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Ricupero: “A história do Brasil mostra que viver na incerteza é o nosso normal”

Diplomata e ex-ministro de Itamar Franco diz que a Lava Jato é importante pelo choque que promoveu às instituições, mas reforça sentimento de incerteza

Ex-embaixador Rubens Ricupero
Ex-embaixador Rubens RicuperoRafael Roncato

O diplomata e ex-embaixador Rubens Ricupero participou de dois dos momentos mais simbólicos da história do Brasil nos anos 1990: o Governo de Itamar Franco e o de Fernando Henrique Cardoso. A partir dessa perspectiva histórica, hoje avalia as ações do Governo Temer e os caminhos da política interna e externa do país. De intercâmbio fácil com políticos como o ministro das Relações Exteriores, José Serra, avalia também o papel do PSDB e do PT no cenário atual. Diplomata de carreira, Ricupero foi embaixador brasileiro nos Estados Unidos e na Itália, e hoje ocupa o cargo de diretor do curso de Economia da FAAP, em São Paulo.

Pergunta. Recentemente você disse em uma entrevista que o PSDB era um partido acabado ou em vias de extinção. Nestas eleições, ele foi o partido de expressão que mais cresceu no número de prefeituras. Acredita que sua avaliação foi precipitada?

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Resposta. Não. Continuo achando o mesmo. Faz alguns dias, o ex-governador de São Paulo Alberto Goldman (PSDB) disse que neste ano houve apenas uma reunião da executiva nacional do partido. Dá para imaginar isso? Em um ano tão excepcional e fora do comum, em que houve até mesmo um impeachment, e um partido se reúne apenas uma vez? Isso mostra bem o que é hoje o PSDB. Se ele teve uma vitória expressiva neste pleito foi graças às circunstâncias. Em primeiro lugar porque o povo votou para castigar o PT. Em segundo, porque aqui em São Paulo, por exemplo, escolheu-se um candidato de muita capacidade de mídia, que é um profissional dessa área, que teve dinheiro, que teve apoio da máquina. Não é um milagre. É a lógica. Ele tinha todas as vantagens. É um partido de verdade? Não é. Não há um partido de verdade no Brasil, salvo os mais expressivos de esquerda. O PT, apesar de toda sua crise, tem alas, tem militância, reúne-se, discute. Os outros? São sindicatos eleitorais, incluindo PMDB e PSDB. Isso não é política.

P. Aqui, como em outras partes do mundo, a política parece ter caído em descrédito. Neste momento, o que significa a crise do PT para o Brasil?

R. Algo péssimo. O que eu lamento no que aconteceu com o PT decorre daí, porque ele era a esperança de que o Brasil talvez pudesse caminhar para ter partidos que tivessem programas. No Brasil, não só não se conseguiu criar outros partidos desse tipo para completar o espectro político, como aquele mesmo que começou bem está acabando mal. Eu não comemoro isso e acho, inclusive, que ainda há esperanças de que o PT, sendo um partido com vários líderes, não desapareça. Mas é preciso que seu comportamento seja examinado e que não só ele, mas toda a esquerda faça uma autocrítica. Não sou eu quem está dizendo isso. Está expresso no discurso de muitas pessoas, como no do Tarso Genro (PT), ex-governador do Rio Grande do Sul.

P. A necessidade da autocrítica na esquerda está na fala de muitos comentaristas. Mas pelo que você disse, seria de bom tom uma autocrítica do PSDB também...

R. É claro, mas o problema do PSDB é que ele não tem novas lideranças. Seus grandes nomes estão muito idosos. A maior liderança do partido, o FHC, está com 85 anos. O José Serra com 74. Os outros estão beirando os 70, por aí. Não há renovação. Esse, aliás, não é um problema do PSDB, mas da política brasileira de forma geral. Quando se olham Governos na dita “velha Europa”, por exemplo, vê-se uma geração nova de pessoas entre 30 e 40 anos ocupando cargos importantes. É claro que a culpa disso está muito calcada no Governo Militar que destruiu toda uma geração intermediária. Os que ficaram são poucos. Não houve renovação e é por isso que eu, pessoalmente, penso que se esse sistema não se renovar, ele não sobrevive. Eu não acredito que as eleições de 2018, por si só, vão produzir uma solução. O que era necessário era uma boa reforma política. Ou essa gente muda pela pressão da opinião pública ou não muda e aí governar vai ficar inviável. E em algum momento vai haver uma ruptura.

P. A que tipo de ruptura você se refere?

R. A Constituição vai ser posta de lado. Vai haver uma mudança violenta do poder. Aí vai haver uma nova Constituição e é evidente que ninguém deseja isso, porque esses processos são incontroláveis. Eu não acho que dessa vez será o golpe militar. Provavelmente não. Mas pode haver muitas formas de ruptura. Algumas podem até ser de violência das ruas. Por exemplo, se o Governo não é mais capaz de pagar aposentadoria, as pessoas vão às ruas. São, evidentemente, cenários apocalípticos, mas que começam a dar sinais em alguns Estados brasileiros. É só ver a polícia fazendo greve em diferentes lugares. A gente cai sempre na mesma verdade: o que faz a diferença entre os países darem certo e darem errado é a capacidade das instituições de se reformarem. Não há nenhuma instituição que dure para todo o sempre.

P. A única reforma política que foi aprovada até agora foi a chamada “reforma do Cunha”, criticada por vários setores. Eduardo Cunha foi preso na última quarta-feira pela Operação Lava Jato. É um símbolo de como as coisas estão desorganizadas?

R. Eu não tenho nenhuma simpatia pelo Cunha, mas acredito que as razões para sua prisão são fracas. Não há algo convincente. Não me parece que ele iria fugir ou usar dinheiro proveniente de corrupção sendo que está sendo vigiado do jeito que está. Acredito que sua prisão foi para, mais uma vez, tentar se forçar uma delação. Grande parte das incertezas que estamos vivendo passa por essa rota de colisão entre o Judiciário e o sistema político. Neste momento, o juiz Sergio Moro está desempenhando um pouco e, talvez até sem querer, o papel que os militares desempenharam no Brasil. Na época dos militares havia dois teatros: o da vida política e o outro dos bastidores, o fardado, que podia intervir e interromper a peça a qualquer momento. Isso está acontecendo da mesma forma agora, só que não é mais o partido fardado, mas o togado. E isso não é meramente simbólico. Há exemplos concretos. Não à toa, a prisão de Cunha não só interrompeu os trabalhos do Congresso, como fez que Temer voltasse mais cedo de viagem ao Japão. Neste momento, a Operação Lava Jato corre com sua dinâmica própria, mas interfere no processo político a todo tempo.

P. Então o senhor tem uma visão bem crítica do papel do Judiciário neste momento?

R. Não é isso. Eu acredito que a Lava Jato é positiva e que o Judiciário, como um todo, está agindo como está por uma questão de lacuna de poder. Quando o Congresso não vota temas polêmicos, exime-se de fazer autocrítica, a Justiça tem entrado – o que, aliás, desagrada muitos juízes, como o ministro do STF Luís Roberto Barroso que declarou isso. A Lava Jato foi importante para dar um choque nas instituições. Mas pelo prolongamento desta operação, as coisas estão rumando, cada vez mais, para essa incerteza, para essa ruptura de que estávamos falando. Eu sempre lembro aquele filme do Luis Buñel, o Anjo Exterminador, em que os convidados de uma festa querem ir embora, mas, por um motivo inexplicável, não conseguem passar pela porta de saída. Essa imagem lembra o que está acontecendo no Brasil neste momento.

P. A extensão do processo é o problema, então?

R. O Moro estudou muito bem a operação Mãos Limpas, da Itália. Sabe que ela terminou mais cedo e que acabou mal: com o sistema político se unindo e cortando as asas da magistratura. Com a prisão do Cunha, eu sinto, pela primeira vez que isso pode acontecer por aqui também. Pode acontecer isso, mas pode acontecer outra coisa também, que ainda não conseguimos ver claramente. É um momento em aberto. Qual é o poder de um processo? É um poder limitado. Ele investiga, julga, condena e absolve. Ele não pode ter a pretensão de reformar as leis. O que está acontecendo é que o processo escancarou o modo de fazer política no Brasil, mas não está havendo resposta política para as questões que ele colocou. Todas as respostas são de autodefesa de um sistema, da tentativa de voltar à normalidade. Não à toa, a doação de empresas para campanhas já está sendo repensada. A ideia é que a operação fosse encerrada até dezembro, mas não acredito que isso vá acontecer. O momento é de incerteza.

P. Em um momento como esse, como avalia o fato do Governo Temer, que não foi legitimado pelo voto popular, estar propondo mudanças tão profundas quanto a PEC 241?

R. Minha impressão é de que a explicação para isso está exatamente no que estávamos falando. O momento socioeconômico é tão desesperador que ou o Congresso aprova essa medida ou a situação vai se agravar a um ponto tal que não se pode excluir, inclusive, uma ruptura muita mais drástica do regime. Não há outra solução. O dinheiro não é elástico. Nós tivemos Governos que gastaram muito além do que a arrecadação permitia. Nos Governos do PT, sobretudo no segundo Governo do Lula e no Governo Dilma, o ritmo de crescimento dos gastos do Governo foi de uma taxa de 12% ao ano, quando, mesmo nos anos melhores da economia, crescemos 4% em média. Ora, qualquer pessoa que sabe aritmética, sabe que isso não dá certo. Não é uma questão de ideologia, mas de números. Se a arrecadação para de crescer e começa a cair, se o crescimento econômico é destruído pelas políticas que foram adotadas, não há como manter as despesas e aí sim pode acontecer uma convulsão social.

P. Mas há diversos setores criticando a proposta. Por exemplo, uma crítica é que temas prioritários, mas mais espinhosos, como uma reforma na previdência teriam sido preteridos.

R. Ela também será necessária. Sem a reforma da previdência, essa PEC dos gastos não se mantém. Em relação à PEC é que tecnicamente poderia se pensar em outras soluções se a situação não fosse tão desesperadora. A meu ver, o que está a suceder no Brasil é aquela questão do pêndulo: ele foi levado muito para um lado, demasiado para o lado dos gastos, desequilibrou tanto a situação fiscal que agora vai ser necessária uma medida excepcional. Tem-se que partir da realidade. Quer dizer, no Brasil, os gastos do Governo são muito maiores do que o que entra como arrecadação. Não tem como fechar a conta. Agora, mesmo que ela saia aprovada conforme está, acredito que antes dos 20 anos de prazo, ela deve ser revista, porque as pressões serão muito fortes. Vai ser necessário flexibilizar essa medida em algum momento. Mas, para isso, antes é preciso reequilibrar as contas.

P. Apesar do momento político conturbado, você acredita que a política econômica caminha bem, então?

R. O Itamar demorou nove meses até encontrar o Fernando Henrique Cardoso para ministro da Fazenda. Desta vez, o Governo acertou na montagem de uma equipe boa na economia: ministro da Fazenda, Banco Central, Petrobras e BNDES. A prova disso é que a instituição que se tornou o símbolo do colapso do Governo Dilma é a primeira que está saindo do vermelho, que é a Petrobras. Ela é a única grande instituição brasileira que, no meio dessa crise, está tendo as ações valorizadas. Por quê? Porque ela é mais fácil de ser operada do que o Governo. A Petrobras lida com petróleo e, quando há uma boa administração, em questão de meses a coisa melhora.

P. Durante os anos Lula, o Brasil teve uma política externa muito atuante, propositiva. Críticos dizem que durante os Governos de Dilma Rousseff essa característica arrefeceu. Como vê a questão agora?

R. A situação brasileira era muito favorável no tempo do Lula e acho que ele aproveitou isso muito bem, tanto do ponto vista econômico quanto do de conquistar prestígio através dos programas sociais. A Dilma já não tinha qualidades diplomáticas e não sabia como tirar proveito da política externa. Foi uma época muito adversa também no cenário nacional e internacional. No momento atual, ainda é cedo para fazer um julgamento. Mas acredito que a política tenha sido reativa em um primeiro momento e que agora está ganhando uma face mais propositiva. Como alguns países consideraram que a mudança de Governo no Brasil foi irregular – expressando isso em notas e chegando até mesmo a ordenar a volta de embaixadores – é compreensível que a política externa tenha sido de reação. Mas agora eu creio que as coisas começam, pouco a pouco, a entrar na normalidade neste campo.

P. Onde enxerga esses sinais?

R. Houve uma aproximação com a Argentina para que o Mercosul volte a ser um bloco dinâmico e capaz de crescer. Outro ponto é a tentativa de concluir a negociação do Mercosul com a União Europeia, algo que já começou há muitos anos e que até hoje não avançou. Também vejo que outra característica tem sido, talvez por coincidência de calendário, um protagonismo grande do Michel Temer. Ele esteve na abertura da ONU, onde pôde discursar e se avistar com vários chefes de Estado. Antes já tinha estado na China e em encontro do G20. Agora voltou à Ásia para reunião dos BRICs. Por enquanto, acredito que são esses os dois aspectos principais: por um lado, uma diplomacia presidencial e, por outro, de afirmação, já que o processo de impeachment foi muito turbulento.

P. Por falar em BRICs, como você acredita que será a relação do Brasil com o bloco a partir de agora?

R. É óbvio que para o Brasil, independentemente de qual Governo esteja no poder, fazer parte de um grupo tão seleto – de cinco países grandes e emergentes – é e sempre será uma vantagem diplomática enorme. Diversas reuniões anuais são estabelecidas, além de que o bloco representa uma porta aberta para dois dos principais mercados do mundo: Índia e China. Acredito que este Governo saberá aproveitar isso, tanto é que Temer já esteve com os primeiros-ministros da Índia e China. Agora, por exemplo, há esse banco dos BRICs, que funciona em Xangai. Ou seja, há vantagens concretas e indiscutíveis nesta relação.

P. Nos últimos anos o Brasil desempenhou um papel forte na América Latina. Mas a face política do continente parece estar mudando.

R. De fato, algumas mudanças estão ocorrendo. A Argentina está reformulando sua política, o Chile enfrenta dificuldades que podem apontar para mudanças em um futuro não muito distante. Mas as coisas tendem a se estabilizar. Mesmo a Colômbia, que sofreu uma rejeição grande na questão do acordo de paz com as FARC, pode ser que ainda consiga contornar a situação. A questão mais crítica, acredito, é a da Venezuela. Ela ainda tem um horizonte muito conturbado pela frente e fica difícil de dizer o que pode acontecer por lá. Ao contrário de outros países que mal ou bem tem uma vida institucional, a Venezuela está mergulhada em uma crise bem densa.

P. De forma geral, é possível dizer que a esquerda está sofrendo nos países da América Latina. Como vê o Brasil nesse cenário?

R. Estamos vivendo um período de grandes incertezas, mas é preciso recuperar um histórico que aponta que isso, de certa forma, é a normalidade no nosso caso. Temos 31 anos desde que os militares deixaram o poder e, nesse período, só vivemos uma época de estabilidade. O José Sarney, que não tinha sido eleito diretamente, mal conseguiu terminar seu mandato. O Fernando Collor, já escolhido pelo voto popular, sofreu um impeachment. Aí tivemos nossa idade de ouro com os 16 anos de FHC e Lula. Veio a Dilma e aconteceu outro impeachment. Quer dizer, a taxa de instabilidade é muito alta. Continua tão alta quanto já era no passado. Antes dos militares, dos cinco presidentes democraticamente eleitos, só dois terminaram o Governo: Dutra e Juscelino. A história das instituições brasileiras demonstra que elas são extraordinariamente instáveis.

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