Superar rancores para combater o fascismo. O direito de viver é nosso ponto de encontro
Não é fácil superar feridas profundas, mas não há saída para o atual momento sem unir centro-esquerda e direita sóbria contra a inépcia do Governo ante um vírus cruel
Por que o Brasil elegeu como presidente o mais medíocre e raivoso de nossos líderes políticos? Porque o país se rachou em três e, como o centro-esquerda e a direita sóbria não quiseram ou conseguiram montar uma aliança humanista contra a barbárie, esta última ganhou a eleição, nele adotando medidas contrárias à ética e aos princípios enunciados nos primeiros artigos da Constituição.
Não há saída sem aliar centro-esquerda e direita sóbria, que é a direita que apoiou o controverso impeachment de 2016 mas respeita os direitos humanos, mesmo que não seja fã dos direitos trabalhistas. O abaixo-assinado Estamos Juntos é uma dessas ações, bem como os encontros de ex-ministros de várias pastas promovidos pelo Instituto de Estudos Avançados da USP desde o ano passado.
Sei que não é fácil. As feridas que ficaram são profundas.
Quem está no poder não é a direita. (Chega de eufemismos: “direita” é Angela Merkel, a maior estadista de nossos dias, não o fascismo.) Governa o Brasil uma extrema-direita que renega as conquistas civilizatórias que, desde as revoluções inglesa, americana e francesa até a derrota do fascismo e a queda das ditaduras comunistas, foram se tornando um quase-consenso, hoje ameaçado.
Bolsonaro disse, antes do segundo turno, que queria voltar cinquenta anos em matéria de costumes: ou seja, rever a igualdade de gêneros, a igualdade racial, o respeito à diversidade sexual e as políticas de combate sistemático à miséria e à alta pobreza. Mas ele só venceu porque as duas grandes forças políticas que tínhamos, de adversárias, se tornaram inimigas.
Nossa direita sóbria se chamou PSDB. Hoje, está dividida em vários grupos, mas que defendem o liberalismo econômico e a liberdade de costumes. No plano comportamental, ela é civilizada. Tem horror ao fascismo caboclo. Contudo, seu ódio ao PT a fez derrubar uma presidenta eleita, aproveitando uma janela de oportunidade forjada pela inapetência política de Dilma e pela crise econômica mundial. Quis usar as ruas para apressar uma volta ao poder que estaria garantida nas urnas de 2018. Assim, tirou as castanhas do fogo para o extremismo, sem mostrar pudor ante a corrupção de Eduardo Cunha e dos seus.
Nossa centro-esquerda se chamou PT. Hoje, também está dividido, talvez mais até que a direita: veja-se o rancor entre esse partido e Ciro Gomes. Não esquece o que a direita fez no verão passado. Alguns, quando lhes falam num eventual acordo antifascista, chegam a ditar condições ―esquecendo que têm apenas um quarto dos deputados, abaixo do necessário para pedir uma CPI. Sem dúvida têm ainda o político mais popular do país, o ex-presidente que teria mais votos, mas por isso mesmo não lhe permitem concorrer a eleições.
Esses dois lados têm em comum serem civilizados. Prezam os valores democráticos, os direitos humanos, pelo menos os individuais. Mas ambos vivem hoje uma dificuldade de encarar a realidade. Economistas de direita pedem uma autocrítica do PT (mas não fazem a sua). Esquerdistas querem que a direita sóbria peça perdão (quando ela nem se arrepende de ter tirado Dilma). Se o diálogo entre ambos é difícil, imaginem uma aliança.
Mas foi o divórcio entre os herdeiros da democratização de 1985 que deu espaço aos saudosos da ditadura. E o pior é que, embora hoje tenhamos mais liberdades do que sob o Ato Institucional 5, a extrema-direita conta com um apoio popular que nunca obteve na ditadura de 1964-85. A sociedade apenas tolerava o regime militar, tanto assim que a cada eleição ele manipulava a lei eleitoral. Somente nos poucos anos do “milagre brasileiro”, coincidindo com a Copa Mundial de 1970, a ditadura foi popular. Mas hoje temos 15 a 30% de fanáticos, quase militantes, do ódio. isso é inédito no Brasil. Jamais tivemos um ódio tão consistente sustentando um governo.
A aliança é difícil não só pelo rancor do passado. É que a direita moderada apoiou, e apoia, reformas reduzindo direitos trabalhistas, sociais e/ou ambientais (com diferentes matizes). Já o centro-esquerda quer retomar um processo de inclusão social para o qual deixou de haver dinheiro em 2014. Conheço isso bem porque, como ministro da Educação em 2015, vivi a incompreensão dos que tinham reeleito Dilma um ano antes e não dimensionavam a crise econômica, que impedia, por exemplo, a execução de um Plano Nacional de Educação justo, correto, mas que não cabia mais no orçamento.
Mas a indiferença e inépcia do Governo ante um vírus cruel e terrível que mata mais de mil brasileiros por dia proporcionam, mais que isso, exigem a necessária união antifascista.
A aliança contra o retrocesso não se dará apenas em nome da civilização: se fará em nome da vida. Não precisamos decidir agora que formato terá o Estado no futuro. Mas precisamos de um Estado que acuda os mais pobres, os sem emprego. Precisará ser reforçado, emergencialmente, o que se chama o bem-estar social. Assim fez a Europa Ocidental após a devastação da Segunda Guerra Mundial, e nem por isso virou socialista, menos ainda comunista. Naquela região, direita e esquerda democráticas garantiram a reconstrução econômica, a inclusão social, salários melhores, saúde e educação públicas. O Welfare State se tornou patrimônio de todos. Vejam que as políticas intensamente neoliberais de Thatcher não emplacaram no continente, ficando praticamente confinadas no Reino Unido. Vejam que, na França, mesmo os eleitores da direita resistem ao desmonte do Estado social.
Para cumprir seu papel social, o Estado poderá contrair dívidas, desta vez para salvar as vidas dos sem trabalho, não para despesas polêmicas ―ou poderá tributar os mais ricos. Isso não é apenas justo: é indispensável. O vírus mata mais de mil brasileiros por dia, parte deles porque o Governo não tomou os cuidados imprescindíveis. O direito de viver pode ser nosso ponto de encontro. É o valor supremo que existe. Podemos superar os rancores passados em nome do mais importante projeto de futuro possível, que é a defesa da vida, de milhares ou talvez milhões de vidas.
Renato Janine Ribeiro é ex-ministro de Educação e professor da USP de Ética e Filosofia Política
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