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Quando um casamento arranjado é a opção para fugir da violência sexual

Mulheres e meninas rohingyas recorrem a casamentos arranjados para fugir de estupros e agressões

Cerimônia com casal rohingya, selando um casamento arranjado, como é hábito nessa comunidade.
Cerimônia com casal rohingya, selando um casamento arranjado, como é hábito nessa comunidade.NATALIA LÁZARO

Norsimara chegou sozinha à Malásia, três anos atrás, quando acabava de alcançar a maioridade. Era solteira e fugia de um país, Myanmar, onde a vida das mulheres vale o preço que os homens podem pagar por elas. Depois de sofrer um estupro, certa tarde, Norsimara passou seis meses sem sair do único lugar onde se sentia segura, a sua casa. Finalmente, seu pai, ainda em Myanmar (antiga Birmânia), arranjou o casamento dela com outro refugiado rohingya, já instalado na Malásia. Se ficasse solteira, ela correria perigo, então aceitou a proposta e empreendeu a rota já habitual para muitas mulheres dessa etnia. Duas semanas de frio, fome e medo no navio de intermediários que a deixaram na Tailândia, para depois caminhar extenuada, durante a noite, até a fronteira com a Malásia. Sete dias depois, já na capital, Kuala Lumpur, era a noiva numa cerimônia em meio a desconhecidos.

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“É melhor casar com garotas jovens, porque assim não existe tanta diferença de idade com os filhos e elas podem cuidar deles a vida toda. As mulheres não precisam trabalhar, nós já lhes damos o que precisam, e em casa estão seguras”, comenta Mohammad, enquanto se veste para ir trabalhar.

Depois que o marido sai, Norsimara confessa, embalando o filho: “Sinto que vivo numa prisão. Nunca pudemos decidir por nós mesmas, embora queiramos. Temos que depender primeiro das decisões dos nossos pais, e depois dos nossos maridos. Vim aqui para ter oportunidades, mas na Malásia, mesmo que sonhemos, não temos futuro”.

No fim de fevereiro, 53.700 rohingyas foram registrados na Malásia pelo Alto Comissionado da ONU para os Refugiados (ACNUR). Considerados uma das minorias étnicas mais perseguidas do mundo, os rohingyas de Myanmar foram privados de sua nacionalidade e são apátridas. O Governo de Myanmar, um país de tradição budista e que atualmente inicia uma nova era democrática liderada por Htin Kyaw, implantou em 1962 – primeiro ano de um recém-encerrado regime militar – uma série de políticas que negavam a nacionalidade dessa minoria de religião muçulmana, qualificando seus integrantes como migrantes de Bangladesh, apesar de terem sido reconhecidos como um povo indígena desde que a então Birmânia se tornou independente da Grã-Bretanha, em 1948.

Considerados uma das minorias étnicas mais perseguidas do mundo, os rohingyas de Myanmar foram privados de sua nacionalidade e são apátridas

A escalada de violência de 2012 no Estado de Rakhine (antigo Arakan, território que concentra a maioria dos rohingyas de Myanmar) transformou a Malásia, país predominantemente muçulmano, no principal receptor de rohingyas que chegavam em navios de traficantes até a Tailândia. Uma vez na fronteira, eram geralmente retidos pelos contrabandistas em campos localizados na selva, até que algum familiar pagasse o resgate, numa quantia entre 4.000 e 6.800 reais por pessoa, e os migrantes fossem liberados na fronteira do país vizinho, aonde chegavam depois de uma caminhada de uma noite ou aglomerados em um caminhão. Desta forma – e apesar de a Malásia não ter assinado a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, nem seus protocolos de 1967, nem tampouco promulgado nenhuma lei interna que reconheça o status legal dos solicitantes de asilo, refugiados e apátridas –, este país do Sudeste Asiático acolhe atualmente uma das maiores populações de refugiados urbanos do mundo, procedentes de países da Ásia, África e Oriente Médio, que vivem em sua maioria instalados em apartamentos de Kuala Lumpur.

Até alguns anos atrás, os refugiados e migrantes rohingyas que partiam por mar de Myanmar eram predominantemente homens. Mas, desde a escalada de violência de 2012, a tendência de gênero mudou, e há cada vez mais mulheres e meninas fugindo da violência sexual, dos sequestros e do risco de morte a que estão submetidas no seu país de origem. “Ser mulher em Myanmar é muito duro. A família não nos deixa sair de casa a partir dos 10 ou 12 anos, quando a menstruação aparece e já somos consideradas mulheres. Na Malásia temos mais segurança, mas também há muitas mulheres que sofrem maus tratos de seus maridos dentro de casa”, diz Bibi Jamal, de 30 anos, que tinha uma vida normal até perder tudo em 2012.

Um dia a polícia foi à sua aldeia e queimou as casas com os moradores dentro. Quando ela e seu marido viram seu lar arder, largaram tudo e subiram na moto com os filhos nas costas. “Vi o fogo consumir minha própria casa. Nesse mesmo dia a polícia começou a raptar as garotas jovens para estuprá-las. As pessoas corriam como loucas por toda parte. Saímos pela porta de trás, e muita gente perdeu suas filhas”, recorda, nervosa. Bibi chegou com sua família até Yangon, a maior cidade do país, e se alojou na casa de parentes até que as autoridades percebessem que muitos rohingyas estavam escondidos lá e começaram a bater de porta em porta para prendê-los. A família então fugiu para a Malásia, com a esperança de dar um futuro melhor aos seus filhos. Mas, apesar de terem encontrado um lar seguro, as perspectivas de vida não foram prósperas. “Nunca tivemos oportunidades nem direitos, nem em Myanmar nem na Malásia. Meu único desejo é ser reconhecida como cidadã de um país no qual meus filhos possam ir à escola e ao médico se precisarem”, reivindica Bibi, com o olhar cansado após tanta luta.

Famílias rohingyas presentes há duas ou três gerações na Malásia vivem como imigrantes ilegais, sem direito a educação, saúde, trabalho e outros serviços básicos.
Famílias rohingyas presentes há duas ou três gerações na Malásia vivem como imigrantes ilegais, sem direito a educação, saúde, trabalho e outros serviços básicos.NATALIA LÁZARO

Segundo o Projeto Arakan, uma ONG independente que trabalha para melhorar a situação da população rohingya em Myanmar, entre 5% e 15% dos rohingyas que viajam por mar são mulheres e crianças. Muitas vezes retidas em acampamentos de traficantes e submetidas a abusos e explorações sexuais, elas são enganadas pelas falsas promessas dos agentes. Sem nenhum familiar que as espere na Malásia, procuram desesperadas o endereço de um conhecido qualquer que já esteja instalado no país. “As mulheres sofrem mais desvantagens que os homens, porque nunca tivemos a oportunidade de ir à escola. O dinheiro que havia em casa sempre era investido nos filhos homens, e quando chegamos à Malásia não sabemos falar inglês nem temos ferramentas para trabalhar. Aprendemos a ir atrás dos nossos homens, mas a vida de uma mulher não é isto”, diz Tasmida, representante do coletivo feminino da Sociedade Rohingya na Malásia. “O problema é que muitas mulheres continuam levando a mesma vida que em Myanmar, ficam em casa cuidando dos filhos, sem nenhuma outra expectativa. A maioria acredita que nasceu para casar. Não entendem o sentido de se formar, porque o mesmo padrão se repete ao longo de gerações”, continua Tasmida. E conclui, preocupada: “Nossas vidas dependem das decisões dos homens que temos ao lado, e isto nos transforma em alvos vulneráveis”.

Casamentos infantis na Malásia

O matrimônio infantil e arranjado entre refugiados rohingyas na Malásia é uma realidade habitual em que ambas as partes dizem sair beneficiadas. Meninas rohingyas fogem sozinhas de Myanmar em navios custodiados por traficantes, aos quais seus pais pagam cerca de 6.800 reais por pessoa, com a esperança de que suas filhas tenham uma vida melhor. “A maioria das mulheres vai a países como a Malásia para se casar porque é muito mais econômico para suas famílias. Em Myanmar são necessárias várias autorizações redigidas pelas autoridades, e além disso a família precisa pagar entre 1,5 e 4 milhões de kyats birmaneses (entre 4.000 e 12.000 reais, aproximadamente) ao marido. Além disso, se o marido pedir, a família da noiva também precisa pagar o enxoval e outros bens que ele quiser, como terras, uma motocicleta, etc.”, diz Robaidah, de 19 anos, filha de pais refugiados rohingyas, mas que já nasceu em Kuala Lumpur.

“Nunca tivemos oportunidades nem direitos, nem em Myanmar nem na Malásia. Meu único desejo é ser reconhecida como cidadã”

Como consequência do êxodo de homens rohingyas, muitos pais em Myanmar arranjam o casamento de suas filhas menores com outros refugiados, de entre 20 e 30 anos, que fugiram anteriormente para a Malásia. Casar-se neste país é muito mais fácil, já que o registro dos matrimônios rohingyas geralmente é feito dentro das próprias comunidades. “A mulher não precisa pagar nada, nem a cerimônia, nem nada. O marido se compromete a manter a sua esposa e seus filhos durante o resto de sua vida”, prossegue Robaidah. E conclui: “Se nos casamos, temos futuro”.

Por causa disso, os matrimônios rohingyas não são reconhecidos pelo Estado, o que gera complicações na hora de registrar nascimentos. Assim, muitas crianças rohingyas que nascem neste país, como Robaidah, não recebem a cidadania malaia, e por isso não têm direito a atendimento médico básico nem a educação formal. Gerações de refugiados serão analfabetas, tendo como única oportunidade de ensino os centros de aprendizagem mantidos por organizações não governamentais ou pelas Nações Unidas. “Nas ONGs ensinam inglês e alguns conceitos básicos de matemática, mas não temos recursos suficientes para pagar professores que deem uma educação regular aos nossos filhos”, denuncia Tasmida, da Associação Rohingya da Malásia.

O matrimônio infantil e arranjado entre refugiados rohingyas na Malásia é uma realidade habitual em que ambas as partes dizem sair beneficiadas

Anos à espera

Famílias rohingyas presentes há duas ou três gerações na Malásia vivem como imigrantes ilegais, sem direito a educação, saúde, trabalho e outros serviços básicos. Amontoados em apartamentos compartilhados em subúrbios da capital, expostos às explorações e à perseguição constante no setor trabalhista informal, assim como ao risco de extorsão ou detenção por parte das autoridades malaias, esperam ser reassentados pela ONU em países de acolhida (principalmente os Estados Unidos e Austrália), num processo que pode durar cerca de sete anos, ou mesmo toda a vida, e que terminará, em caso de aceitação, com o reconhecimento legal de seus direitos como refugiados e uma nacionalidade com a qual começarem a construir suas vidas.

Jainabbi é talvez a mais idosa refugiada rohingya na Malásia. Com mais de 90 anos, sempre sonhou em ser algum dia reassentada nos Estados Unidos. Chegou à Malásia com apenas 20 anos, depois de ver seu marido e seus filhos morrerem. Agora, no pequeno apartamento de um descampado nos arredores de Kuala Lumpur, vive graças à ajuda de seus vizinhos, também rohingyas, que lhe proporcionam comida e remédios quando precisa. “Já começo a esquecer a maior parte da minha vida em Myanmar. Só resta a lembrança do caos e dos tiros no dia em que fugi. Alguns homens levaram a minha irmã, e a única opção para mim foi deixar o país”, recorda, meio confusa. “Quando cheguei à Malásia”, prossegue, “levava todos os dias a foto do meu marido no bolso. Eu me sentia sozinha e sabia que me sentiria assim durante o resto da minha vida”. Jainabbi diz que já não se lembra com exatidão do seu passado, mas fala com a clareza das pessoas que construíram a voz da experiência: “Meus pais eram gente muito pobre e nunca puderam me levar à escola. Nunca soube ler nem escrever, e rezo para que isto não aconteça com outras mulheres, porque sei que, se tivesse podido estudar, hoje não estaria passando meus últimos dias nesta situação”.

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