O fotógrafo que captura a passagem do tempo na abandonada Chernobil
Há 25 anos David McMillan retrata a área da catástrofe nuclear e reinventa o conceito de natureza morta
Faz algum som a árvore que cai na floresta sem que ninguém possa escutá-la? As imagens que David McMillan registrou durante os últimos 25 anos na zona de exclusão de Chernobil recordam esse paradoxo budista. O fotógrafo canadense é um dos poucos — mas não o único — a ter passeado ao longo desse tempo pelos espaços abandonados da cidade de Pripiat (norte de Ucrânia), a 30 quilômetros da usina nuclear.
“Deparei-me com um mundo praticamente invisível, que vai se deteriorado sem que ninguém repare nele”, diz o fotógrafo ao EL PAÍS, referindo-se à tragédia nuclear de 1986 agora recriada com sucesso numa minissérie da HBO.
Em vez de capturar o antes e o depois da região maldita, registra “o antes, o depois e o muito depois”, pois viaja para lá de forma recorrente. Seu trabalho dá um novo significado ao conceito de natureza morta e está reunido em um livro da editora alemã Steidl, lançado no começo de 2019 com o título Growth and Decay: Pripyat and the Chernobyl Exclusion Zone (crescimento e deterioração: Pripiat e a zona de exclusão de Chernobil).
A razão para retornar tantas vezes ao lugar é a mais comum que um fotógrafo pode argumentar. “Queria continuar tirando fotos para obter as melhores imagens possíveis e, de tanto voltar, terminei registrando a passagem do tempo”, comenta por telefone.
McMillan, nascido em 1944, pertence à geração da Guerra Fria, para a qual a energia nuclear era um dos temores mais comuns quando se pensava no futuro. Ao chegar a Pripiat, confrontou esse medo transformado em realidade: “A primeira vez que cheguei foi impactante e triste. Havia escolas e apartamentos completamente assolados. Ver esse pesadelo realizado despertou minha curiosidade”.
O fotógrafo conta que em suas primeiras viagens tomava certas precauções. Passava muito pouco tempo na zona e se fazia acompanhar de cientistas que tentavam avaliar sem muito sucesso o nível de radiação. Essa ameaça intangível invade também aquelas imagens. “Era uma sensação estranha, de inquietação e ao mesmo tempo de liberdade ao estar a sós frente ao que queria fotografar”, recorda.
As onipresentes referências a Lênin na cidade-fantasma continuam perenes em edifícios já deteriorados. Mas a natureza foi invadindo o espaço abandonado depois da explosão nuclear, como se vê nas fotos mais recentes de McMillan. Ao longo destas décadas, o canadense foi testemunha de como o ciclo da vida segue seu curso de uma forma muito particular.
Primeiro foram os habitantes da cidade, que retornavam para chorar sua perda; depois se aproximaram artistas como ele, para oferecer outro olhar sobre o ocorrido; mais tarde chegaram os turistas, e agora inclusive se organizam raves na região. “Foi uma evolução inesperada. Virou uma versão tétrica da Disneylândia”, comenta.
Há anos ele já não é a única pessoa com câmera que pulula entre os escombros. “Aparece gente que vem a tirar selfies para poder dizer nas redes sociais: ‘Eu estive lá’”. Ele pôde confirmar essa estranha tendência durante um jogo de futebol em Kiev, a 180 quilômetros de distância. “Na véspera, alguns torcedores escoceses do time visitante alugaram um ônibus para conhecer a zona afetada por Chernobil. Foi muito estranho ver homens de saia fazendo turismo”, admite.
Ainda recorda as primeiras pessoas que encontrou na cidade, nos anos noventa: “Eram pais e mães de família, que fugiram com uma mala pensando que se ausentariam por três dias. Uma vez encontrei um soldado soviético que, depois da dissolução da URSS, ficou desempregado. Retornou com seu pai sem se importar com as consequências. Viviam tranquilos, fazendo pão e vodca e produzindo mel”.
Outra das questões que transparecem nestas imagens aparentemente vazias é a estética como valor politicamente incorreto. Pode-se elogiar a beleza de uma imagem feita nestas circunstâncias? “É um assunto que os artistas questionam frequentemente. Não há afinal beleza literária em Guerra e Paz, de Tolstói, mesmo que retrate um inferno? Os quadros de Velázquez são pura beleza, mas muitos dos assuntos neles mostrados não são agradáveis”, defende.
O acerto de HBO
A estratégia de programação de HBO para seguir mantendo o interesse do espectador/assinante depois de Jogo de tronos está dando seus frutos. Seu miniserie histórica Chernobyl é um dos sucessos da temporada. A David McMillan, que conhece bem a história, também lhe enganchou.
"Há um grande labor de investigação por trás dela. Alguns de seus protagonistas são uma mistura de várias personagens que existiram realmente, a estética soviética está muito bem conseguida e é fiel a muitos detalhes históricos", admite.
O fotógrafo recomenda o podcast de Craig Mazyn, responsável pela série, no que explica todo o processo de produção. "Não estão tentando fazer caixa de uma tragédia, senão que são respetuosos com o que ocorreu. há licenças criativas, mas há detalhes que são impossíveis de confirmar. Ninguém sabe a ciência verdadeira o que ocorreu", diz McMillan.
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