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Um marco racial para o MeToo: as ativistas negras que acabaram com décadas de impunidade da estrela do ‘soul’ R. Kelly

Músico foi condenado por abuso sexual e crime organizado por fatos que remontam aos anos noventa. O caso questiona o tratamento às mulheres afro-americanas nos EUA

R Kelly
Ativistas do movimento #MuteRKelly (Silenciemos R. Kelly) em um protesto contra o cantor na porta de seu estúdio em Chicago, em 2019.Ashlee Rezin/Sun-Times (AP)
Iker Seisdedos

A sentença por nove crimes de abuso sexual, tráfico de pessoas e crime organizado, que pode significar uma condenação entre 10 anos de cadeia e prisão perpétua para o cantor R. Kelly (Chicago, 54 anos), assinala mais do que apenas a queda de um ídolo do soul. A decisão também foi interpretada como uma conquista das mulheres negras dos Estados Unidos, protagonistas pela primeira vez em um julgamento enormemente midiático, e como um marco racial para o movimento MeToo.

O júri não hesitou muito: bastaram nove horas de deliberação depois de ouvir durante cinco semanas 45 depoimentos sobre como um homem poderoso se servia de sua fama para, com a ajuda de seus colaboradores, tecer uma rede de abusos, muitas vezes cometidos contra menores, como os descritos por Jane, nome fictício, que alegou que o músico, com quem teve um relacionamento de cinco anos que começou quando era adolescente, obrigou-a a fazer sexo com desconhecidos, que devia pedir permissão para sair de seu quarto e que foi forçada a abortar. Também foram ouvidos na sala relatos de sequestros e ameaças com armas, o que a defesa definiu como “construções fictícias” de fãs com “desejos de dinheiro e de fama”.

R. Kelly ao sair de um tribunal de Chicago, em 2019.
R. Kelly ao sair de um tribunal de Chicago, em 2019. Amr Alfiky (AP)

Jerhonda Pace, outra das 11 pessoas que apresentaram denúncia – dois homens e nove mulheres –, foi a primeira a prestar depoimento publicamente contra o músico após décadas de denúncias. Depois que a sentença do tribunal de Nova York foi anunciada, ela postou em sua conta do Instagram na segunda-feira um texto intitulado Minha voz foi ouvida hoje: “Durante anos me acossaram por falar dos abusos sofridos nas mãos desse predador. Me chamaram de mentirosa, diziam que eu não tinha provas. Ou que estava fazendo isso por dinheiro. Não foi fácil, mas consegui”.

A lentidão denunciada por Pace gerou um debate nos Estados Unidos. A sentença demorou tanto a chegar porque as vítimas eram mulheres e meninas negras? “Sem dúvida nenhuma”, diz Kalimah Johnson, que há 26 anos fundou o SASHA Center, em Detroit, dedicado a ajudar vítimas de agressões sexuais como a que ela mesma sofreu. “Admite-se neste país que não somos confiáveis, um racismo congênito que se recusa a acreditar nas mulheres negras quando denunciam uma agressão sexual. Vem dos tempos da escravidão, quando homens brancos e negros nos estupravam com impunidade. Hoje se desconfia do depoimento de uma de nós só porque ela é negra. A imprensa, a música ou o cinema têm a ver com isso, pois são terrenos que fomentam os arquétipos negativos. Nos colocam em uma dessas duas categorias: ou somos seres insaciáveis, sempre prontas para o sexo, ou monstros incapazes de experimentar prazer. Não há meio termo”.

Há nos Estados Unidos um racismo congênito que se recusa a acreditar nas mulheres negras quando denunciam uma agressão sexual”
Kalimah Johnson, terapeuta

Johnson, que recebeu a notícia “com satisfação” na segunda-feira, desconfia da pena que o juiz imporá ao cantor (“conhecendo nosso sistema, duvido muito que seja a máxima”) e se apressa em deixar claro que não acredita que “justiça e reparação andem necessariamente juntas, nem que esta decisão seja suficiente para aliviar as pessoas que [Kelly] agrediu. Essa categoria de trauma exige um trabalho para a vida toda, independentemente de que o tipo vá para a cadeia ou não”.

A advogada Gloria Allred, que defendeu algumas das vítimas de Kelly, fala à imprensa depois da divulgação da sentença contra o cantor na última segunda-feira, em Nova York.
A advogada Gloria Allred, que defendeu algumas das vítimas de Kelly, fala à imprensa depois da divulgação da sentença contra o cantor na última segunda-feira, em Nova York. Brittainy Newman (AP)

A ativista, que atendeu em sua associação várias jovens vítimas do músico cujos casos não pode detalhar, colabora desde o início com Oronike Odeleye, cofundadora da campanha #MuteRKelly (Silenciemos R. Kelly), que organiza desde 2017 manifestações e boicotes ao cantor em shows, rádios e plataformas digitais. Uma de suas voluntárias se mostrou nesta quarta-feira, em conversa com este jornal, “sobrecarregada por tanta atenção midiática”. Odeleye disse ao The New York Times: “É o fim de um longo caminho para que as vozes de tantas mulheres possam ser ouvidas. Nunca fomos plenamente donas de nossos corpos. Já não estamos dispostas a pagar o duplo pedágio por sermos mulheres e negras nos Estados Unidos”.

Historicamente, não apenas se duvidou desses depoimentos, como também se culpou essas mulheres pela violência que sofreram”
Rebecca Epstein, advogada

“Historicamente, não apenas se duvidou desses depoimentos, como também se culpou essas mulheres pela violência que sofreram, sexualizando-as e desumanizando-as até fazê-las cúmplices de seu sofrimento. Espero que as coisas mudem com esse veredito, embora ainda haja muito trabalho a ser feito”, explica ao EL PAÍS Rebecca Epstein, diretora do Centro Jurídico sobre Pobreza e Desigualdade da Universidade de Georgetown, em Washington, que em 2017 publicou um estudo que concluía que as meninas negras eram vistas nos Estados Unidos como mais adultas e mais “hábeis sexualmente” do que as brancas. “As diferenças mais significativas foram encontradas nas faixas etárias que incluem a meia infância e a primeira adolescência – de cinco a nove anos e de 10 a 14 anos – e continuam em menor grau na faixa etária de 15 a 19 anos”, pode-se ler no relatório, baseado em 350 entrevistas com adultos de ambos os sexos que foram perguntados sobre sua diferente percepção de qualidades próprias à infância, como a inocência, em meninas brancas e negras.

Perguntada se o MeToo ignorou os problemas da comunidade afro-americana em seus primeiros anos, Epstein respondeu: “Essa conclusão me parece injusta. Foi fundado por Tarana Burke, uma ativista afro-americana, e deve muito de seu sucesso aos esforços e à perseverança das mulheres negras”. Deve-se lembrar também que três delas, Patrisse Cullors, Alicia Garza e Opal Tometi, criaram há oito anos o Black Lives Matter, movimento antirracista que ganhou alcance global após o assassinato de George Floyd por um policial norte-americano.

Segundo outra denunciante, identificada como Stephanie, R. Kelly disse a ela, quando se conheceram em 1998, que não entendia o que a sociedade via de errado em sua predileção por “meninas jovens”. Ela tinha 16 anos. Na ocasião, o músico já era uma superestrela do R&B, estilo musical de consumo essencialmente interno que atualizou o soul na última década do século passado. Também era habitual vê-lo em um McDonald’s de Chicago aonde ia, lembram as testemunhas, à caça de alunas de uma escola próxima.

As primeiras acusações são dessa época. O cantor se casou em 1994 com uma adolescente de 15 anos, Aaliyah, estrela em ascensão da música negra que morreu em 2001 em um acidente de avião. Segundo uma das testemunhas, o casal tinha começado a ter relações sexuais quando a menina tinha “13 ou 14 anos” e a união aconteceu “apenas para que Aaliyah pudesse abortar sem o consentimento de seus pais”. O casamento foi finalmente anulado. Naquela época, Kelly, autor de canções como It Seems Like You’re Ready (Parece que você está pronta) produziu um disco para a jovem promessa intitulado Age Ain’t Nothing But a Number (A idade não é nada mais do que um número).

Capa do disco ‘Age Ain’t Nothing But a Number’, de Aaliyah.
Capa do disco ‘Age Ain’t Nothing But a Number’, de Aaliyah.

Outro dos nomes fundamentais dessa história, Jim De Rogatis, uma referência no jornalismo musical de Chicago, recebeu um fax no ano 2000 em que uma leitora não identificada de uma de suas críticas, que comparava Kelly com Marvin Gaye, dava detalhes dos “problemas” daquele “com as meninas”. Pouco depois o repórter publicou a primeira de suas numerosas investigações. Um trabalho de 21 anos que inclui um livro, Soulless (Sem alma), que será reeditado em breve. Em 2002, De Rogatis teve acesso a um vídeo em que se via o artista tendo relações com uma menor e que deu origem ao primeiro julgamento, realizado em 2008. O músico foi absolvido do crime de pornografia infantil depois de a menina e seus pais terem decidido não prestar depoimento. Nesta semana, o crítico publicou na revista The New Yorker um artigo intitulado R. Kelly, considerado culpado de todas as acusações, 25 anos tarde demais.

Ganhador de três prêmios Grammy, o músico não parou de trabalhar depois dessas primeiras acusações; ao contrário, adotou um apelido desafiador, The Pied Piper of R&B (O flautista de Hamelin do R&B). Desde então lançou sete discos, editados pela gravadora Jive, até seu desaparecimento em 2011, e pela RCA, duas das mais influentes gravadoras de música urbana dos Estados Unidos, para um público aparentemente capaz de dissociar a obra da reputação de seu autor. No serviço de streaming Spotify, R. Kelly, estrela mais conhecida em seu país do que no resto do mundo (seu maior sucesso na Europa foi I Believe I CanFly, em 1996), tem mais de quatro milhões de ouvintes mensais, embora a RCA tenha rescindido seu contrato depois da transmissão de uma série documental para a televisão (Surviving R. Kelly, 2019) produzida por Dream Hampton, uma cineasta negra, que dava voz a várias mulheres que o acusam há anos.

Desenho do cantor ao ouvir a sentença, na última segunda-feira.
Desenho do cantor ao ouvir a sentença, na última segunda-feira. Elizabeth Williams (AP)

Os advogados do artista, cujo nome verdadeiro é Robert Sylvester Kelly, estudam agora se devem apresentar um recurso. Mais três julgamentos os aguardam em dois Estados por pornografia infantil, obstrução à justiça e prostituição de menores. No dia 4 de maio o juiz pronunciará a sentença do processo cuja decisão foi anunciada nesta semana. Até lá, R. Kelly permanecerá preso.

Iker Seisdedos é correspondente do EL PAÍS em Washington. Graduado em Direito Econômico pela Universidade de Deusto e mestre em Jornalismo pela UAM/EL PAÍS, trabalha no jornal desde 2004, quase sempre ligado à área cultural. Depois de passar pelas editorias El Viajero, Tentaciones e El País Semanal, foi redator-chefe de Domingo, Ideas, Cultura e Babelia.

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