_
_
_
_
_

Por que o ‘novo normal’ fracassou na Espanha

Especialistas apontam falta de recursos, falhas de planejamento e excesso de confiança como motivos para o país não ter sido capaz de conter a covid-19 após o fim do confinamento

Milhares de bandeiras espanholas representando as vítimas da covid-19 no país, em um parque em Madri, 27 de setembro.
Milhares de bandeiras espanholas representando as vítimas da covid-19 no país, em um parque em Madri, 27 de setembro.OSCAR DEL POZO (AFP)
Pablo Linde

Pouco mais de dois meses separam uma frase do chefe de Governo espanhol, Pedro Sánchez ― “Derrotamos o vírus, controlamos a pandemia e dobramos a curva” ―, desta outra, do seu ministro da Saúde, Salvador Illa: “Vêm pela frente semanas duras em Madri”. A nova normalidade da Espanha não durou. As restrições suspensas em 21 de junho foram sendo reimpostas aqui e ali a partir de julho. Em 18 de agosto, todo o país viveu um endurecimento das limitações, e pouco a pouco novas medidas vão ganhando terreno em cada vez mais áreas, que já voltam a ver o confinamento domiciliar como uma possibilidade muito real e próxima, quando não já adotado.

É a história de um fracasso. A Espanha só conseguiu se afastar das piores estatísticas da Europa na incidência da pandemia de covid-19 por volta da segunda quinzena de junho, para voltar a liderá-las com força em pleno verão europeu, com uma enorme diferença sobre praticamente qualquer outro país do seu entorno. O que aconteceu nesse período?

Mais informações
Residents wearing protective face masks hold food boxes distributed by the government during a lockdown to contain the spread of COVID-19, on the outskirts of Quito, Ecuador, Wednesday, May 27, 2020. Across the region, nearly 30 million more people are expected to find themselves in "situations of poverty" and another 16 million among the extreme poor, the U.N. estimates. (AP Photo/Dolores Ochoa)
Quase 80% dos lares latino-americanos não resistem a 3 meses sem renda
Robot presentado en la Feria Internacional de la Industria de China, en Shanghái, el pasado 15 de septiembre.
Em meio à pandemia, a economia chinesa é a vencedora no jogo do tabuleiro econômico mundial
Una pareja, en el cementerio de la ciudad de Manaos (Brasil).
Um milhão de vidas perdidas para a covid-19

Para encontrar resposta é preciso recuar ao próprio estado de alarme. Ao plano de desescalada. Seu espírito era modelar, conforme concordam vários especialistas: uma revogação assimétrica das restrições, que avançaria nas regiões que apresentassem uma incidência suficientemente reduzida e que garantissem uma capacidade suficiente para fazer frente a eventuais recrudescimentos. Mas houve dois grandes problemas: o Ministério da Saúde preferiu não quantificar quais deveriam ser a incidência e as garantias: não havia parâmetros claros. E muitas regiões avançaram de fase quando não deveriam. O caso mais claro é o de Madri, que começou o processo de desescalada das restrições prometendo uma capacidade de vigilância epidemiológica que nunca cumpriu e que, daí, saltou à nova normalidade ao terminar precipitadamente o estado de alarme antes que todas as demais comunidades autônomas (como são chamadas as regiões da Espanha) percorressem o caminho esboçado inicialmente.

Miguel Hernán, catedrático de epidemiologia da Universidade Harvard (EUA) e um dos especialistas que trabalharam para estabelecer as bases da transição, resume assim: “A nova normalidade era outra coisa. Isto que experimentamos foi simplesmente uma desescalada apressada sem fazer a lição de casa”. Na sua opinião, para chegar a esse momento de restrições relaxadas, que passou a ser chamado de nova normalidade, seriam necessárias quatro condições que, no seu entender, não se cumpriram. A primeira seria a liderança das comunidades autônomas para criar e reforçar tanto capacidades de atendimento, diagnóstico, rastreamento e isolamento ou quarentena. A segunda, a liderança do Governo espanhol para definir indicadores epidemiológicos transparentes e harmonizados que facilitassem ações coordenadas. Em terceiro lugar, um desenho das medidas concretas da desescalada por especialistas multidisciplinares ― incluindo especialistas em epidemiologia e economia ― para combinar uma atividade econômica sustentável com o conhecimento científico disponível sobre o coronavírus. Por último, um processo contínuo de tomada de decisões sobre abertura e fechamento baseado na avaliação de dados epidemiológicos das três semanas anteriores.

Miquel Porta, catedrático especialista em epidemiologia, medicina preventiva e saúde pública, acredita que o fracasso da nova normalidade começou antes mesmo da epidemia. “O erro não foi que não houvesse critérios para a desescalada, e sim a aplicação destes critérios”. E isto aconteceu, opina ele, pela “incapacidade do Estado”. “Não é nem sequer um problema de políticos, e sim do aparato do Estado”, salienta. Para que se entenda bem, cita o exemplo da Agência Tributária, em comparação à inexistente Agência de Saúde Pública, que ele e outros colegas há anos reivindicam: “A Fazenda é um mecanismo azeitado, com ferramentas do século XXI. Obviamente há fraudes e poderia funcionar melhor, mas qualquer imposto municipal em qualquer canto da Espanha fica registrado. O nosso [a saúde pública e os serviços de vigilância epidemiológica] funcionam como no século XIX; é como se houvesse um contador tomando notas com um ábaco”.

O mais semelhante a essa agência na Espanha é o Centro de Coordenação de Alertas e Emergências Sanitárias (CCAES), um departamento do Ministério da Saúde com menos de meia dúzia de funcionários que ficaram sobrecarregados assim que a crise começou. Não havia nem sequer um sistema capaz de compilar os dados de forma rápida e adequada. E, o mais preocupante, ainda hoje não há. Ao menos não totalmente.

Sem rastreadores

Tampouco existe um número suficiente de rastreadores, e a capacidade de atendimento primário, o dique de contenção da segunda onda, está muito aquém da média europeia. Tudo isto se soma ao comportamento dos cidadãos e de algumas empresas, que não se esforçaram o suficiente em proteger a si ou aos seus trabalhadores, a teimosia em não abrir mão do lazer noturno e, conforme apontam alguns especialistas, certo componente aleatório. O resultado foi um coquetel que está deixando uma tremenda ressaca na forma de restrições e novos confinamentos.

O CCAES emitiu um documento, definido em consenso com as comunidades autônomas, que tratava de agir de forma precoce para que os novos casos não se transformassem em transmissões comunitárias ― o que pelo visto não deu certo. O chamado Plano de resposta precoce em um cenário de controle da pandemia de covid-19 foi aprovado em 16 de julho, quando centenas de trabalhadores rurais na região de Aragão já estavam se contagiando. Ele estabelecia três cenários e medidas em cada um deles. Mas, novamente, sem limites numéricos. Não havia cifras a partir das quais fechar as casas noturnas, restringir reuniões ou confinar populações. Dois meses depois, Madri e o Governo central estão discutindo se 500 casos por 100.000 habitantes em 14 dias são suficientes para adotar limitações à mobilidade dos cidadãos. Harvard estabeleceu esse limite em 350.

Entre esse documento e a situação de hoje há um “excesso de viés na direção da normalidade”, nas palavras de Rafael Bengoa, um dos mais respeitados sanitaristas espanhóis. “Justifica-se por parte dos cidadãos, porque depois de ficarem trancados por quase quatro meses é natural querer voltar à normalidade. Mas todos os Governos sabem que esse viés é perigoso em qualquer situação. Deveríamos ter tido um plano mais sólido de desconfinamento. Todas as comunidades se achavam preparadas, mas algumas não estavam. E se você somar isso a um comportamento muito irregular dos cidadãos, cria-se a tempestade perfeita”, afirma.

Excesso de confiança

“Chamar de nova normalidade talvez tenha sido uma falha, porque nos deixou confiantes”, reflete Saúl Ares, cientista do Centro Nacional de Biotecnologia. “Enquanto o vírus estiver conosco devemos ter certeza de três coisas: atendimento primário reforçado ao máximo o tempo todo; rastreadores, com casos ou sem eles, os que forem recomendados. E, terceiro, mesmo que a incidência seja baixa a população deveria viver com as regras de certo distanciamento até que isto passe: evitar encontros em ambientes internos e sempre que acontecerem estar de máscara, além das normas de higiene”, explica.

Nesta mesma linha se manifesta Daniel López Acuña, ex-diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Para muita gente, a nova normalidade era voltar à normalidade, e aí estava um erro fundamental: não assumir que estávamos voltando a um momento de uma curva que se abateu, mas onde o vírus não tinha desaparecido”, aponta.

Até que se chegue à vacina, é possível que seja preciso esquecer aquele conceito efêmero de nova normalidade. Restam meses de batalha contra o vírus pela frente, inclusive uma possível terceira onda. Para surfá-la da melhor forma é preciso dispor de uma boa avaliação. Bengoa e outros 19 sanitaristas assinaram na revista The Lancet um manifesto pedindo que especialistas independentes estudem o que falhou e proponham medidas ao Governo espanhol para que não volte a acontecer, porque, conforme preveem todos eles, quando esta pandemia acabar, outras virão. “Eu não buscaria uma nova normalidade”, afirma Bengoa. Para ele, não será possível voltar à normalidade política, social e de desigualdades que há na Espanha. É preciso mudança. Junto a outro grupo de especialistas, ele trabalha para a OMS em um documento de longo alcance que estabeleça as bases de um sistema de saúde mais planejado, justo e respeitoso com o meio ambiente. Definitivamente, para aprender com os erros, algo que nem sempre aconteceu nesta pandemia.

Informações sobre o coronavírus:

- Clique para seguir a cobertura em tempo real, minuto a minuto, da crise da Covid-19;

- O mapa do coronavírus no Brasil e no mundo: assim crescem os casos dia a dia, país por país;

- O que fazer para se proteger? Perguntas e respostas sobre o coronavírus;

- Guia para viver com uma pessoa infectada pelo coronavírus;

- Clique para assinar a newsletter e seguir a cobertura diária.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_