paciência para suportar um período longo de instabilidade. O que vimos em 2015 vai se prolongar por 2016.

P. E o que significaria um afastamento da presidenta Dilma agora?

R. O impeachment, do ponto de vista do sistema político, é uma estratégia de autodefesa contra a Lava Jato. Esse é o objetivo. A Lava Jato instaurou uma desorganização política muito grande, em que cada um está tentando defender seus interesses. A questão é que essa capacidade de autodefesa é simplesmente a de ganhar tempo. Como o sistema político não consegue escapar da Justiça, o impeachment vira uma ferramenta de defesa.

P. Mas ele também está sendo pedido por uma parcela da sociedade...

O impeachment nunca seguiu a lógica de quem está na rua. Tanto é que seu acolhimento, feito pelo Eduardo Cunha e deflagrado justamente quando o PT resolveu votar contra ele no Conselho de Ética

R. Sim, é verdade. Mas o impeachment nunca seguiu a lógica de quem está na rua. Tanto é que seu acolhimento, feito por Eduardo Cunha e deflagrado justamente quando o PT resolveu votar contra ele no Conselho de Ética, tomou de surpresa todo mundo. Ou seja, não é um pedido da rua que se tornou um movimento institucional parlamentar. É um movimento parlamentar se aproveitando de uma movimentação de rua para defender seus interesses. E as pessoas percebem isso. Esse pedido de impeachment gera um duplo mal-estar. Quem defende o afastamento da Dilma não está confortável com o fato dele ser promovido, provocado e liderado por Eduardo Cunha. É só ver como as últimas manifestações pró-impeachment foram fracas. Do outro lado, quem é contra o afastamento, por acreditar que ele quebra a regra democrática, fica desconfortável porque isso não significa exatamente defender o Governo.

P. E o que fez com que as manifestações contra o Governo fossem tão grandes em março de 2015?

R. Alguns fatores. O primeiro é a eleição de 2014, que polarizou o país em questões fundamentais. O segundo é o que eu chamo de peemedebismo, uma característica fundamental do sistema político brasileiro, que impede que o desejo das pessoas se expresse de maneira satisfatória no Congresso. Essa situação de que você tem um país dividido em dois projetos diferentes e quando chega no Congresso, todo mundo apoia o Governo, seja qual for o Governo, distorce tudo. O terceiro fator é que a Dilma disse uma coisa em campanha e passou a fazer outra quando eleita. E o quarto é a irresponsabilidade do senador Aécio Neves, que estimulou esses movimentos no que eles têm de mais obscurantista. Por exemplo, existe uma crença conspiratória de que a urna eletrônica não é confiável. O que fez o Aécio? Foi e pediu auditoria. Isso só significa uma coisa: dificuldade em aceitar a regra do jogo democrático, a derrota. Outra coisa importante de dizer é que, em março, a maior parte das pessoas que foi para a rua não falava em impeachment. Era um descontentamento contra o Governo, mas sem essa palavra de ordem.

P. E junho de 2013 também não entra nessa conta?

R. Também. Junho de 2013 ocupou a rua contra um sistema político que tinha se blindado contra a sociedade. Como o sistema estava blindado, quem saiu na rua, saiu com todo tipo de opinião possível. Era gente de direita, de esquerda, de todos os lados. A eleição de 2014 começou a organizar essa rua em duas calçadas. Botou uma calçada para lá e outra para cá. Assim, março de 2015 é junho de 2013 da mesma maneira que as manifestações contra o impeachment, ou a ocupação das escolas em São Paulo, também são. Junho não é de ninguém. Ele é de quem quiser se apropriar dele. É um evento histórico que está sendo disputado conforme as narrativas. Isso mostra que aquela energia liberada em junho, não vai voltar para a garrafa. Inclusive, acredito que o trabalho da Lava Jato, por exemplo, surge na esteira desse sentimento generalizado de insatisfação popular. Como o sistema político não foi capaz de dar uma resposta, a Justiça está dando na forma de lavação. O problema é que o Judiciário só pode desmantelar, não pode construir.

Março de 2015 é junho de 2013 da mesma maneira que as manifestações contra o impeachment, ou a ocupação das escolas em São Paulo, também são

P. Não é responsabilidade demais para um só poder?

R. Sim. Uma indicação disso é que dos três poderes, a Justiça é o menos democrático. Por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça tem apenas 10 anos. Imagine que antes de 2005 não se sabia sequer o número de processos ou de funcionários que o Judiciário tinha. Ou seja, há de tudo na Justiça: setores super transparentes e outros muito retrógrados. O que acontece é que, com Executivo e Legislativo desacreditados, a Justiça ganhou uma posição de destaque como se ela fosse o representante do povo diante de um sistema político corrompido. Só que essa posição do Judiciário é muito perigosa, porque não existe um sistema político do qual ele não faça parte. A ideia de que ele é externo é mentirosa. O risco, por exemplo está em decisões como a de prender o banqueiro André Esteves. Ser citado em uma gravação é grave? Pode ser, mas é só um indício. Lá tinha citação a ministros do STF, ao vice-presidente, ao Romário. Por que só o Esteves foi preso? É uma decisão política.

P. E o caso do senador Delcídio do Amaral?

R. Também achei a prisão equivocada. Prender um senador em exercício de mandato é algo gravíssimo. Pode ser que ele tenha culpa no cartório? Pode. Para alguém que diz aquela quantidade de coisas que ele falou, a chance é alta. Mas por que não fazer uma investigação policial? Você tem que mostrar que aquilo que ele falou na gravação não é bravata. Porque gravar alguém falando bravata, pode acontecer com qualquer um. Não teve trabalho policial algum. É um indicativo de que o STF está cometendo arbitrariedades. Se um senador em exercício de mandato é preso, então porque um deputado não é? Em termos de indícios, o que foi mostrado contra o Eduardo Cunha é muito mais forte. São dois pesos e duas medidas. Espero que isso seja exercício de autocrítica.

Pode-se dizer qualquer coisa, o que não se pode dizer é que o Governo Dilma bloqueou a Lava Jato.

P. E a Lava Jato não incorre no mesmo erro quando se escora tanto em delações premiadas?

R. Eu acho que não, porque existe uma diferença muito grande entre a primeira e a quarta instância do Judiciário. Como juiz de primeira instância, o Sérgio Moro tem que proceder como procede, agora, cabe as outras instâncias o controle. Se as decisões estão sendo aceitas, confirmadas, é porque isso está sendo visto como jurisprudência. O problema é quando o STF, última instância, decide prender pessoas porque elas aparecem em gravações. Afinal, quem vai controlar o STF? Tem o plenário do STF, mas é o ponto máximo onde se pode chegar.

P. E existe Lava Jato sem o Governo atual?

R. Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Pode-se dizer qualquer coisa, o que não se pode dizer é que o Governo Dilma bloqueou a Lava Jato. Agora, se alguém disser que ninguém é capaz de bloquear a Lava Jato, não é verdade. Dá pra atrapalhar muito. Dependendo de quem é indicado para a Procuradoria, por exemplo, ou de quem é nomeado advogado-geral da União. Outro Governo, um eventual Temer, por exemplo, vai obstruir? Não sei, mas o fato do movimento político, capitaneado por Eduardo Cunha, de deflagrar o impeachment é um sinal de que há alguma esperança de que, derrubando o Governo, e colocando o vice, seja possível adiar a prestação de contas com a Justiça. A questão é essa: de um lado, você tem um Governo que não fez nada para obstruir e, do outro, uma incerteza que vem junto de uma lógica que traz maus presságios.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_