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Desastre do Afeganistão é ponto de inflexão na presidência de Biden

Atentado em Cabul ofusca o sucesso das operações de evacuação e lança dúvidas sobre a proteção dos 250.000 colaboradores afegãos e seus familiares que permanecem no país

O presidente dos EUA, Joe Biden, acompanha a chegada de caixões de militares norte-americanos mortos nos atentados de Cabul. Cerimônia ocorreu neste domingo na base aérea de Dover, em Delaware.
O presidente dos EUA, Joe Biden, acompanha a chegada de caixões de militares norte-americanos mortos nos atentados de Cabul. Cerimônia ocorreu neste domingo na base aérea de Dover, em Delaware.Carolyn Kaster (AP)
María Antonia Sánchez-Vallejo
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Até o atentado da quinta-feira, que marcará indelevelmente a presidência de Joe Biden, a Casa Branca tentava de todas as formas recuperar e controlar a narrativa da retirada do Afeganistão. Depois da indefinição dos primeiros dias e do silêncio do mandatário durante mais de 48 horas, a política de comunicação da Administração democrata parecia ter revertido parte das críticas pelo caos reinante em Cabul, destacando o bom ritmo da evacuação.

Transparência de informações; aparições contínuas do comandante-chefe, aberto a perguntas da imprensa; uma avalanche de dados sobre o número de voos e de evacuados... Mensagens que destacavam a tarefa sobre-humana de retirar, em tempo recorde e sob circunstâncias adversas, dezenas de milhares de pessoas do atoleiro afegão: nada menos que 117.000 desde 14 de agosto até este sábado. Trabalhando dia e noite desde a queda de Cabul, a Administração de Biden acreditava que talvez ainda pudesse sair relativamente incólume do desastre que a gestão da retirada havia causado.

Mas a épica de uma evacuação em que vozes próximas da Casa Branca veem reminiscências da retirada de Dunkerque— uma comparação destinada a apagar qualquer recordação da fuga de Saigon em 1975— se transformou em elegia quando, na quinta-feira, um terrorista suicida do braço afegão do Estado Islâmico, o ISIS-K (na sigla em inglês), equipado com colete contendo 11 quilos de explosivos, imolou-se em um posto de controle de acesso ao aeroporto de Cabul, levando com ele dezenas de vidas, entre elas as de 13 militares americanos.

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Politicamente, a consternação é tão grande que ainda não há consequências dignas de nota, salvo o previsível punhado de críticas republicanas pedindo a renúncia de Biden ou a abertura de um processo de impeachment; no máximo, algumas poucas vozes entre famílias de militares exigindo explicações, responsabilizações. Mas estes são dias de luto, não de política, recordou na sexta-feira a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki. Tudo eclodirá, provavelmente, na volta dos caixões dos soldados para casa. Biden, que nunca imaginou que veria nesta operação a imagem de caixões envoltos na bandeira de listras e estrelas, acompanhou a chegada dos corpos e homenageou as vítimas em uma cerimônia neste domingo na base militar de Dover, no Estado de Delaware.

Além da urgência do desastre, é necessário olhar a médio e longo prazo: para a sombra que ofuscará, ou no mínimo acompanhará, o resto de sua presidência. Com outra frente aberta em casa —o preocupante agravamento da pandemia pela variante delta—, o primeiro desafio é articular um novo discurso, centrado no bom andamento, com nuances, da economia; e também reformular as boas intenções que o levaram à Casa Branca.

De suas promessas de moderação, consenso e defesa dos direitos humanos no mundo durante a campanha eleitoral e os primeiros compassos do seu mandato, Biden passou na quinta-feira a clamar vingança contra o Estado Islâmico, com uma mensagem cheia de fúria e ódio. Cansado, balbuciante às vezes, prisioneiro da emoção, o veterano político não podia mostrar fraqueza —esse flanco que as críticas republicanas esperam abrir—, mas conciliar a determinação e a derrota parece uma tarefa difícil, tanto para o presidente como para seu Governo. Além disso, ele deverá demonstrar aos seus eleitores —e aos seus aliados— que suas promessas não caíram no vazio e que todos os seus objetivos ainda são viáveis. Em um deles, o da abertura ao mundo, sua aposta no multilateralismo após quatro anos de isolamento de Donald Trump, ele parece ter puxado o freio, complicando-se com seus aliados ao rejeitar o pedido da maioria dos parceiros do G7 de que a evacuação fosse adiada.

A salvaguarda dos direitos humanos é outro desafio, diante da situação inquietante dos 250.000 afegãos, entre colaboradores e familiares, que serão abandonados à própria sorte após a retirada dos Estados Unidos, enquanto Washington administra com dificuldades a enxurrada de solicitações de visto especial (SIV, na sigla em inglês), uma modalidade inaugurada na guerra do Iraque para antigos colaboradores locais.

“Os vistos SIV têm um processo de 14 etapas, tanto em Washington como em Cabul, que envolvem a colaboração de seis agências federais. Cerca de 20.000 afegãos estão atualmente esperando um SIV, enquanto outros 70.000, incluindo os solicitantes e seus familiares diretos, reúnem os requisitos para fazer a solicitação”, assinala um relatório recente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, que pede a agilização do procedimento e lembra que, após a queda de Saigon —esse precedente que a Administração de Biden prefere não mencionar—, Washington foi capaz de retirar 140.575 refugiados do Vietnã e de realocar quase 130.000 deles nos EUA em menos de um ano.

Faca de dois gumes

O fato de que os responsáveis pela evacuação tenham fornecido aos talibãs listas com nomes e sobrenomes dos afegãos com visto, teoricamente para que os barbudos que vigiam o perímetro do aeroporto permitissem seu acesso ao local, não ajuda na proteção dos direitos humanos prometida por Biden na campanha. As críticas pelo fornecimento dessa informação, equivalente a colocar um alvo nos refugiados, apontaram a suposta inexperiência da Administração, o que por outro lado é paradoxal, já que grande parte dela está nas mãos de funcionários que trabalharam durante o mandato de Barack Obama.

“As fragilidades que cercam a resposta de Biden no Afeganistão também podem ser vistas na forma como ele lida com outras questões. Se esses hábitos não mudarem, haverá mais debacles no futuro do país”, advertiu nesta semana o conservador Karl Rove, que foi vice-chefe de gabinete de George W. Bush, o presidente que embarcou os EUA na guerra afegã. Uma provável fragilidade estrutural, que na opinião de muitos poderia explicar deslizes como a entrega, aos talibãs, daquilo que já é chamado de lista da morte.

Lutando com a história, de Saigon ao Iraque, Biden é comparado com Jimmy Carter, o bem-intencionado e afável democrata que chegou à Casa Branca prometendo fazer dos direitos humanos a bandeira de sua política externa. O fracasso estratégico no Irã, devido à revolução islâmica de 1979 e à crise dos reféns, intensificou sua imagem de fraqueza, embora a economia —as ondas de choque da crise energética de 1973, além da inflação— é que tenha lhe custado a reeleição em 1980 (um ano depois da crise iraniana). Embora, pela idade (78 anos), seja improvável um segundo mandato de Biden, o apoio ao atual Governo será testado dentro de um ano, nas eleições de novembro de 2022 —no meio de seu mandato—, para as quais democratas e republicanos já esquentam os motores.

Os estragos do desastre afegão na imagem de Biden já eram perceptíveis antes do atentado. Embora a grande maioria dos americanos acredite que não vale a pena lutar na guerra afegã, o presidente tinha no início da semana uma aprovação de apenas 41%, com 55% de rejeição, segundo uma pesquisa da Universidade de Suffolk para o USA Today divulgada na terça-feira. Só 26% aprovavam sua gestão da retirada.

Mas talvez o pouco apoio à sua gestão econômica seja mais preocupante. Segundo a mesma sondagem, apenas 39% dos pesquisados aprovam seu desempenho, num momento em que se preveem problemas para setembro: a derrota do Governo na Suprema Corte, que suspendeu a moratória de despejos, ameaça mandar centenas de milhares de famílias para a rua. E quase sete milhões de americanos podem ficar sem auxílio-desemprego a partir do 6 setembro, quando expira o bônus especial do plano de recuperação da pandemia. O risco de inflação galopante complica um cenário inicialmente animador: apesar das diferenças internas entre moderados e progressistas, os democratas estão conseguindo levar adiante no Congresso os dois grandes planos de infraestrutura (a física e a social) que são a espinha dorsal do mandato de Biden.

“Não acredito que o caos da retirada vá ter consequências políticas”, afirmou, dias antes do atentado de Cabul, a analista Vanda Gelbab-Brown, do centro de estudos Brookings Institution. “A política externa nunca teve retorno eleitoral nos EUA, e os eleitores não estão preocupados com o que possa acontecer no Afeganistão [depois da retirada]. Serão muito mais determinantes as questões internas, principalmente as econômicas”, acrescentou. Outros analistas compartilham sua opinião, prevendo que, quando o fragor do desastre afegão for diminuindo, as águas voltarão, mais ou menos turvas, ao seu curso. Talvez, até mesmo, assim que cair a última pá de terra sobre a sepultura dos soldados mortos em uma guerra longínqua e já alheia.

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