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10 anos de Fukushima: golpe na reputação de uma energia em retrocesso

A energia nuclear continuou a perder peso na geração mundial de eletricidade na última década. Sua principal ameaça agora são as energias renováveis, cada vez mais competitivas

Fukushima
Grupo de operários trabalha na descontaminação em um bosque nos arredores da central de Fukushima (Japão) em fevereiro de 2015.Toru Hanai (Reuters)
Manuel Planelles

O Japão era uma das melhores vitrines da energia nuclear do mundo. Era uma democracia consolidada e um gigante tecnológico em que quase 30% da eletricidade vinha de suas usinas nucleares quando há 10 anos aconteceu o acidente na usina Fukushima Daiichi. O grande tsunami daquele 11 de março de 2011 danificou parte da central, os sistemas de segurança falharam e desencadeou-se um grande acidente, do qual a região não se recuperou. A maioria dos reatores do Japão continua parada desde então e apenas 7,5% da eletricidade agora vem das usinas nucleares. No resto do mundo, a enorme onda golpeou a reputação de uma tecnologia que já experimentava um retrocesso antes do acidente de Fukushima, o pior em instalações desse tipo desde o registrado em 1986 em Chernobyl (Ucrânia).

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A produção mundial de eletricidade em usinas nucleares caiu consideravelmente nos dois anos posteriores ao acidente. E, embora tenha começado a se recuperar em 2013, ainda não atingiu os níveis anteriores à catástrofe, segundo dados da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA na sigla em inglês). Isso em termos absolutos. Porque em termos relativos o protagonismo da energia nuclear não se recuperou. Pouco mais de 10% da eletricidade mundial é gerada hoje em reatores nucleares; em 2010, era de 12,8%.

A maior participação foi atingida em 1996, com 17,5% da eletricidade mundial proveniente dessas usinas; a partir de então houve um declínio sustentado associado ao fechamento dos reatores mais antigos. “A indústria nuclear tinha entrado em crise muito antes do 11 de março de 2011”, diz Mycle Schneider, ativista ambiental e consultor de política energética que há anos monitora a evolução da indústria nuclear em todo o mundo. “Crise já não é a palavra adequada. A energia nuclear tornou-se totalmente irrelevante no mercado da tecnologia elétrica. Desaparecerá, é só questão de tempo”, vaticina o especialista.

A Agência Internacional de Energia (IEA na sigla em inglês) não fala do desaparecimento dessa tecnologia no médio prazo —aliás, em alguns relatórios chegou a instar os países a promoverem a instalação de novos reatores—, mas aponta para uma estagnação e uma perda relativa de peso. Em 2040, os analistas da IEA preveem que a energia gerada pelos reatores será apenas 3% superior que a de 2019 se todos os reatores previstos agora forem construídos. Esse ligeiro aumento e o forte crescimento das formas limpas de produção de energia elétrica —principalmente eólica e solar— farão com que a energia nuclear continue perdendo participação, até cair para 8% em 2040, segundo a mesma agência.

“O acidente de Fukushima aumentou a percepção de risco dessa tecnologia”, lembra Pedro Linares, engenheiro industrial e codiretor do grupo de análise Economics for Energy. “Em alguns casos, como Alemanha ou Suíça, acelerou o fechamento de reatores”, acrescenta. Mas, assim como Schneider, Linares acredita que já havia uma “tendência de fundo” que levava à perda da presença da energia nuclear no mundo.

“Aconteceu com todos nós, incluindo aqueles que trabalham neste setor”, lembra Juan Carlos Lentijo, diretor-geral adjunto e chefe do Departamento de Segurança Nuclear da IAEA, sobre o estupor diante do acidente de Fukushima. “No início, não podíamos entender muito bem que aquilo estivesse acontecendo e que além disso estivesse acontecendo no Japão, um país altamente desenvolvido e com indiscutíveis capacidades de prevenir esse tipo de situação”, recorda.

Lentijo foi um dos especialistas internacionais encarregados de analisar as causas daquele acidente e incorporar as lições aprendidas com ele. E, uma década depois, tem claro que o fator desencadeante do acidente de Fukushima não foi tanto o tsunami, mas a “autocomplacência”.

“No Japão, pensavam que as instalações, os sistemas de segurança, eram tão robustos que podiam suportar praticamente tudo. O acidente mostrou que não é assim”, afirma o especialista. “Foi infantil pensar que era tão sólido que não ia falhar”, enfatiza. Entre as lições que este alto funcionário da IAEA tira do acidente está o peso ganho pela chamada “cultura de segurança”, ou seja, a necessidade de dar “a maior prioridade à segurança” por meio da implementação de “sistemas ativos de identificação de problemas”.

Imagem aérea da usina de Fukushima Daiichi em 24 de março de 2011, um mês depois do tsunami.
Imagem aérea da usina de Fukushima Daiichi em 24 de março de 2011, um mês depois do tsunami.Ho New (Reuters)

Um acidente semelhante pode acontecer de novo? “Espero que não. Tenho confiança de que aprendemos o suficiente. Mas acidentes podem acontecer. Nem todas as tecnologias e nem todos os processos que o homem inventa são perfeitos. O risco zero não existe em nada”, afirma Lentijo.

Trinta países —incluindo a Espanha, onde cerca de 20% da energia elétrica vem de suas cinco usinas em operação— têm atualmente reatores funcionando. Em 2019, último ano para o qual a IAEA tem dados fechados, eram 433 —uma usina pode ter vários reatores. Os Estados Unidos, com 96, apresentam o maior número. Mas a França é o país que mais depende dessa tecnologia: mais de 70% de sua eletricidade é proveniente de seus 58 reatores.

Na Alemanha, a 9.000 quilômetros da central de Fukushima, o tsunami de 2011 gerou outra reação muito forte: três meses após o acidente, a maioria do Parlamento aprovou o fechamento de todas as usinas nucleares até o final de 2022. Naquela época, 22% da eletricidade da Alemanha era de origem nuclear. Em 2019 já havia caído para 12% e Patrick Graichen, diretor do grupo de análise Agora Energiewende, afirma que não haverá marcha à ré e que o fechamento será consumado na data prevista. “Não há clima político que permita reverter essa decisão”, afirma.

“O acidente de Fukushima levantou a questão da segurança da energia nuclear e se é necessário correr o risco desse tipo de acidentes catastróficos para o fornecimento de energia. A opinião pública alemã respondeu com decisão que não”, afirma o diretor da Agora Energiewende, organização que busca promover a transição energética em seu país. Lentijo, por sua vez, acredita que cada sociedade deve fazer um balanço na sua aceitação final: sobre o que se arrisca e o que se obtém. O especialista destaca que em alguns países asiáticos a aceitação da energia nuclear “está em níveis bastante elevados”. Refere-se principalmente à China, que é o outro lado da moeda neste momento.

“Esta é uma história da China e do resto do mundo”, diz o ativista Schneider. “A China é o único país que tem um programa de novas construções importante”, acrescenta. Segundo seus dados, em 2020 foi iniciada a construção de cinco reatores nucleares no mundo e quatro deles estão localizados no gigante asiático. Segundo a IAEA, existem atualmente cinquenta reatores em construção no mundo. Mas as análises da organização à qual Schneider pertence consideram que em pelo menos 33 dos cinquenta casos as obras têm atrasos. Em 15%, o início da construção data de uma década ou mais.

Para além dos problemas provocados pelo acidente de Fukushima, a energia nuclear no mundo enfrenta um problema muito maior, segundo os especialistas consultados para esta reportagem: o alto custo de construção das usinas e do tratamento de resíduos, cuja periculosidade persiste durante centenas e centenas anos e para os quais ainda não foi encontrada uma solução satisfatória. Lentijo o explica assim: “A energia nuclear só tem sentido e só pode ser produzida em um país com o apoio do Estado. É uma energia de Estado, porque exige que a conta de resultados seja importante, mas que, para além disso, a segurança seja priorizada; exige que haja um consenso em não negociar segurança”.

Depois do acidente de Fukushima houve uma decolagem das energias renováveis no mundo. E uma tremenda queda nos custos de geração de eletricidade por meio das tecnologias solar e eólica. “Competitivamente e economicamente não faz sentido construir usinas [nucleares]”, diz Raquel Montón, ativista antinuclear do Greenpeace. “Os projetos só avançam quando há apoio dos países”, acrescenta. Graichen indica que “as novas energias eólica e solar são muito mais baratas do que as novas nucleares, mesmo em combinação com o armazenamento, e a cada ano são mais baratas”.

É difícil encontrar no setor energético alguém que pense que o futuro não será renovável. Mas o lobby do setor nuclear luta há anos para se afirmar como um setor livre de emissões de gases de efeito estufa, pois certamente não gera dióxido de carbono na produção de eletricidade. Quando o Acordo de Paris estava sendo elaborado em 2015, o setor pressionou para a inclusão de alguma menção ao papel que a energia atômica poderia desempenhar na descarbonização. E nas cúpulas do clima que acontecem anualmente, o setor também tenta que se mostre o apoio explícito a essa tecnologia. Linares lembra que no relatório de 2018 do IPCC —painel de cientistas que assessoram a ONU— foi apontado que a energia nuclear poderia contribuir para atingir a ambiciosa meta de manter o aumento da temperatura abaixo de 1,5ºC.

Mas o que se busca neste momento é o parceiro de dança ideal das energias renováveis, que não podem garantir um fornecimento estável de eletricidade, pois dependem do sol e do vento. Outras tecnologias são necessárias para complementar essas energias renováveis e que possam ser administráveis. E essa não é a principal característica das usinas nucleares, que geram eletricidade constantemente. “A capacidade limitada de regulação complica seu futuro”, diz Linares sobre essas usinas.

“Investir em novas usinas nucleares não faz muito sentido econômico atualmente em termos gerais”, acrescenta Linares. Outra coisa é o debate sobre o que fazer com as centrais nucleares existentes. As plantas são normalmente construídas com uma vida útil de cerca de 40 anos. Mas isso não significa que não possam continuar a operar se forem realizadas as obras de melhoria necessárias, que geralmente são lucrativas porque o grande investimento inicial já está amortizado.

A questão da ampliação ou não é o grande debate nuclear agora. “Existe uma ampla experiência em prolongar a vida para além de 40 anos”, explica Lentijo sobre as implicações para a segurança em realizar este processo. Dos 433 reatores em operação registrados pela IAEA, 44% têm entre 31 e 40 anos, ou seja, estão no momento em que os Governos têm de decidir se lhes permite ampliar a vida útil ou não.

Na Espanha, o acidente de Fukushima não teve efeito imediato em seu parque nuclear. O PP, que governou entre 2011 e 2018, buscou ampliar a vida útil das usinas. Mas quem finalmente está autorizando essas ampliações são o PSOE e o Podemos, que rejeitavam esse cenário quando estavam na oposição.

Se a regra dos 40 anos fosse cumprida, a Espanha ficaria sem usinas nucleares em operação em 2028. Mas há alguns anos a atual quarta vice-presidenta, Teresa Ribera, acordou com as empresas de eletricidade —Iberdrola, Endesa e Naturgy, proprietárias das centrais— um calendário de fechamento. Ribera permitiu que as usinas ultrapassassem as quatro décadas, mas ao mesmo tempo conseguiu o compromisso de que nenhuma ultrapasse os 50 anos e de que a última feche em 2035. Se esse calendário for cumprido, nesse momento a Espanha, como acontece em muitos países em que não há planos de construção de novas instalações, se despedirá da energia nuclear, uma tecnologia em retrocesso no mundo.

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