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Bolsonaro endossa ato pró-intervenção militar e provoca reação de Maia, STF e governadores

Presidente participou de protesto contra o Congresso em Brasília no dia em que mortes pelo coronavírus passaram de 2.400. Especialistas veem crime de responsabilidade e contra a saúde pública

O presidente Jair Bolsonaro discursa durante protesto por intervenção militar, em Brasília. Vídeo: Andre Borges / AP|AFP
Daniela Mercier

Enquanto a pandemia de coronavírus avança no Brasil, com a confirmação de 38.654 casos e ao menos 2.462 mortes, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) participou no fim de semana de atos que criticam tanto medidas de isolamento social, decretadas por Estados e orientadas pelo próprio Ministério da Saúde, quanto os Poderes da República. Neste domingo, um dia depois de ter cumprimentado manifestantes que se aglomeravam em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente foi até a sede do Exército em Brasília e discursou para um grupo de defendia a intervenção militar no Brasil. Atos semelhantes, como carreatas e buzinaços, foram convocados em outras cidades e provocaram imediata resposta no mundo político. Ministros do Supremo Tribunal Federal, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e governadores criticaram de maneira mais ou menos explícita o presidente, elevando a temperatura da crise que isola o Planalto. Em iniciativa inédita, 20 governadores divulgaram manifesto em desagravo ao Congresso e repúdio a ataques feitos por Bolsonaro à Câmara e ao Senado na semana que passou.

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Brazilian President Jair Bolsonaro speaks after joining his supporters who were taking part in a motorcade to protest against quarantine and social distancing measures to combat the new coronavirus outbreak in Brasilia on April 19, 2020. (Photo by EVARISTO SA / AFP)
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“Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, afirmou o presidente, sob aplausos, buzinaço e gritos de “mito” e “a nossa bandeira jamais será vermelha”. “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil”, declarou. Parte dos manifestantes presentes levantava faixas com menção ao AI-5, ato institucional considerado o mais duro da ditadura militar (1964-1985) e que permitia o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos políticos dos cidadãos.

A participação do presidente na manifestação no Dia do Exército e a escolha do QG da arma em Brasília como local foi lido por um influente militar de alta patente da reserva como uma clara demonstração de que Bolsonaro “tenta encurralar as Forças Armadas”, ainda que sem sucesso. A mesma fonte disse esperar que o comando militar use sua credibilidade para esclarecer o papel democrático das forças ante o estímulo do “fanatismo”. Bolsonaro mantém um grupo de generais, entre eles um da ativa, no Planalto como núcleo mais próximo. Institucionalmente, o Exército têm feito poucas declarações públicas, embora esteja implicado na resposta à covid-19 ―a força terrestre tem monitorado a capacidade dos cemitérios das cidades, por exemplo. Neste domingo, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, usou a ordem do dia comemorativa para dizer que a pandemia “é uma das maiores crises vividas pelo Brasil nos últimos tempos”.

Políticos e especialistas em direito viram na atuação de Bolsonaro indícios de crime de responsabilidade, que pode levar à perda do cargo. Dois ministros do Supremo criticaram os protestos em declarações nas redes sociais. “É assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia”, escreveu o ministro Luís Roberto Barroso. "Só pode desejar intervenção militar quem perdeu a fé no futuro e sonha com um passado que nunca houve. Ditaduras vêm com violência contra os adversários, censura e intolerância. Pessoas de bem e que amam o Brasil não desejam isso”, escreveu, em sua conta no Twitter. Para o ministro Gilmar Mendes, “invocar o AI-5 e a volta da ditadura é rasgar o compromisso com a Constituição e com a ordem democrática”, afirmou. “A crise do coronavírus só vai ser superada com responsabilidade política, união de todos e solidariedade”.


O endosso de Bolsonaro aos atos encerra uma semana tumultuada na gestão da crise da covid-19, que o país vive há quase dois meses e que estava sendo marcada por embates de Bolsonaro com seu ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e com governadores, por implementaram o fechamento de comércio e de serviços —como preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS). Bolsonaro sempre defendeu a flexibilização dessas medidas.

Após demitir Mandetta e escolher o oncologista e empresário Nelson Teich, um antigo consultor de sua campanha à Presidência, para o comando da pasta, o mandatário brasileiro voltou a artilharia para o Congresso e para a oposição, acusando Maia (DEM-RJ) e o governador paulista, João Doria (PSDB-SP), de conspirarem para tirá-lo do poder. Os dois políticos estavam entre os alvos dos protestos deste fim de semana.

Maia, a quem cabe barrar ou permitir a entrada de pedidos de impeachment do presidente para análise no Congresso, repudiou a pauta do protesto e afirmou que, em meio ao aumento de vítimas da covid-19 no Brasil, não dá para perder tempo com “retóricas golpistas”. “São, ao todo, 2.462 mortes registradas no Brasil. Pregar uma ruptura democrática diante dessas mortes é uma crueldade imperdoável com as famílias das vítimas e um desprezo com doentes e desempregados”, declarou, por meio do Twitter. Há quase uma dezena de pedidos de destituição contra Bolsonaro, mas o presidente da Câmara tem dito que, por enquanto, não vê motivos para dar o sinal verde a eles.

Para Roberto Dias, especialista em direito constitucional e professor da Fundação Getulio Vargas, a presença do presidente nos atos pode configurar dois tipos de crime de responsabilidade, previstos no artigo 85 da Constituição: atentar contra o "livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário" e contra "o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais".

“Quando se fala num manifestação que apoia uma suposta intervenção militar, com cartazes que defendem o fechamento do Congresso e do Supremo, você está pressupondo o retorno da ditadura e o fim do direito de voto”, explica. Além da ameaça aos direitos políticos, argumenta, entra em jogo o direito social à saúde. “Quando ele [Bolsonaro] não só incentiva, mas como vai a uma manifestação que atrai aglomeração, que é uma forma de contágio cientificamente comprovada, está atentando contra a saúde pública”, afirma.

Dias explica que, mesmo que Bolsonaro não tenha endossado explicitamente em seu discurso a questão da intervenção, a lei 1.079/53, que também trata dos crimes de responsabilidade, prevê que essa infração ocorra diretamente ou “por fatos”. “Era manifestação claramente convocada para esse fim, que é atacar o Congresso”, afirmou.

Eloísa Machado, professora da FGV e também especialista em direito constitucional, vai na mesma linha: “A presença, apoio e endosso do presidente da República a pedidos de ruptura constitucional, fechamento do Congresso e adoção de atos institucionais autoritários são, sim, crimes de responsabilidade”, afirma. Para ela, o presidente “mostra um descompromisso total com a Constituição e com as leis do país” e pode incorrer também em crime comum, já que “descumpre orientações do seu próprio Ministério da Saúde, incitando, promovendo e apoiando infração contra medidas sanitárias”.

O grande poder simbólico da participação de um presidente da República em um protesto é enfatizado professor de direito da USP Rafael Mafei, para quem Bolsonaro desrespeita o decoro do cargo ao usar o emparedamento de adversários como estratégia política. Na avaliação de Mafei, o presidente coloca a saúde da população em risco em nome de uma aposta. “É mais um episódio em que Bolsonaro evidencia comportamentos proibidos pela lei do impeachment”, afirma, pontuando a incitação contra os Poderes e Estados e a ameaça ao direito fundamental à saúde. Apesar de considerar que a estratégia de Bolsonaro não é novidade na condução da crise do coronavírus, o professor afirma que o ato deste domingo eleva a gravidade das suas ações. “É a gota-d'água”.

Manifestantes carregam faixa em que defendem o fechamento do STF e do Congresso, em Brasília.
Manifestantes carregam faixa em que defendem o fechamento do STF e do Congresso, em Brasília. SERGIO LIMA (AFP)

Frente de governadores

A nova incursão de Bolsonaro contra as medidas de contenção da pandemia —ele tem feito passeios e promovido aglomerações desde que a crise começou— voltou a reativar uma coalizão de governadores contra o Planalto. Alvo de críticas do presidente, o governador João Doria se manifestou no Twitter contra a presença do presidente no protesto pró-intervenção militar em Brasília. “Lamentável que o presidente da República apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5”, escreveu.

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), afirmou que o presidente tenta desviar o foco da má gestão da crise. “Para desviar o foco de suas absurdas atitudes quanto ao coronavírus e a sua péssima gestão econômica, Bolsonaro resolve atiçar grupelhos para atacar a Constituição, as instituições e o regime democrático. Bolsonaro não sabe e não quer governar. Só quer poder e confusão”, publicou na rede social.

Governadores de 20 Estados divulgaram neste domingo uma nova carta aberta, agora prestando solidariedade a Maia e ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), diante das declarações de Bolsonaro. "A saúde e a vida do povo brasileiro devem estar muito acima de interesses políticos, em especial nesse momento de crise”, afirmam os gestores.

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