A tragédia das chuvas se repete. Quando vamos mudar?
A cada ano, novas histórias são destruídas, sonhos inéditos são interrompidos, outras famílias passam a chorar a perda de seus queridos. Não é fatalidade
Há alguns eventos no Brasil que, pela sua importância e periodicidade, fazem parte do calendário nacional: Carnaval, Copa do Mundo, eleições e tantos outros. Infelizmente, a tragédia das chuvas também já faz parte do anuário. As televisões mostram imagens de casas desmoronando e de encostas colapsando que são tão parecidas com as exibidas em anos anteriores que fica difícil distinguir o que é transmissão ao vivo e o que são imagens de arquivo. Tudo se repete: os locais, as causas, a tristeza, a falta de planejamento urbano, as mortes.
Mas pensando bem, há algo que não se repete: as vítimas. Os seus nomes. As suas histórias. A cada ano, novas histórias são destruídas, sonhos inéditos são interrompidos, outras famílias passam a chorar a perda de seus queridos. E de uma forma cruel e irresponsável, nomeamos isso de “fatalidades”, como se essas mortes fossem fruto do acaso, do imponderável, do imprevisível.
Ninguém quer contar ou ninguém quer perceber que todas essas mortes são assassinatos. Cujos assassinos somos todos nós, que aprendemos a achar normal a ocupação desordenada que impera na cidade, onde milhares de pessoas moram em áreas de risco convivendo com a nossa condescendência desumana. Ninguém quer falar que tudo isso era evitável, que existe política pública para isso, que essas mortes não precisavam ter acontecido. Por um motivo muito simples: é mais fácil assim. É mais fácil responsabilizar o recorde dos índices de chuvas do que assumir que nossas mãos estão cheias de sangue, lama e água de enchentes.
Simultaneamente à nossa crise de responsabilidade, instaura-se um tenebroso espetáculo político cuja receita já é conhecida: primeiro, atribui-se a culpa daquela tragédia a gestões passadas, que não fizeram as obras que deveriam ter sido feitas; segundo, anuncia-se que serão feitos estudos e planejamentos para realizações de obras que impeçam as tragédias de se repetirem; e terceiro, as obras anunciadas não são realizadas ou não são finalizadas naquela gestão e a nova gestão repetirá fielmente o ciclo acima descrito. O jogo do empurra-empurra da culpa parece funcionar e, no final das contas, a justificativa é sempre a mesma: a culpa é da chuva, e todas essas vidas perdidas acabam ficando apenas na conta de São Pedro. O culpado é sempre o outro. E mais uma vez, adota-se a solução mais simples: no jogo eleitoral, vale mais a pena prometer construir uma creche do que enfrentar o intricado problema do (des)ordenamento urbano, que é denso, demorado e difícil de resolver. Nos debates eleitorais que teremos logo mais neste ano, a pauta da chuva será propositalmente esquecida, pois se aventurar a equacionar itens como reassentamento de comunidades, planejamento hidrológico e obras estruturais de prevenção é perigoso demais para nossos políticos. Demandaria reconhecer a perversidade da desigualdade social e a adoção de medidas impopulares e caras, que embora sejam urgentes e necessárias, implicariam na perda de votos. E nesse dilema é desnecessário dizer qual é a opção da esmagadora maioria dos governantes.
Nesta quarta, companheiros de São Paulo velaram o nosso irmão de farda Rogério de Moraes Santos, bombeiro militar que morreu enquanto tentava realizar o resgate de um bebê nos braços da mãe em meio ao cenário desolador que se instaurou no Morro do Macaco Molhado, em Guarujá. O bebê e a mãe foram encontrados sem vida. O outro militar que estava na equipe de resgate, Marciel de Souza Batalha, segue desaparecido.
O bombeiro que faleceu na atitude heroica deixou três filhos. O caçula tem 16 anos. É bem provável que ele pergunte por que o pai morreu, ao que será explicado que ele se foi tentando salvar a vida de duas pessoas que ele nem sequer conhecia. Talvez alguém possa dizer ao garoto que foi uma “fatalidade” de serviço. Não foi. A nossa conivência, o nosso descalabro político, a nossa banalização do absurdo fez mais uma vítima. Fomos nós, enquanto sociedade irresponsável e autocentrada, que matamos Rogério e todas as outras vítimas das chuvas. E ao acharmos que a morte desses dois militares e de qualquer outro óbito decorrente das chuvas foram “fatalidades”, matamos essas vítimas novamente, pois desconstituímos o legado que elas deixaram com as próprias vidas, da necessidade de mudanças urgentes em nossas concepções de vida na cidade e em sociedade.
No mês passado, a notícia de uma Lamborghini que valia alguns milhões e foi destruída pela chuva chamou mais atenção do que pessoas que tinham perdido suas casas e seus pertences por essa mesma chuva. Enquanto caminharmos assim, teremos falhado miseravelmente enquanto seres humanos e continuaremos a ter de entregar a vida de nossos melhores bombeiros para lembrar a sociedade de que esse não é o caminho. E o pior de tudo, a partir de hoje teremos de conviver com o choro e a eterna saudade dos três filhos de Rogério, levado pelas águas e destroços da nossa ganância, da nossa insensatez, da nossa insensibilidade. Não foi fatalidade.
Em memória aos bombeiros militares que tombaram em combate durante as atividades de salvamento em Guarujá, São Paulo, em 3 de março de 2020.
Pedro Aihara é bombeiro militar, mestre em Direitos Humanos, especialista em Gestão e Prevenção de desastres, professor e palestrante. Atuou em tragédias como as de Brumadinho, Mariana, Janaúba e, mais recentemente, na tragédia do período chuvoso em Minas Gerais.
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