Não esquecer
Os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer o que ocorreu. Passada a crise do coronavírus, poucos se lembrarão dela. Suas marcas, porém, podem permanecer e delas devemos cuidar
O tema é repetitivo e desafiador: o coronavírus. Procuro me afastar dele dia e noite, mas ele nos envolve. O vírus, sem ser visto, está por toda parte, principalmente em nossas almas. Recordo-me de meus pais, cuja memória reteve a gripe espanhola. Agora quiseram de novo taxar o coronavírus como “vírus chinês”. Não pegou e ainda bem. A propagação do vírus pelo mundo afora faz-me recordar a advertência que está no Antigo Testamento: “pulvis est et in pulvis reverteris”, escreve-se em latim. Somos pó e a ele voltaremos. Diante da morte, somos todos iguais, como diante do vírus. Ele não distingue, gênero, idade, riqueza ou o que seja. Mata a muitos, e se não nos cuidarmos... Às vezes até mesmo cuidando-nos.
Será que esta pandemia servirá pelo menos para dar-nos conta disso? Duvido. Sei bem que os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer o que ocorreu. Passada a crise, poucos se lembrarão dela. Suas marcas, entretanto, podem permanecer e delas devemos cuidar.
Na minha geração, não se pode dizer “nunca vi tanto horror perante os céus”. Os terremotos matam, indiscriminadamente. As guerras também. A bomba atômica dizimou centenas de milhares, e por aí vai. Mas isso não diminui o pavor diante do que está ocorrendo e, pior, o que ainda poderá ocorrer. A situação nos obriga a sermos pelo menos mais humildes e, quem sabe, a reconhecer que a desigualdade faz com que os mais pobres, nas tragédias pandêmicas, sejam os que pagam maior preço.
Provavelmente o coronavírus chegou ao Brasil “de avião”. Pessoas das classes mais altas (quanto a renda) viajam mais. No começo foram as que se contaminaram. Agora já se vê que nas periferias pobres, nas favelas e cortiços, nas comunidades urbanas, como hoje chamamos o que ontem chamávamos de favelas (desde a revolta de Canudos quando os soldados regressavam das campanhas e se amontoavam no morro da Favela, no Rio). A propagação é enorme e o atendimento de saúde “não dá conta”.
É injusto cobrar do SUS (Sistema Único de Saúde) as falhas ocorridas. Pelo contrário, não fosse ele e só os que podem pagar os serviços médicos e hospitalares seriam melhor atendidos. Pelo menos isso: em princípio o SUS atende de modo universal. Mas sim é possível cobrar de quem decide o porquê de tanta “falta”: falta equipamento para os atendimentos, faltam luvas adequadas, faltam máquinas para ajudar a respirar, falta não sei o que mais. É fácil ser engenheiro de obras feitas: pelo menos há um sistema de saúde pública estruturado, embora carente. Sei que, na bonança, é difícil prever as prioridades e que haverá argumentos, inclusive econômicos, para dizer: mas isso não é prioritário. E não é só no Brasil que se vê o esgotamento dos meios de saúde pública, basta olhar para Nova York.
Ainda assim, que pelo menos a crise pela qual passamos sirva de advertência para o futuro: há que olhar com mais carinho as questões de saúde pública, a começar pela água tratada e pelo sistema de esgotamento sanitário. Reconhecer que alcançamos melhoria na saúde não quer dizer que conseguimos o necessário. Que ao sair da atual pandemia, não nos esqueçamos: ela pode voltar. Quando? Ninguém sabe. Preparemo-nos para quando venha.
E assumamos de uma vez por todas que, se é verdade que a crise de saúde atual alcança a muitos em todo o mundo, também é verdade que para os mais pobres ela é mais devastadora. Por enquanto (sem que se saiba até quando) não dispomos de vacinas nem de medicamentos específicos. Só resta o “isolamento social”.
O refrão “fiquem em casa” está por toda parte. Mas que casa? Para os que dispõem de uma “casa”, do aconchego familiar e dos meios necessários, talvez seja cansativo trabalhar em casa, mas é suportável. Mas quando as pessoas não dispõem desse conforto mínimo, que fazer? Vão para a rua e, seres humanos gregários que somos, não guardam a distância recomendável, uns dos outros. E os que trabalham em situações que são essenciais para a sociedade continuar a funcionar, nas fábricas, nos hospitais, no transporte ou onde seja, também ficam em casa? Haverá dois pesos e duas medidas?
Não escrevo isso para dizer que o mote está errado. Pelo contrário. Digo para ampliar nosso senso de realidade. Espero que nossa gratidão futura seja concreta para com os que, mesmo não suportando ou não tendo meios para ficar em casa, vão à luta. Nesta, que usem as máscaras e tomem os cuidados necessários e torçam para que nada lhes aconteça. Mais do que torçam, façam o necessário para derrotar o vírus. A luta é dos governos, é internacional, mas também é de cada um de nós.
O que é de todo descabido é a insensibilidade diante do que está acontecendo ou a cegueira de não querer ver que estamos imersos em um mau momento. Nele precisamos de coesão. Continuar a insistir que se trata de uma “gripezinha”, ou de que “eu fui atleta” e, portanto, nada me acontecerá é mais do que equivocado. É irresponsabilidade.
Do que se precisa agora, além de recursos financeiros (na crise, todos somos “keynesianos”, achamos que o necessário é investir, que “o governo” tem a obrigação de salvar as empresas e as pessoas) é de coesão, de carinho, de dar a mão aos que mais precisam e sofrem. Só que não basta sermos, à moda antiga, bons samaritanos. Passada a tormenta, não deixemos de lado que foi possível ultrapassá-la porque o barco tem bons motores, apesar de havermos escolhido maus navegantes. Não basta escolher quem é “do contra”. Os governantes precisam ter capacidade de decidir e entender que nas sociedades, como a nossa, nas quais as redes de internet pesam tanto, não dá para governar sozinho ou com um grupo de amigos. Para fazer frente a situações como a atual (há três crises: a da saúde, a da economia e a da política) faz falta o senso do comum e universal. Só juntos se constrói uma nação. A escolha é nossa, de cada um. E, se erramos, que pelo menos o erro não se repita.
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