“Deus enviou a cannabis para mim”
Pacientes buscam em João Pessoa, a 'Califórnia brasileira’, o óleo de maconha para tratar casos de autismo e depressão. Entidades judicializam o direito de produzir o remédio
“Eu não cheguei a pensar em suicídio. Mas a verdade é que eu já estava me matando por dentro”, assim a professora aposentada Zeza Araújo, 63, conta como se sentia ao longo da quase uma década em que sofreu de depressão. “Tomei tantos medicamentos que nem lembro. Até que um dia meu médico me disse “não sei mais o que fazer com você. Já te dei de tudo e você não melhora”. Foi então que os filhos a convenceram a tomar o óleo a base de maconha. “Eu não queria. Chorava e dizia: mas eu vou tomar maconha agora? Eu tinha muito preconceito”. Convencida, hoje ela mostra com orgulho o frasco do óleo, que toma há quase um ano. “Deus enviou a cannabis para mim”, diz, com a neta de um ano no colo.
Zeza faz parte dos 3.200 pacientes que se tratam, atualmente, com o óleo de cannabis produzido e comercializado pela Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), a única no Brasil com essa permissão. A entidade, criada em João Pessoa por Cassiano Teixeira, 46, passou quase três anos na ilegalidade, até que em abril de 2017 conseguiu, por meio de uma liminar, a permissão para funcionar. Hoje, os 2.000 pés de maconha plantados na sede da associação chegam a produzir 4.000 litros de óleo por mês, utilizados no tratamento de doenças como Mal de Parkinson, Alzheimer, epilepsia, depressão e câncer, não só em humanos, como também em animais. “Comecei importando ilegalmente mesmo, para tratar a minha mãe que estava com suspeita de câncer, com os mesmos sintomas que a minha tia, que morreu por causa da doença”, diz Teixeira. “Meus irmãos ficaram revoltados porque diziam que eu dava drogas para mamãe. Hoje todos eles fazem uso do óleo”.
Na pequena sala de espera da Abrace, cinco mesas com recepcionistas cadastram os pacientes que chegam de diferentes lugares. Há ainda os responsáveis pelo atendimento telefônico, financeiro, por despachar as encomendas para todo o país, os farmacêuticos e pesquisadores do laboratório e os cultivadores nas estufas. Quase 40 funcionários trabalham em torno do negócio. “Estamos mudando de sede, porque já não cabe mais tanta gente aqui”, conta Teixeira. Nas cadeiras de espera, uma senhora faz crochê enquanto aguarda sua vez, e um casal de idosos segura nas mãos uma sacola com a marca de um laboratório médico.
“Em linhas gerais, quem procura pela cannabis já tentou muitos outros tratamentos alopáticos”, explicou Gabriel Andrade, 30, médico de família e comunidade, que realiza atendimentos em um posto de saúde de João Pessoa e, em alguns casos, prescreve a cannabis. Ele diz que os próprios pacientes já chegam informados sobre o uso terapêutico da planta. “As pessoas querem usar, a procura é muito grande, e por diferentes problemas”, diz. “Mas o acesso é difícil, elas acham que é algo que está muito longe do alcance delas. E muitas vezes está mesmo”.
Hoje, há dois caminhos para se ter acesso ao medicamento: um é pela Abrace, que cobra de 150 a 550 reais o frasco do óleo, a depender da quantidade e da concentração requerida pelo médico. Além disso, é preciso se associar à entidade e pagar anuidade de 350 reais. A outra forma é importar o óleo, o que requer uma autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de laudos e pedido médico de um profissional autorizado e prescrever o medicamento.
Maconha no shampoo
Mas nem sempre foi assim. “Por Pedrinho, nós entramos no tráfico internacional de drogas”, diz Sheila Geriz, 45, servidora pública, e mãe de Pedro Américo Geriz Pinto, 10, epilético. "Dos três meses aos quatro anos de idade, ele era uma plantinha em uma cadeira de rodas, só babando e convulsionando”. Foi então que a família buscou informações sobre o uso da maconha no tratamento das crises de epilepsia, que, segundo ela, chegavam a dezenas por dia. "Fui em uma médica que riu da minha cara. Disse que o menino ia ficar chapado. Ele tomava 16 comprimidos por dia e ela preocupada com ele ficar chapado de maconha”.
Naquele momento, ainda não era permitido nem mesmo importar o medicamento. “Comprávamos o óleo nos Estados Unidos, mandávamos para a casa de um amigo no país, que colocava em umas seringas e enviava para a gente numa caixa cheia de canetas para disfarçar”, conta. Mas em questão de meses, a Polícia Federal reteve a encomenda. “Perdemos 13.000 reais, porque eu já estava comprando para outras nove crianças”. Tudo na ilegalidade.
Desesperados e sem ter como importar o óleo, os pais, que àquela altura já estavam organizados em um grupo, tentaram por outros meios. “Teve uma mãe que chegou a trazer o óleo da Irlanda, em frascos de shampoo”, conta Sheila. Do grupo nasceu a Liga Canábica, uma entidade também em João Pessoa que conquistou na Justiça o direito de importar o óleo de maconha. Hoje, Pedrinho, que já foi chamado na rua de “o menininho da maconha”, toma somente o óleo e mais nenhum medicamento. O garoto anda e já chegou a ficar meses a fio sem nenhuma convulsão. A própria Sheila, que é presidente da Liga, faz uso do óleo para as dores da artrite. “Lá em casa quase todo mundo é maconheiro”, diz, rindo.
Mas é preciso ter cautela com esse “milagre” ao qual muitos pacientes se referem ao falar da maconha. Embora o uso da cannabis no tratamento de epilepsia e convulsões já esteja mais consolidado, não é possível dizer, cientificamente, que a planta serve para tantas doenças como seus defensores afirmam. “Ainda faltam estudos mais robustos pra gente poder usar a cannabis na psiquiatria de forma mais rotineira”, diz o psiquiatra Rodrigo Martins Leite, diretor de relações institucionais do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Ao mesmo tempo, existe uma resistência nas universidades do Brasil de estudar e verificar para qual transtorno serve a cannabis. Essa resistência atrasa a gente a tirar conclusões mais corretas”.
Embora seja autorizado a prescrever medicamentos a base de maconha, Leite é ponderado. “No caso da psiquiatria, verificamos a eficácia em autismo e transtornos ansiosos, como transtornos de pânico”, diz. “Mas, no caso da depressão, ainda é uma penumbra, há pessoas que melhoram e outras que apresentam um quadro pior. Então eu não concordo com essa coisa de ser uma panaceia, de que a maconha pode curar tudo. Não é por aí, há de haver usos terapêuticos limitados”, afirma.
A “corrida do ouro pela cannabis”
A cabeleireira Débora Guilherme de Oliveira, 27, saiu de Livramento, no interior da Paraíba, para buscar ajuda em João Pessoa, que vem sido chamada de “a Califórnia brasileira”. “Estou na peregrinação há três dias”, disse ela, com uma pasta de documentos, como receita médica e laudos nas mãos, e os dois olhos na filha, Nauany Victoria Guilherme Sales, 7, autista, epilética e com uma má formação no coração.
Sozinha, sem o pai da criança por perto, ela diz que não consegue mais segurar a garota na hora de uma crise ou um surto. “Ela já toma a dosagem máxima dos medicamentos, que causam ansiedade nela. Por isso, ela acorda por volta das três da manhã e só dorme de novo à noite”, diz. Segundo a mãe, Nauany só tem um rim íntegro, em decorrência da quantidade de remédio já ingerida. Por isso, ela afirma ter tanta esperança na cannabis. “Acho que vai ser um divisor de águas na vida dela”.
Débora foi atrás de Sheila, que, por sua vez, diz ter ido atrás de outra mãe quando começou a procurar ajuda para o tratamento a base de maconha para o filho. É por meio dessas buscas que as redes vão se formando pelo país todo. São dezenas de entidades e associações, formadas especialmente por pais e mães, organizadas em prol do uso da maconha para fins medicinais e que brigam na Justiça por esse direito. Sheila conta que a Liga Canábica tem entre seus sócios policiais, delegados e juízes. “A doença não escolhe”, diz. O próximo passo da entidade é conseguir na Justiça o direito cultivar em casa a maconha para a produção própria do óleo. “Ou a gente tem a planta em casa, ou não vamos ter acesso”, diz.
Em 2015, a Anvisa retirou o canabidiol —uma das mais de 100 substâncias encontradas na espécie Cannabis sativa— da lista de medicamentos proibidos no Brasil. Como a produção no Brasil não é permitida, a decisão apenas abriu caminho para a importação da substância. Naquele mesmo ano, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciaram discussão sobre a descriminalização do uso da maconha. Naquele momento, os ministros chegaram a discutir até mesmo a quantidade de pés de maconha que casa usuário poderia ter em casa, mas o julgamento até hoje não foi concluído.
Já no final do ano passado, a Anvisa liberou a comercialização em farmácia de medicamentos com base na cannabis. As decisões, embora fomentem a discussão sobre o uso terapêutico da substância, não se convertem, necessariamente, em acessibilidade, já que não se sabe ainda a quais custos esses remédios chegarão ao Brasil. Para Sheila, a decisão é “péssima”, porque não reconhece o trabalho que pacientes e entidades têm realizado no Brasil há anos, privilegia quem tem maior poder aquisitivo para comprar o remédio e ignora o clima e solo férteis para o cultivo no Brasil. “É um ataque à soberania nacional. “Não adianta tratar a maconha como um Tramal [um analgésico], porque não é. E é por isso não vai funcionar vender em farmácia”.
Sistema endocanabinóide
Os efeitos da Cannabis no cérebro ocorrem graças ao sistema endocanabinóide, presente em todas as pessoas. “Nosso cérebro produz substâncias análogas às da Cannabis naturalmente e temos receptores para essas substâncias por todo o corpo”, explica Rodrigo Leite. “Acredita-se que os canabinóides que o nosso corpo produz regulam várias coisas na gente”, completa o médico Gabriel Andrade. Quando, por alguma razão, essa produção fica em defasagem ou os receptores não absorvem direito a substância, o corpo pode adoecer. É por isso que a Cannabis pode atuar sobre diferentes doenças. “A grosso modo, a gente produz maconha e tem locais do corpo em que a maconha pode se ligar. Ou seja, alguma função no organismo certamente esse sistema tem. E se não tivesse serventia, não teria por que, em termos evolutivos, ele permanecer”, diz Leite.
Já Cassiano Teixeira, da Abrace, acha que a decisão é um pequeno avanço, mas, na prática, muda pouco em termos de acessibilidade. “Agora vai começar a corrida do ouro das farmácias e laboratórios atrás da cannabis”, diz. Rodrigo Leite defende que as barreiras de preconceito precisam ser derrubadas para que a medicina avance. “A gente chegou a um limite em relação aos medicamentos tradicionais. Se a gente não tiver ousadia e incorporar outras substâncias, vamos ficar estagnados”.
No caso da aposentada Zeza Araújo, o preconceito foi quebrado assim que ela começou a melhorar. “Antes, a melhor hora do dia era quando anoitecia, porque eu podia fechar tudo e dormir”, diz ela. “Hoje não. Eu faço academia, estudo filosofia, me envolvi com trabalho voluntário na igreja e ano passado viajei para três países. Eu tinha muito preconceito, mas a cannabis só me fez bem”. Ela afirma que não toma nenhum medicamento mais e que mesmo o óleo ela só faz uso de vez em quando. “Conto na igreja que uso e digo que é uma planta normal. Não sei por que não é legalizado”.
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