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Pandemia de coronavírus
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A Guerra às drogas à luz da pandemia

Essa guerra, muito mais dirigida à população pobre do que às próprias drogas, faz vítimas em escala muito maior do que o uso abusivo de substâncias ilícitas

Moradora entra em viela durante incursão policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
Moradora entra em viela durante incursão policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.Leo Correa/ AP

De uma perspectiva que prioriza a saúde e a vida, há amplo consenso: o enfrentamento da pandemia da covid-19 requer a prevenção de grandes ondas de contaminação. O distanciamento físico é fundamental para atingir esse objetivo porque contém a explosão viral e a consequente explosão da demanda por assistência médica e hospitalar – em escala muito acima da capacidade dos sistemas de saúde existentes.

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Se grandes surtos incontroláveis forem evitados, serão poupadas centenas de milhares, talvez milhões de vidas. A passagem do tempo contará a favor do enfrentamento da covid-19, à medida que profissionais e sistemas de saúde aprendam a lidar com o vírus e a doença, medicamentos sejam testados, tratamentos sejam aperfeiçoados e vacinas, desenvolvidas.

Os pressupostos éticos e a racionalidade dessa ação preventiva são claros. As tentativas de contestá-la, sobretudo quando vêm de pessoas e grupos com farto acesso a informação, evidenciam, ao olhar atento, a defesa de interesses econômicos particulares ou cálculos político-eleitorais inconfessáveis.

Crise e oportunidade

Muito tem sido dito nestes dias sobre as oportunidades de tomada de consciência e mudança de rumo trazidas pela pandemia do coronavírus. De fato, a covid-19 vem demonstrando uma capacidade notável de iluminar distorções, falhas e farsas dos modelos políticos e econômicos que têm prevalecido nas últimas décadas.

Até poucas semanas atrás, a mercantilização de serviços públicos vitais, a redução de capacidades operacionais e de planejamento do Estado, o abandono de estratégias de soberania das nações, a diluição de direitos sociais e a fragilização de garantias trabalhistas eram festejados sob codinomes como “modernização”, “austeridade” e “flexibilização”. Hoje, até veículos “oficiais” do grande capital financeiro, como o britânico Financial Times, fazem críticas veementes e comovidas a essas agendas e à visão de mundo que as articulam.

Aproveitemos, então, este momento de crítica e autocrítica, valorização da ciência e da saúde pública para refletir sobre uma mazela crônica que, especialmente em nosso país, vem deixando um longo rastro mortal, com números anuais de vítimas em escala pandêmica: a chamada “guerra às drogas”.

Se o chamado à razão e a prevalência das evidências científicas que têm sido aplicadas à pandemia valessem também para as políticas de drogas, o Brasil viveria uma transformação libertadora —tanto de pessoas aprisionadas em penitenciárias quanto de pessoas internadas por dependência química. Nos libertaríamos assim do morticínio perfeitamente evitável, da manipulação dos temores da destruição cotidiana de potencial humano.

No contexto da pandemia, a aliança entre interesses escusos, velhos preconceitos e irracionalidade fundamentalista tem sido, felizmente, enfrentada e denunciada. Já no âmbito das políticas de drogas, a coalizão obscurantista —constituída por interesses e visões de mundo comparáveis aos dos opositores poderosos da atual quarentena— vem se impondo e prevalecendo há décadas como iatrogenia e aporofobia, o medo do pobre. A guerra às drogas é aporofóbica porque expressa a mais profunda aversão aos mais pobres, e é iatrogênica porque, à semelhança dos maus remédios, provoca mais danos do que aqueles que pretende mitigar.

Morticínio sem fim

Em termos de legislação e políticas públicas formais, o Brasil já está entre os países ocidentais mais retrógrados, que insistem em tratar a questão das drogas ilícitas sob a perspectiva desastrosa e fracassada da guerra. Na prática, a situação do país é ainda muito pior do que as nossas leis, precárias e anacrônicas, fazem supor. Os esquemas políticos, policiais, penais e carcerários em vigor não cessam a reprodução de uma realidade de dezenas de milhares de mortes anuais e centenas de milhares de pessoas presas em condições sub-humanas. Vivemos um apartheid social, com a criminalização da pobreza associada ao racismo, um permanente estado policial a ameaçar, brutalizar e humilhar populações pobres e periféricas.

Essa guerra, muito mais dirigida a determinadas populações que às próprias drogas, faz vítimas em escala muito maior do que o uso abusivo de substâncias ilícitas. E a cadeia de devastação da guerra às drogas não para aí. Do lado da iniciativa privada, um mercado clandestino de drogas, sempre pujante e extremamente lucrativo para seus reais controladores, fortalece grupos criminosos e milícias assassinas. No âmbito das instituições do Estado, corporações jurídicas e policiais marcadas pela atuação punitivista e violenta, perpetradoras sistemáticas da discriminação de classe social e cor da pele, agentes da linha de frente da reprodução contínua da injustiça e dos abismos sociais do país.

Basta verificar as estatísticas disponíveis em relação aos sistemas penal e carcerários, e também o conteúdo dos discursos justificadores dessas políticas para constatar a centralidade quantitativa e ideológica da guerra às drogas no modelo brasileiro de perpetuação de desigualdade e violência.

A longevidade e os resultados desse modelo demonstram que seus grandes promotores e beneficiários não buscam uma vitória do tipo que permita o fim da guerra e a conquista da paz. Pelo contrário. Sua vitória é a permanência do conflito genocida. Barões do tráfico, controladores de gangues e milícias, coletores de subornos graúdos, setores do sistema financeiro, lavadores de fortunas, porções do aparato estatal, beneficiários da privatização de presídios, participantes do mercado de armas e munições, políticos e comunicadores exploradores da violência e do medo estão entre os perpetuadores dessa guerra sem fim.

Crimes continuados

A irracionalidade da guerra às drogas (do ponto do vista do bem comum, cabe sempre lembrar) é tão grande e múltipla, e causa danos tão devastadores que, assim que conseguirmos superar o modelo mental e social hoje em colapso, perceberemos coletivamente que se tratou de um crime continuado contra a saúde e a segurança públicas, populações vulneráveis e direitos fundamentais. Nossos filhos ou netos olharão para o que fazemos ou permitimos que seja feito com os que sofrem com abuso de drogas e dependência química, com as multidões de vítimas colaterais do conflito armado e com a sociedade como um todo e se perguntarão como pudemos colaborar ou ser coniventes com tamanho absurdo.

Estigmatizamos, perseguimos e brutalizamos pessoas que precisavam de acolhimento e tratamento. Em vez de oferecer oportunidade a alternativas a jovens aliciados pelo tráfico, os jogamos no caminho sem volta da prisão, sevícia, crime e morte. Em nome da proteção de vidas, empilhamos centenas de milhares de pessoas em masmorras e enterramos quantidade comparável de corpos nos cemitérios. Não por acaso os presídios brasileiros se anunciam como prováveis epicentros da covid-19.

Ignoramos a irracionalidade dos critérios para tornar certas substâncias ilícitas e outras legalmente celebradas e propagandeadas. Pelos mesmos critérios tortos, impedimos pesquisadores de produzir conhecimento e desenvolver medicamentos mais acessíveis, seguros e eficazes. E assim privamos milhões de pessoas em sofrimento, em razão de doenças próprias ou de entes queridos, de melhores alternativas terapêuticas.

Mudança ou colapso

Em um editorial publicado no último dia 3 de abril, sobre o enfrentamento da pandemia de covid-19, o Financial Times clama por planejamento estratégico, força, intervenção e provimento de segurança e justiça por parte do poder público. No mesmo texto, o jornal denuncia a mentira segunda a qual estamos todos no mesmo barco. Definitivamente, não estamos. A maioria está na água, lutando desesperadamente por escassas e precárias boias.

Na falta de decisivas mudanças de rumo, corremos o risco de um naufrágio tão épico que poderá, finalmente, nos reunir a todos, no fundo.

Também no barco da guerra às drogas há um punhado de camarotes de luxo —bem acima das galés apinhadas.

Precisamos aproveitar a oportunidade apresentada pela crise da pandemia e mudar de rumo no sentido da construção de sociedades efetivamente voltadas para o bem comum. A gravidade do momento nos convoca para a militância urgente e corajosa por paz, saúde, inclusão, fraternidade e solidariedade entre os vivos e os que ainda nascerão.

Já não podemos adiar a análise e o debate de experiências brasileiras e internacionais, com foco nos modelos de legalização e regulação do uso e do mercado de drogas hoje ilícitas, na prevenção e tratamento do uso abusivo, na educação e proteção de crianças e adolescentes. Entre os principais objetivos do novo modelo que precisamos construir destaca-se a substituição da lógica bélica de devastação de comunidades pobres e periféricas por políticas eficazes de reparação pelas décadas de estigmatização, violação sistemática de direitos e genocídio.

Ao mesmo tempo em que os modelos de pacificação e desenvolvimento pós-guerra forem discutidos e desenhados com a participação das vítimas, decisões e medidas simples, de rápida aplicação e efeitos idem, devem ser tomadas imediatamente.

A descriminalização do consumo, consenso nos círculos racionais e já em vigor da classe média para cima, precisa ser efetivada para todos, sem exceção. Temos o dever de dar um basta à violação sistemática de direitos e da cidadania de jovens pobres, negros e periféricos país afora.

A prisão por tráfico de pequenas quantidades de droga é cruel, cara, contraproducente, e fortalece os círculos da violência e da criminalidade. Nos casos de réus jovens e primários, o encarceramento é uma monstruosidade e um crime contra o projeto civilizatório. Essa prática desumana e sabotadora do futuro precisa e pode acabar já, com a soltura dos que foram presos nessas circunstâncias e decisão efetiva de reformar e civilizar sistemas policiais, penais e penitenciários que hoje perpetuam a mentalidade escravagista. As penitenciárias brasileiras são, quase sem exceção, fábricas de horrores a exigir uma transformação radical.

Temos a oportunidade de sair desta crise global desmontando modelos geradores de violência, medo e morte. No Brasil, a guerra às drogas está no centro da matrix exterminadora de vida e futuro. É hora de declarar a paz e tomar o rumo do desenvolvimento justo, sustentável e libertador. A hora é esta.

Flavio Lobo é jornalista, assessor e consultor de comunicação, mestre em comunicação e semiótica

Sidarta Ribeiro é neurocientista, vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN e autor de O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho (Companhia das Letras)

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