Chapecoense encara as sequelas do acidente enquanto volta às origens para se reerguer
Clube ainda vive prejuízos emocionais e financeiros do acidente de 2016 e admite os erros que se seguiram e que o levaram à segunda divisão. Time tem dívida milionária após ser exemplo no futebol brasileiro. Agora, resgata um passado humilde dentro e fora do campo
Apenas 750 metros separam o marco zero da cidade de Chapecó, no oeste de Santa Catarina, da Arena Condá, casa da Associação Chapecoense de Futebol. Uma caminhada pelo centro —onde turistas encontram uma catedral, monumentos, praças e barracas de rua com artigos indígenas— em direção ao estádio dá uma noção da relação entre o local e o clube. Quando a Arena se torna visível no horizonte, até a guia da calçada vira verde e branco. Para quem visita, Chapecoense e Chapecó parecem uma coisa só: uma comunidade de 200.000 habitantes, longe dos grandes centros urbanos e esportivos do país, representada por uma equipe cuja boa gestão permitiu almejar grandes conquistas no futebol. A maior delas, há cinco anos, foi interrompida por um traumático acidente que matou 71 pessoas entre jogadores, comissão técnica, dirigentes e jornalistas, em 29 de novembro.
Naquele momento, o time iria jogar a final da Copa Sul-Americana de 2016. Seguia para a Colômbia para disputar a primeira partida da decisão contra o Atlético Nacional de Medellín. A Chapecoense vivia seu melhor momento, esportivo e financeiro. Era o único time da primeira divisão sem dívidas, à frente de outras equipes mais tradicionais, como Flamengo ou Corinthians. “Um exemplo de gestão e organização que deve se espalhar pelo futebol brasileiro”, elogiou na época o narrador Deva Pascovicci, da FOX Sports, ao transmitir a partida em que o clube se classificou para o jogo final. O exemplo ganhou a mídia como case de sucesso de um time do interior catarinense que ganhou relevância em todo o continente. Era o segundo time de coração dos loucos por futebol longe de Chapecó.
Mas o ápice trouxe consigo a tragédia. Foi levando a delegação chapecoense (e jornalistas, como Pascovicci) para disputar a final, que o voo 2933 caiu nos arredores de Medellín, em 29 de novembro de 2016. No avião da companhia aérea boliviana LaMia, faleceram 19 jogadores da Chapecoense, 14 integrantes da comissão técnica, nove dirigentes, sete membros da tripulação. Morreram também 20 profissionais de imprensa e dois convidados. Milagrosamente, os atletas Alan Ruschel, Jakson Follmann e Hélio Zampier Neto sobreviveram. Também o jornalista Rafael Henzel (morto por infarto em 2019) e os tripulantes bolivianos Ximena Suarez e Erwin Tumiri.
O desastre ainda cobra prejuízos emocionais e financeiros. As famílias ainda assimilam viver sem seus amores enquanto a cidade continua a superar o trauma. Passados cinco anos, persiste ainda a cobrança para responsabilizar os culpados pelo acidente. Há processos na Justiça para cobrar indenizações pelo acidente em cinco países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Estados Unidos e Inglaterra. São ações abertas por familiares dos 68 brasileiros que perderam a vida naquele fatídico dia 29 de novembro. Os principais alvos são a seguradora britânica Tokio Marine Kiln, a resseguradora boliviana Bisa, a corretora britânica AON e a companhia aérea boliviana LaMia.
O acidente
Uma das que aguardam um desfecho dos processos é Roze Dávi, esposa do então conselheiro do time Davi Barela Dávi, morto no acidente. “Não tenho muita preocupação em quanto eles vão pagar porque nada vai trazer o Davi de volta. Mas as ações têm a sua importância para fazer justiça”, comenta Roze. Como conselheiro do clube, Davi Dávi embarcou com o time em Guarulhos, na tarde de 28 de novembro de 2016, rumo a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, num voo comercial. A equipe havia jogado em São Paulo no dia anterior. Da cidade boliviana, partiram em direção ao destino final no voo fretado da companhia aérea boliviana LaMia, já na noite do mesmo dia.
Mas o avião partiu sem a quantidade de combustível mínima exigida para o trajeto, como mostraram as investigações. Também não levava um plano de voo adequado e não tinha seguro para voar em território colombiano. Só poderia pousar no no aeroporto internacional José Maria Córdova, em Medellín, se tivesse solicitado um pedido de emergência com antecedência. Os detalhes só vieram à tona depois da tragédia. Sem receber prioridade para pousar, a aeronave caiu sem combustível numa região montanhosa de difícil acesso, entre as cidades de Abejorral e Rionegro, a 30 quilômetros da pista.
O episódio deixou o Brasil em estado de choque e silenciou o mundo do futebol —em uma comoção comum no caso de acidentes aéreos como o que matou a cantora Marília Mendonça, no último dia 5. Como um time tão celebrado poderia ter viajado sem segurança, ceifando a vida de jovens inocentes e de todo o seu entorno? “Está claro para nós que quem morreu, morreu por negligência de quem estamos acusando”, diz Fabienne Belle, que era casada com o fisiologista da Chape, Luiz Cesar Martins. “Antes do avião não ter gasolina, ele não tinha seguro. Então ele não poderia ter saído do chão. Nós não podemos nos calar frente a realidade de que nossos familiares entraram nesse voo sem saber que estava tudo errado”, acrescenta Mara Paiva, que perdeu o marido jornalista e ex-jogador Mário Sérgio. Belle e Paiva fundaram a Associação dos Familiares das Vítimas do Voo da Chapecoense (AFAV-C).
Coube às famílias montar o quebra-cabeça de responsabilidades pela queda do avião. A linha do tempo começa quando a LaMia contratou o seguro proposto pela corretora AON, pela seguradora Tokio e pela resseguradora Bisa. Esta apólice se mostra problemática porque excluiu a Colômbia dos territórios sobre os quais a aeronave poderia voar e por ter sido negociado num valor menor a partir do momento em que a companhia passou a transportar equipes de futebol —o contrário do que acontece no mercado.
Com esta apólice, o avião já não poderia ter decolado de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em direção a Medellín, na Colômbia. Por isso, a defesa dos familiares das vítimas entende que as agências reguladoras de aviação civil dos dois países, que autorizaram o voo entre as duas cidades, precisam assumir responsabilidades. Aparte disso, fica a questão do combustível. A autonomia do avião usado para a viagem, modelo Avro RJ-85, é de cerca de 3.000 km, enquanto a distância do trajeto era de 2.975 km. Num caso com distâncias tão próximas, as normas internacionais de aviação obrigam a realização de uma escala no trajeto, para reabastecimento. Às autoridades colombianas foi apresentado um plano de voo que previa uma parada para reabastecer em Cobija, na Bolívia, a 1.700 km de Santa Cruz. Mas a parada não aconteceu. Já para a parte boliviana, foi enviado o plano de voo real, sem previsão de escala e sem combustível suficiente em caso de imprevisto.
A corrente de erros que causaram o acidente se fechou quando o piloto, ao que tudo indica por medo de sofrer retaliações, demorou para avisar a torre de controle em Medellín que a aeronave tinha uma emergência por falta de combustível, minutos antes de cair. Não deu tempo de pousar após receber a autorização.
Consequências para a Chapecoense
Do lado de fora da Arena Condá, Roze olha para o estádio do átrio Davi Barela Dávi, um memorial construído pela empresa que dirige, em homenagem às vítimas do acidente. É uma pequena praça com uma fonte no meio, onde um mapa da América do Sul une Chapecó a Medellín através de uma luz. Os nomes das 71 vítimas estão escritos em volta e, numa das paredes do estádio, uma arte representa o time da Chape que entraria em campo naquela final. Numa tarde quente de quinta-feira de novembro, quando a reportagem esteve no local, algumas crianças da escola paravam no local para pegar a sombra de uma das árvores e admirar o átrio, como Roze também faz.
“É triste ver o clube nessa situação”, comenta ela, de 66 anos, que é dona de uma imobiliária. A Chapecoense acabou de ser rebaixada para a série B, o que preocupa Roze, que hoje é conselheira do time. Como alguém que acompanha o time desde os 14 anos de idade, a empresária garante, porém, que não é o fim do mundo. “A Chapecoense é a embaixadora da cidade. Por isso eu sigo aqui e vou ajudar a reerguê-la”, diz ela, com olhos marejados atrás dos óculos escuros. Roze ajuda financeiramente o clube ao comprar ingressos para os funcionários de sua imobiliária frequentarem os jogos da Chape.
O time nasceu nos anos 1970, da ambição de jovens atletas da cidade que decidiram ousar e fundaram o primeiro time profissional a partir da união de duas equipes amadoras. Era um tempo próspero, com o chegada da agroindústria, que levou desenvolvimento ao município. Chapecó tinha então pouco mais de 50.000 habitantes, principalmente na zona rural.
O time alcançou dois títulos do campeonato catarinense, em 1977 e 1996. A fase mais recente e vencedora começou há pouco mais de 10 anos. Desde 2007, foram mais cinco conquistas no Estado e um título da segunda divisão brasileira, além de participações frequentes em competições da elite nacional e continental. É com essa realidade que Roze compara a decadência atual do clube.
O Chapecoense tem muito claro o seu papel para a cidade. E foi exatamente isso que fez o time eleger suas prioridades. O clube assumiu parte da responsabilidade pela tragédia do voo de 2016, após sofrer 37 processos na Justiça trabalhista, dos quais 26 chegaram em acordo e 11 ainda tramitam. Os recursos para compensar as ações impactaram a situação financeira da Chape, que era exemplar há cinco anos. Depois de zerar o déficit em 2016, o clube acumula hoje 120 milhões de reais em dívidas, dos quais 30 milhões são referentes às indenizações do acidente.
Aqui se revela outra cicatriz profunda no time. “A perda imensurável é das pessoas, mas também da inteligência. Aquele grupo fez a Chape ser um clube ao mesmo tempo comunitário, responsável financeiramente e equilibrado, e isso nós perdemos no acidente”, afirma o atual presidente do clube, Gilson Sbeghen. “As pessoas que entraram depois não levaram para o mesmo caminho. Tenho certeza que, se não tivesse acontecido, a situação seria bem diferente hoje”, completa. Hélio Neto, ex-jogador que sobreviveu ao acidente e hoje trabalha como superintendente de futebol da Chape, também tem opinião parecida: “Faltou maturidade [de quem assumiu após o acidente]. Entrou muito dinheiro em 2017 que não correspondia à realidade do clube. O clube deixou de trabalhar com os pés no chão e hoje estamos pagando a conta”, disse.
Em grande parte, a situação se degradou pelo “passo maior que a perna” dado após o acidente. Várias ajudas financeiras chegaram à Chapecoense em 2017, que a ajudaram a se reconstruir. Mas, com as receitas além do esperado, vieram os gastos também exagerados. Em um ano, a dívida saltou de zero para 37 milhões de reais, e para 90 milhões no ano seguinte. A ansiedade em dar uma resposta após o acidente explica parte desse descontrole. Houve contratação de jogadores e outros profissionais que o clube não conseguiu sustentar. Perdeu-se também um espírito de equipe que o clube ainda não conseguiu reencontrar.
Em 2019, a Chape viveu o primeiro rebaixamento à série B, o que derrubou a receita das transmissões de TV, por exemplo. O faturamento caiu de 73 milhões de reais para 28 milhões. “O clube viveu o momento [em 2017] e não pensou no futuro. Esse foi o erro”, avalia Sbeghen. Isso inviabilizou até a ajuda que o clube dava a mais de 50 famílias de vítimas do acidente.
No ano seguinte, o time parecia ar da volta por cima com um título de campeã da série B 2020, que devolveu a Chape para a elite em 2021. Mas não foi o suficiente para fechar as contas. No meio da campanha vitoriosa, o clube chegou a fazer uma vaquinha com torcedores na qual arrecadou 15.000 reais, apenas 5% do valor desejado. Também viu seus jogadores se recusarem a treinar por atrasos nos vencimentos, em janeiro de 2021. Além dos 120 milhões de reais em dívidas, o clube também lida com atrasos no pagamento de direitos de imagem de seus atletas.
Gestão austera
“Pagar a conta”, como colocou Neto, tem relação direta com o rebaixamento consumado a sete rodadas do fim do campeonato. Como resultado da crise financeira, Neto revela que o time da Chapecoense que disputa a primeira divisão é mais barato do que o que jogou a segunda divisão. “Poderíamos fazer um time bom e deixar a dívida para a próxima gestão, repetindo o erro anterior. Mas preferimos fazer certinho mesmo que tome porrada”, afirma o ex-jogador, de 36 anos, que recebeu o EL PAÍS no gramado da Arena Condá na tarde de uma sexta-feira. Ele havia acabado de voltar do Mato Grosso com a delegação, onde a Chape empatou por 0 a 0 com o Cuiabá. O time ainda jogaria mais uma vez (2 a 2 com o Flamengo) antes da queda ser confirmada. Mas o investimento modesto já tornou o destino do time irreversível desde o início do torneio.
Neto fala num tom tranquilo enquanto gesticula. Trocou a camisa da viagem por uma polo da Chapecoense levada pela assessora e, de shorts no calor catarinense, tira fotos só da cintura para cima. Por vezes perde o olhar no gramado onde se acostumou a passar boa parte da sua vida. Ele tentou voltar a jogar de 2017 a 2019, mas falhou pelas sequelas físicas do acidente, inclusive um joelho que nunca se recuperou 100%. Mas não lamenta. “Acho que Deus não quis que eu voltasse a jogar, e não posso reclamar. Só de estar vivo aqui...”, reflete, olhando para o céu. Ele foi o último sobrevivente a ser encontrado nos destroços do avião, após mais de 10 horas de espera, e chegou no hospital com o estado mais grave entre os vivos.
Por outro lado, Neto é o único a voltar com vida da Colômbia que permanece ligado ao clube. “Eu sempre fui o mais identificado com a Chape. Poderia fazer um acordo com o clube e ficar em casa recebendo, mas quero estar aqui e ajudar o clube por amor”, justifica.
Alan Ruschel seguiu com a carreira no futebol e hoje defende o América-MG. Jakson Follmann, que perdeu a perna, seguiu carreira na música e se mudou para São Paulo.
Gilson Sbeghen e Neto chegaram aos seus cargos atuais com a situação administrativa da Chapecoense já degradada. O presidente era vice de administração e finanças desde 2019, mas assumiu como mandatário com a morte do antecessor, Paulo Magro, por covid-19 em dezembro de 2020. A crise administrativa é outro reflexo da fase do clube: a Chape teve apenas um presidente de 2010 a 2016, e quatro entre 2016 e 2021. Plínio David de Nês assumiu o lugar de Sandro Pallaoro, logo após o acidente, mas renunciou em 2018. Magro entrou no seu lugar e ficou até a morte. Sbeghen então assumiu, mas também já confessa que deixará o cargo ao fim do mandato, em dezembro de 2021.
Busca por indenizações
O advogado Josmeyr Oliveira, que representa alguns familiares das vítimas do Chapecoense e trabalha com a AFAV-C, conta que a maioria dos parentes ingressou com uma ação na Flórida, Estados Unidos, onde foi feita a contratação do seguro que proibia a aeronave de sobrevoar a Colômbia. Foi este o processo que, até agora, deu mais resultado: em primeira instância julgada em setembro de 2020, o juiz Martin Zilber definiu a indenização total de 4,77 bilhões de reais (na cotação da época) para as 42 famílias presentes no processo, a serem pagos por corretora, seguradora e resseguradora.
O andamento do processo na Flórida, no entanto, foi paralisado por uma ação movida na Justiça de Londres pela Tokio Marine Kiln. Nela, a seguradora lista outras 12 empresas que atuaram como “resseguradoras e/ou [...] agentes gestores” da aeronave. Se forem comprovados os envolvimentos, todas precisarão dividir o valor da indenização.
Para ajudar as famílias no levantamento de responsáveis, foi criada uma CPI no Senado em dezembro de 2019, sob a relatoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF). A CPI tinha o prazo original de 180 dias, mas foi suspensa em março de 2020 por conta da pandemia de covid-19. Desde outubro de 2021, Lucas pede a reabertura da Comissão, especialmente após a conclusão da CPI da Pandemia, para encaminhar também seu final antes de acabar o ano. Até agora, não foi atendido. A ideia é ouvir Celia Castedo Monasterio, controladora de voo boliviana responsável pela análise e aprovação do plano de voo 2933. Ela estava foragida desde o acidente e foi presa pela Polícia Federal em setembro último, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul.
Voltar às origens
Enquanto luta por Justiça, o Chapecoense trilha seu caminho no gramado para reencontrar o seu tamanho. O novo capítulo tem a austeridade como pilar. “O lado bom é que a essência do clube vai ser resgatada, ainda que de maneira drástica. Jogar a segunda divisão não é o fim do mundo, mas é saber que não podemos errar nos gastos, entender o que é o clube e a comunidade. Somos gigantes na essência, mas não em patrimônio. Nosso estádio é municipal, nosso centro de treinamento é arrendado. Sempre fizemos com pouco e temos que voltar a ter esse pensamento”, desabafa Neto.
A meta da Chapecoense para 2022 é modesta: não ser rebaixada à série C e “evitar uma espiral de rebaixamentos”, nas palavras do presidente. Uma projeção que combina com os objetivos a curto prazo de ajeitar as contas, garimpar reforços baratos e se reconectar com o espírito de clube comunitário e regional. E depois? “Nós aprendemos por aqui que não podemos fazer planos pensando muito lá na frente. Sabemos que precisamos programar o amanhã para evitar os erros passados, mas além disso... Não é tudo que está nas nossas mãos. Vamos reconstruir aos poucos”, responde Neto. A torcida é enorme. Depois do acidente, o Brasil tem uma espécie de dívida emocional com o Chape. Retoma um slogan que marcou a trajetória do time, fundado em 1973. “A Chape é o primeiro time de muitos, o segundo de todos”.
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