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Chuva como humilhação na cidade mais rica do Brasil

"Não preciso de colchão ou de cesta básica, graças a Deus tenho o que comer. O que queremos é uma solução para cá”, protesta moradora do Jardim Pantanal, que alaga todo verão em São Paulo. Cidade não tem plano de redução de riscos

Maria das Graças de Andrade caminha pela rua Tite de Lemos, no Jardim Pantanal, nesta terça-feira. Via estava alagada desde domingo.
Maria das Graças de Andrade caminha pela rua Tite de Lemos, no Jardim Pantanal, nesta terça-feira. Via estava alagada desde domingo.Toni Pires
Felipe Betim

A chuva de verão que chega como alívio para muitos é certeza de humilhação para outros. Com essa expressão, “humilhação”, Maria das Graças de Andrade define repetidas vezes seu cotidiano em Vila Seabra, no extremo leste de São Paulo. Seu bairro está numa enorme área que, por estar junto à várzea do rio Tietê e ficar inundada durante o período chuvoso, acabou ficando conhecida como Jardim Pantanal ―que também dá nome a um dos bairros da região. Ano após ano, o rio enche e invade algumas ruas e imóveis. Na tarde desta terça-feira, dois dias depois do temporal de domingo, Maria das Graças ainda precisava atravessar a rua Tite de Lemos, onde vive, com botas de borracha e uma proteção extra para as pernas.

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“A gente não tem prazer de sair de casa, não tem prazer de voltar. Eu não preciso de colchão ou de cesta básica, graças a Deus tenho o que comer. O que queremos é uma solução para cá”, afirma a mulher, de 69 anos e moradora há 29 anos do Jardim Pantanal. Enquanto fala, um caminhão da prefeitura trabalha para bombear a água para um bueiro próximo. E dois vizinhos passam pela rua remando, equilibrados em cima de um pedaço velho de carro — aparentemente, um teto de uma Kombi. “Mas se chover a água volta e enche as casas de novo. Basta uma garoinha. É muita humilhação”.

Em São Paulo, a maior e mais rica cidade do Brasil, as enchentes são frequentes em vários pontos e ruas, inclusive nas áreas nobres e centrais, mas as chuvas castigam especialmente os bairros periféricos com falta de saneamento básico e coleta de lixo. O Jardim Pantanal, uma Área de Proteção Ambiental (APA) habitada por milhares de famílias ―os números não são exatos―, serve como reflexo.

Em 2009, essas famílias vivenciaram uma enchente que durou três meses que deixou vários desabrigados. “Uma caixa de esgoto estourou e quando a água veio de repente, muito suja e muito fedida. E veio de uma vez. Não deu tempo de ficar tirando coisas. Não tenho fotos do meu marido e das minhas meninas pequenas”, recorda a assistente social Sonia Maria Ferreira. “Eu tinha uma estante com livros e álbuns de fotografia. Ela caiu na água e perdi tudo. Tive que alugar por três meses uma casa para ficar, pois meu neto tinha acabado de nascer. Não foi fácil, não. Mas aprendi a desapegar das coisas”.

Sonia, de 65 anos, também aprendeu a “se virar como pode” para evitar novas perdas. Assim como outros moradores, elevou o piso de sua casa para evitar ao máximo que água chega. Seu sofá e sua geladeira estão em cima de blocos que concreto que deixam os móveis a “quatro dedos do chão”. Ela mora exatamente ao lado da área de várzea, que fica alagada conforme o rio enche. A água não chega a ultrapassar o muro baixo que delimita seu terreno, mas se infiltra pelo solo. “Meu termômetro é quando chega água no barracão [recinto que utiliza como depósito]. No domingo ele estava cheio, então já sei que vem bastante água e começo a levantar tudo que pode molhar, tiro a parte de baixo do guarda-roupas...”, conta.

Sonia Maria Ferreira, moradora do Jardim Pantanal, fotografada nesta terça-feira. Sua casa está localizada junto à várzea do rio Tietê e alaga durante as tempestades de verão.
Sonia Maria Ferreira, moradora do Jardim Pantanal, fotografada nesta terça-feira. Sua casa está localizada junto à várzea do rio Tietê e alaga durante as tempestades de verão.Toni Pires

As inundações não ocorrem de forma homogênea nem atingem a totalidade do bairro: depende não só da quantidade de chuva como também do próprio curso rio e por onde ele se espalha. A água muitas vezes chega de repente e não há alarmes públicos, segundo os moradores. Sonia, que integra a Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal, afirma que muito ainda precisa ser feito para melhorar a estrutura do local — a melhoria no saneamento básico por parte da Sabesp, de responsabilidade do Governo estadual, está entre as principais demandas. Por outro lado, garante que a comunidade assistiu a algumas melhorias em sua estrutura e na oferta de serviços desde a grande enchente de 2009.

Desde então, ruas foram asfaltadas, a coleta de lixo passou a funcionar melhor e serviços da Prefeitura chegaram. Entre as melhorias também está a construção dos parques Helena, Ecológico e Biacica por parte do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), organismo do Governo do Estado que possui o programa Parque Várzeas do Tietê. Além de áreas de lazer, os parques “têm o objetivo de preservar e recuperar as áreas de várzea do rio Tietê justamente para minimizar o impacto das chuvas e possibilitar o amortecimento e controle das cheias”, explica o órgão. Por estar em uma região de várzea, com topografia plana, “estas áreas naturalmente inundam em períodos chuvosos”.

O parque de Biacica foi inaugurado em 2018 pelo Governo Geraldo Alckmin, mas mas não foi o suficiente para evitar que a água invadisse algumas ruas e casas. Na rua Tite de Lemos, que fica ao lado do espaço, moradores inclusive reclamavam na terça-feira que as enchentes ficaram mais frequentes depois da construção do parque. Outros apontam como causa para o aumento de enchentes no local a construção da nova ponte da Vila Any, que liga São Paulo a Guarulhos, inaugurada em 2016. “O rio é muito sinuoso, as obras que vão fazendo acabam desviando o curso da água. O rio vai procurar o lugar dele, vai se espalhar para onde ele já esteve. A água vai se esparramando”, explica Sonia. Questionada, a DAEE informou que a obra do parque "não alterou a microdrenagem nem o sistema viário local”.

Gastos da Prefeitura com prevenção

Previsto pelo plano diretor, São Paulo ainda não possui seu Plano Municipal de Redução de Riscos, que deve possuir estratégias de ação e intervenção em determinadas áreas, além de planos para realocar pessoas em áreas em risco. O Ministério Público estadual começou a investigar por que o plano ainda não foi elaborado e, no ano passado, abriu um inquérito contra a Prefeitura para garantir a elaboração do documento. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Fazenda, levantados pelo jornal Folha de S. Paulo, gastos com prevenção atingiram um pico de 840 milhões de reais em 2014 (valor reajustado pela inflação), mas foi caindo até chegar a 243,8 milhões em 2019 (valor de até 12 de dezembro). As despesas se referem a intervenções e manutenção no sistema de drenagem, obras e serviços nas áreas de riscos geológicos, obras de combate a enchentes e alagamentos, além da manutenção e operação dos sistemas de monitoramento e alerta de enchentes.

O EL PAÍS entrou em contato com a Prefeitura para confirmar os dados da Folha, mas não recebeu resposta específica sobre eles. A gestão afirmou em nota que “o orçamento de 2019 reservou 807,5 milhões para ações de combate às enchentes na cidade”, tais como “limpeza de córregos, microdrenagem, limpeza e construção de piscinões e conservação de galerias”. Ainda segundo a Prefeitura, liderada por Bruno Covas (PSDB), vice e sucessor de João Doria, 681,6 milhões de reais desse orçamento foram usados, cifra que corresponde a 84,3% do total.

A Prefeitura não respondeu sobre a falta do plano municipal. Afirmou, porém, que “a administração municipal lançou em novembro o Plano de Chuvas de Verão 2019/2020”, prevendo o funcionamento de cinco novos piscinões nas zonas norte, sul e oeste, além de outras ações preventivas e emergenciais. Também informou que a Defesa Civil Municipal prevê terminar para o final de 2020 o mapeamento de risco de enchentes e inundações, além de estar fazendo um levantamento preliminar de dados atualizados sobre as bacias hidrográficas da cidade.

Vista aérea do Jardim Pantanal, em São Paulo, nesta terça-feira.
Vista aérea do Jardim Pantanal, em São Paulo, nesta terça-feira.Toni Pires

A subprefeitura de São Miguel, responsável pela região do Jardim Pantanal, garante que a área não alaga há mais de dois anos ―apesar de, como descrito, ruas inteiras estarem alagadas na tarde de terça-feira. Sobre todo o trabalho realizado ao longo do ano passado, assegura que "foram reformados 1.364 metros de galerias e 816 bocas de lobo e poços de vistoria, inclusive com troca de tampas. Foram limpos 154.103 m² de margens dos córregos e retiradas 11.246 toneladas de detritos. Em relação à microdrenagem, foram limpos 4.013 metros de extensão de galerias e ramais e 610 bocas de lobo e poços de vistoria”.

As soluções até agora apresentadas pelas autoridades parecem não satisfazem por completo alguns moradores do Jardim Pantanal. “A gente trabalha pra comprar móveis todo ano. Eu mesmo não tenho mais mesa, não tenho mais cadeira... Já perdi um monte de geladeira e máquina de lavar, as que tenho estão hoje em cima de uma pedra de mármore”, conta Ana Luzia Rodrigues Viana, de 63 anos. Ela vive há mais de 40 anos no bairro e é apontada como uma das primeiras moradoras do local. “Minha casa é alta, mas ontem a águam começou subir pelo esgoto. Quando começa a chover, a gente já começa a tirar as coisas e a esperar a água. Ela vem com correnteza, aí traz rato, traz cobra, traz tudo.”

A previsão do tempo para o Jardim Pantanal, mas não só, não é nada animadora. A Defesa Civil do Estado informa que o tempo volta ser tornar instável nesta quinta-feira na Grande São Paulo. Na sexta, a preocupação é com o volume das chuvas, "que podem contribuir para deslizamentos de terra e inundações.”

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