‘Maior campeão do mundo’, o ABC de Natal encara a última divisão do futebol brasileiro
Time potiguar amplia hegemonia e recorde de títulos em um mesmo torneio, enquanto tenta sobreviver ao rebaixamento à Série D e à crise econômica causada pela pandemia
Situado entre os cartões-postais da Ponta Negra, área nobre e turística de Natal, o estádio Frasqueirão ostenta uma imponente apresentação em suas tribunas: “o maior campeão do mundo”. Torcedores visitantes mais afoitos podem, num primeiro momento, julgar a frase como uma hipérbole típica de alguns natalenses. Mas o feito, embora exagerado, realmente pertence ao ABC Futebol Clube, time que jamais conseguiu triunfar na primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Isso porque não há outro no planeta que tenha erguido tantas taças em um único torneio.
No começo de setembro, a equipe alvinegra conquistou seu 56º título do Campeonato Potiguar, que ficou mais de quatro meses paralisado por causa da pandemia de coronavírus. Com o novo troféu, o ABC de Natal ampliou a vantagem sobre o Rangers, 54 vezes campeão escocês e segundo colocado na lista de clubes com mais títulos em uma competição oficial. O time, que não vence o campeonato da Escócia há quase uma década, acabou superado nesse ranking peculiar em 2018, quando o ABC se consagrou como o melhor do Rio Grande do Norte pela terceira vez seguida. Atual campeão da Irlanda do Norte, o Linfield também chegou a 54 títulos no torneio local e igualou a marca do Rangers. No Brasil, quem mais se aproxima do ABC é o Paysandu, do Pará, com 47 conquistas estaduais. Na América, o Peñarol, com 50 títulos uruguaios, ainda segue distante do recorde.
De forma despretensiosa e, até certo ponto, espirituosa, o ABC se autoproclamou “o maior campeão do mundo” no início dos anos 2000, lembra o pesquisador Marcos Trindade. Dono de um vasto acervo sobre a história do futebol potiguar, ele alertava que, para reivindicar tal distinção, ainda faltava ao time alvinegro desbancar o Rangers. “Os torcedores me atacaram, mas, naquela época, o ABC era o que mais tinha vencido um mesmo campeonato no Brasil, não no mundo”, diz Trindade. O pesquisador entende como legítimo o alarde do clube em torno da marca, ressaltando a importância dos torneios estaduais para as equipes do Nordeste e do clássico contra o América de Natal, que tem 20 títulos a menos que os abecedistas. “A rivalidade no Estado é muito forte. Pra gente, um ABC x América tem peso semelhante ao de um Barcelona x Real Madrid, na Espanha.”
Apesar de um campeonato estadual não ser equivalente à conquista de uma liga nacional, o ABC ainda se orgulha de outras façanhas notáveis. O time potiguar e o América-MG são os únicos a ganhar uma competição por 10 vezes consecutivas. De 1932 a 1941, a equipe não deu chances a seus adversários no Rio Grande do Norte. Poderia, inclusive, ter ultrapassado os mineiros caso o Estadual de 1942, ano seguinte ao decacampeonato, não tivesse sido suspenso. Entre os motivos para o cancelamento do torneio, que era liderado pelo ABC, estavam a instalação de uma base do exército norte-americano perto de Natal e o decreto que colocava o Brasil ao lado das tropas aliadas na Segunda Guerra Mundial. “O clima bélico na cidade contribuiu para que houvesse um desinteresse pelo futebol”, conta Trindade.
Pelo decacampeonato, o ABC entrou para o Guinness Book, juntamente com o América Mineiro. Mas, além do selo de “maior campeão do mundo”, o clube também busca o reconhecimento do livro dos recordes pelo que apregoa se tratar da excursão internacional mais longa da história. Impedido de disputar o Campeonato Brasileiro, como punição por ter escalado jogadores irregulares na edição anterior, a equipe de Natal encontrou como solução para manter o elenco em atividade disputar amistosos fora do país. Entre agosto e novembro de 1973, o ABC visitou nove países, onde realizou 24 partidas, incluindo confrontos diante de seleções como Somália, Etiópia e Líbano. Ao todo, a delegação abecedista passou 102 dias viajando pelo exterior —e não se tem registro de mais comitivas de esportes coletivos que tenham resistido tanto tempo longe de casa.
No presente, entretanto, a luta do ABC é por sobrevivência. Em 2017, antes de bater o recorde do Rangers, o clube terminou a temporada de maneira melancólica, rebaixado para a terceira divisão nacional. No ano passado, caiu de novo, dessa vez para o último escalão do Campeonato Brasileiro, a Série D, algo que nunca havia acontecido ao longo de sua história centenária. Este ano, em que pese a consolidação da hegemonia local, enfrenta dificuldades devido à pandemia. No meio da crise sanitária, o clube, sufocado por dívidas, precisou suportar a renúncia de um presidente, sem contar a fuga de patrocinadores e jogadores. “Perdemos muitos atletas [durante a paralisação do Campeonato Potiguar] e não tivemos reposição. Foi uma conquista muito dura, que deve ser valorizada”, ponderou o técnico Francisco Diá ao enaltecer a campanha do 56º título estadual.
“Ser ‘o maior campeão do mundo’ não é pra qualquer um”, gaba-se a comerciante Maria Quintino, 44, torcedora do ABC. “Queria ver se algum time da Europa ganharia tudo que a gente ganhou jogando aqui, debaixo desse sol de lascar em Natal.” Para a apaixonada torcida de um time da última divisão, ser o primeiro da lista dos grandes vencedores do planeta - ainda que em uma espécie de campeonato à parte - tem o seu valor.