Andrew Marantz: “A supremacia branca tem sido uma ideia estável e duradoura na história dos EUA”
O escritor da revista ‘The New Yorker’ alerta sobre a relação da Casa Branca com extremistas e a falta de ação das redes sociais para evitar a multiplicação de teorias da conspiração
Antes de novembro de 2016, poucos jornalistas nos Estados Unidos davam muita atenção aos trolls da nova direita alternativa, a chamada alt-right, cujo ecossistema era as redes sociais. Esses influencers, em sua maioria jovens e homens, aprenderam a capitalizar os algoritmos do Twitter e do Facebook para multiplicar mensagens falsas, conspirativas e racistas a favor de Donald Trump. Após a eleição, festejaram como sua a vitória do presidente.
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Andrew Marantz, escritor de 36 anos nascido em Nova York, investiga há mais de quatro anos esses grupos supremacistas brancos que, embora não tenham um cargo oficial na Casa Branca, continuam contando com o apoio implícito do mandatário. No primeiro debate presidencial, quando o moderador Chris Wallace pediu que Trump rejeitasse abertamente um desses grupos (os nacionalistas brancos chamados Proud Boys), o presidente evitou o convite. “Retrocedam e esperem”, respondeu, de forma ambígua. Em segundos, o grupo celebrou na Internet promovendo camisetas com a declaração de Trump.
No início deste ano, Marantz, jornalista da revista The New Yorker, publicou o livro Anti-social: Online Extremists, Techno-Utopians, and the Hijacking of the American Conversation (Antissocial: extremistas online, tecno-utópicos e o sequestro do diálogo americano, numa tradução live). O livro levanta questões existenciais sobre os limites da liberdade de expressão nos EUA e as ideologias dentro de empresas como Facebook e Twitter, que permitiram o auge da direita alternativa no país.
Pergunta. Em 2016, quando você começou a seguir várias personalidades da alt-rigth, como Mike Cernovich, seus colegas lhe diziam que por favor não alimentasse esses trolls, que os ignorasse e eles desapareceriam. Mas você decidiu não ignorá-los porque eles “haviam reconhecido que as redes sociais estavam criando um vazio de poder que podia ser explorado”. O que souberam explorar?
Resposta. A primeira coisa que chamou minha atenção sobre essas pessoas não era que fossem interessantes ou inteligentes, e sim que tinham desenvolvido uma habilidade que se tornaria dominante em nosso tempo. Conseguiram identificar onde as velhas estruturas de meios de comunicação estavam se desintegrando ―e como podiam criar novas infraestruturas para substituí-las e ganhar atenção. Essa mentalidade de “não alimente os trolls” pressupõe o seguinte: “Eles não estão dizendo algo que importe, não estão dizendo nada inteligente, então esperemos que um melhor argumento se imponha sobre eles.” Isso pressupõe que o mercado das ideias é funcional, e que a verdade acabará por se impor. Mas não é o caso.
P. Você explica que esses trolls não poderiam explorar o vazio de poder sem a ajuda de alguns guardiões: os donos das redes sociais no Vale do Silício. Como as ideologias desses dois mundos se conectaram?
R. Para mim, era difícil contar a história da direita alternativa sem esse outro lado. Era difícil contar a história dos que estão ganhando nas redes sociais sem pensar nos que são os guardiões das redes sociais. Assim, parte do meu interesse era contar a história de como as pessoas que fundaram as redes sociais em 2004 e 2005, que fundaram Facebook, Reddit e Twitter, tinham uma ideologia que dizia: “O mercado das ideias é como o mercado econômico, e por isso vai se regular sozinho, de forma mágica, vai se ajustar por si só. A gente precisa apenas criar mais liberdade e parar de se preocupar com isso.” Essa é uma fantasia na economia, e acredito que também seja uma fantasia nas redes sociais. Os sistemas não se ajustam sozinhos, nada é puramente neutro. Por isso, se não existir um plano as coisas vão dar muito errado. E se o plano for somente “maximizamos a liberdade, e isso – que coincidentemente nos dará muito dinheiro ―será para o bem comum, e magicamente o mundo caminhará rumo a um lugar melhor”, então esse plano é muito ruim.
De modo que muitos desses homens ―porque são homens em sua maioria ―nunca pensaram nesse tema além disso. Eles estavam ganhando muito dinheiro, estavam na capa das revistas, e todo mundo estava muito emocionado com eles. Não havia uma reação cultural contra eles. Havia muito poucos críticos. Então eles tiveram toda a liberdade durante uma década, e aí essas falhas profundas e estruturais, que sempre existiram, começaram a se tornar evidentes. E quando [suas plataformas] contribuíram para que democracias estáveis passassem a ser Estados fracassados, ou para casos de genocídio, já era tarde demais. Essa é a utopia em que viviam, a ideia de que “a liberdade é algo maravilhoso, nada ruim surgirá a partir disso”. Para mim, esse é o coração do problema.
P. Por causa da pandemia, esta campanha presidencial também é muito disputada nas redes sociais. Como empresas como Facebook mudaram nesses quatro anos?
R. Fizeram algumas mudanças muito específicas. O Facebook abordou algumas lacunas, embora nem sempre tenha aplicado as novas regras. Por exemplo, antes deste ano o Facebook não tinha uma política contra as milícias. Tinha outras políticas que usava às vezes para frear as milícias, mas não tinham uma regra específica contra elas. Em agosto, a empresa adotou uma regra que diz: “Se você é um grupo armado que promove ou glorifica a violência, não tem direito de estar no Facebook.” Mas depois houve uma quantidade de páginas de milícias que não fecharam, incluindo uma em Kenosha, no Wisconsin, onde um garoto branco acabou assassinando manifestantes. De modo que a empresa fez uma mudança de regras que é pequena, que não satisfaz os críticos, e não está claro até que ponto esteja sendo cumprida.
Mas o problema de fundo é que essas redes sociais foram fundamentalmente construídas para maximizar a atenção das pessoas e o tempo que elas passam nas redes ―e isso não mudou. A forma como esses algoritmos maximizam a atenção das pessoas é fazendo-as se sentir indignadas, ou com medo, ou com emoções positivas também, mas é tudo através da manipulação emocional. Se esse problema de fundo não mudar, o resto são medidas paliativas.
P. E quanto ao Twitter? Porque existe a impressão de que o Twitter foi mais ativo politicamente, contra Trump e a alt-right, do que o Facebook.
R. Sim, o Twitter fez mais, mas estamos medindo com um critério muito pouco exigente. No caso de Trump, por exemplo, existem regras que tanto o Facebook como o Twitter disseram que ninguém pode violar, nem o presidente. Mas ele viola essas regras. E o Facebook não faz nada, e o Twitter não faz quase nada. Talvez o Twitter seja um pouco melhor, mas nunca eliminou algum de seus tuítes, simplesmente colocou uma mensagem dizendo: “Alerta, esta é uma mentira perigosa”. Bem, nem sequer diz isso. Diz algo como: “Pesquisem bem os fatos sobre como votar pelo correio.” Uma parte de mim quer reconhecer que [o Twitter] pelo menos fez isso, porque é difícil. Mas é importante lembrar que definimos um padrão muito baixo sobre o que pode ser feito.
P. Uma das teorias da conspiração durante esta campanha tem sido a famosa QAnon, muito semelhante ao que em 2016 ficou conhecido como pizzagate, em que se dizia que Hillary Clinton explorava crianças numa pizzaria. Como esses dois momentos se vinculam?
R. São exatamente a mesma teoria. QAnon é simplesmente uma versão maior, e mais severa, do que foi o pizzagate. Por isso digo às pessoas que, se perceberem que uma dessas figuras da alt-right de repente foi embora, isso não quer dizer que o movimento tenha desaparecido. Algumas pessoas abordadas no meu livro talvez foram banidas nesta ou naquela plataforma. Mas aqui o importante não são os indivíduos, e sim os sistemas e as dinâmicas que se formaram, e essas coisas não mudaram de forma significativa nos últimos anos. QAnon é um grande exemplo. Alguém poderia dizer: “Bem, agora estamos melhor porque não se fala de pizzagate.” Mas isso é porque deu metástase em algo maior, mais atroz, mais violento. Não posso prever qual será a próxima teoria da conspiração que explodirá, ou quem será o novo líder de um grupo extremista. Mas, se não mudarmos as estruturas, essas coisas continuarão acontecendo.
P. Quão próximos estão hoje os membros da alt-right de Donald Trump?
R. Honestamente, acredito que Donald Trump é uma pessoa que literalmente assiste à Fox News o dia todo. Então acho que ele só fala por telefone com pessoas que são da Fox News ou com velhos ricos de Nova York. Não acho que passe muito tempo sondando as pessoas de sua coalizão política, porque acredito que não tenha a curiosidade ou a energia para isso.
Mas acredito que existam pessoas no movimento de Trump que estão conectadas com o movimento alt-right. Sujeitos como [o assessor presidencial] Stephen Miller e [o supremacista branco] Richard Spencer eram bons amigos na universidade. Considero que Miller é inteligente o bastante para não falar publicamente com Spencer. Mas ele lê o que os think tanks de Spencer publicam? Quem sabe. Mas há certas coalizões ideológicas que se mantêm intactas. E a supremacia branca tem sido uma ideia permanente, uma ideia estável e duradoura na história dos EUA. De modo que ninguém precisaria organizar retiros para manter essa ideia viva. É como os EUA foram construídos: uma ideia fácil de manter viva.
P. Uma das pessoas que você entrevistou para seu livro se chama Laura Loomer, que poderia ganhar uma cadeira nas eleições legislativas da Flórida. Quem é ela?
R. Honestamente, é uma das pessoas mais desequilibradas do meu livro. Eu nunca poderia imaginar que ela teria chances de ser eleita para o Congresso. É completamente islamofóbica, tem ideias realmente extremas e horríveis, teorias da conspiração, e é muito impulsiva. Não consegue deixar de ser banida em quase todas as redes sociais por violar as regras. Normalmente, se você vive das redes sociais, parte do que tem que fazer é conseguir se manter nas redes sociais. E ela não parece ser muito boa nisso. Mas ela ri por último porque agora faz campanha com Lara Trump e consegue ser indicada ao Congresso pelo Partido Republicano em seu distrito. Para mim, isso demonstra que o Partido Republicano já é um experimento fracassado. Parte do que tento demonstrar no livro é que as pessoas nos sistemas sobre os quais escrevo são como um reductio ad absurdum. São uma demonstração do quanto as coisas podem se tornar absurdas. Não vejo como alguém pode se sentir bem em relação ao estado de um partido político depois de ver algo assim.
P. Quem ganhará as eleições, e como a desinformação pode afetar o resultado?
R. Infelizmente, venci muitas apostas na eleição passada. Me senti mal por isso, então este ano não estou fazendo apostas. Mas o que mais me preocupa, honestamente, mais do que a reeleição de Trump, são as semanas ou meses posteriores à eleição, se ninguém ainda souber qual terá sido o resultado. Imaginemos que a Fox News anuncia que Trump ganhou a eleição.
Imediatamente, você terá mais de 30 e poucos por cento do país acreditando que isso é verdade. E depois, se nos dias posteriores forem contabilizados mais votos pelo correio e for dito que na verdade isso não era certo, e que [o candidato democrata Joe] Biden ganhou, o que me preocupa é que seja tarde demais. Porque boa parte do que meu livro diz é que as pessoas aceitam a versão da realidade que querem aceitar. Nem sempre aceitarão a versão da realidade que é a real. Se viram uma imagem na TV dizendo que Trump ganhou, e seis dias depois um funcionário eleitoral diz que isso não é certo, simplesmente escolherão acreditar na primeira imagem. Porque é nisso que querem acreditar. Isto é o que me preocupa. Que os cidadãos não possam nem sequer entrar em acordo sobre o resultado das eleições.
Não há nada na Constituição que diga que a Fox News tem que dar um anúncio exato na noite da eleição. O canal pode fazer o que quiser, e veremos o que acontece. E se muitas pessoas, que têm armas e patrulham as ruas, tentarem evitar a apuração de todos os votos, quem impedirá que façam isso? Deveríamos ter uma tradição muito mais forte para monitorar as eleições. Não possuí-la tem a ver com o excepcionalismo americano, que nos faz acreditar que não precisamos dela. Mas precisamos, sim.
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