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‘Persona’, raridade da música brasileira e híbrido de disco e jogo, volta ao mercado em selo independente

Álbum de experimentações psicodélicas composto por Luis Sérgio Carlini, que foi guitarrista da banda Tutti Frutti, e pelo artista plástico Roberto Campadello nasceu na XII Bienal de São Paulo, em 1975

Cena do jogo 'Persona'.
Cena do jogo 'Persona'.

“Você pode me alimentar?” Foi com essa pergunta que o músico Luis Sérgio Carlini, então guitarrista da banda Tutti Frutti, de Rita Lee, foi recebido em 1975 pelo artista plástico italiano Roberto Campadello na instalação Casa Dourada no Sesc Pompeia. O espaço era constituído por um corredor de grandes espelhos. Entre eles, no chão, estavam cubos com desenhos que remetiam ao I Ching - O livro das mutações (uma espécie de oráculo chinês traduzido no Brasil pelo próprio Campadello). Em resposta à pergunta inusitada do artista que acabava de conhecer, o guitarrista convidou-o para almoçar na sua casa, dando início a uma amizade e ao gérmen do que se tornaria uma avis rara da música brasileira: Persona, um híbrido de álbum musical e jogo de velas e espelhos, no qual a metade do rosto de uma pessoa se soma ao reflexo da metade do rosto da outro —uma ilusão de ótica de fusão de faces, que décadas depois seria popularizada pelo Photoshop.

Experimentações psicodélicas em riffs de guitarra mescladas com sussurros, cânticos e batidas em oito faixas, totalizando meia hora de duração, compõem o disco em 10 polegadas, uma raridade que custa até 2.500 reais no mercado de colecionadores, mas que acaba de ser reeditado pelo selo independente paulistano Nada Nada Discos. “É tipo o som da banda Tutti Frutti, só que ao contrário”, define bem Mateus Mondini, dono do selo, que lançará o Persona ainda este ano também na Europa. “Todo colecionador de música brasileira conhece o disco, mas o jogo é pouco conhecido. Quando meu sócio apareceu um dia com a capa dele dizendo que tinha um amigo que conhecia a família do artista, resolvi ir atrás dessa história”, conta Mondini, que também é dono de uma loja de discos no centro de São Paulo.

A instalação Casa Dourada, do artista Roberto Campadello, na XII Bienal de Arte de São Paulo.
A instalação Casa Dourada, do artista Roberto Campadello, na XII Bienal de Arte de São Paulo.Cortesia de Carmen Flores

O Persona sempre chamou a atenção dos colecionadores graças a sua capa, antes mesmo que a agulha roçasse o vinil: a imagem que funde as caras de uma mulher e de um gato é o convite para a experiência de um “multimídia desplugado”, como define a artista Carmen Flores, viúva de Campadello. Aos 19 anos, em 1975, ela entrou na XII Bienal de Arte de São Paulo e deparou-se com a Casa Dourada, que havia sido montada pela primeira vez ali. “Transitei pelo corredor de espelhos e senti um turbilhão, uma espécie de déjà vu. O Roberto estava do lado de fora da instalação e nossas metades se refletiam e se completavam. Começamos a brincar com os espelhos, a dançar, enquanto nossos corpos se misturavam nos reflexos. Depois disso, comecei a frequentar a Bienal todos os dias, nos apaixonamos e casamos lá mesmo”, conta ela, que participou da adaptação da obra de arte em formato de disco e jogo, cantando, inclusive, em duas faixas do álbum.

Capa de 'Persona'.
Capa de 'Persona'.

Campadello passou para Carlini as diretrizes e o guitarrista compôs as músicas em duas semanas. A primeira versão foi gravada em cassete, num estúdio improvisado na casa do próprio músico. Mesmo com o enorme sucesso comercial da Tutti Frutti na época, Carlini quis experimentar o outro lado da moeda, fora do eixo mainstream da indústria. “Eu topei participar disso porque era uma chance de aprender, caminhar por outro lado, e achava genial a ideia do jogo, fui seduzido por ele. Era uma honra participar disso”, diz ele, que garante que o álbum, sozinho, não tem efeito sem o jogo de reflexos e vice-versa. O guitarrista também reconhece que a efervescência cultural dos anos setenta, “quando o mundo passou de preto e branco para colorido”, foi responsável por essa experimentação. “Eu , pessoalmente, vivia um momento muito enérgico de criatividade, usava LSD e outros alucinógenos”, lembra.

Não é preciso, no entanto, recorrer a essas substâncias para experimentar a sensação de transcendência ao escutar e jogar o Persona. Carmen Flores faz referência ao filósofo e linguista Umberto Eco para explicar que trata-se de uma “obra aberta”, que proporciona diferentes experiências a diferentes públicos. “É algo intimista, perpassa o tato, outras sensações, o afeto. É uma surpresa”, resume.

É, de fato, uma experiência bastante sensorial. Depois de acender as velas e posicionar os espelhos para jogar com sua esposa, Mateus Mondini teve certeza de que queria trazer o Persona de volta ao mercado. “É como se você fosse realmente atravessado pela outra pessoa e se deixasse atravessar por ela”, tenta explicar o que é quase inexplicável.

A curiosidade e culto de que a obra é alvo hoje em dia é totalmente diferente da (pouca) atenção que recebeu quando foi lançada —era vendida apenas em livrarias, galerias de arte e exposições. Apesar do fiasco comercial, Campadello e Flores dedicaram sua vida a ela. Entre 1979 e 1988, eles tiveram no paulistano bairro do Bixiga o bar Persona, um dos primeiros de São Paulo a integrar o conceito de arte, música ao vivo e bebida. No porão, velas e espelhos estavam dispostos para os clientes que quisessem brincar. “O bar foi minha juventude”, lembra, saudosa, Carmen Flores, que, ao longo de 15 anos, foi registrando as diferentes reações de cada pessoa àquela proposta de transcendência. “Algumas pessoas não gostavam do jogo, tinha gente que até saía correndo, e outras se apaixonavam tanto por ele que passavam horas se olhando. Teve um casal que ficou três horas lá e tive que dar uma chacoalhada para trazê-los de volta à Terra”, ri.

Tanto ela quanto Carlini estão curiosos sobre a reação do público de 2021 a uma obra multimídia concebida na era analógica do século passado, mas, independente disso, se dizem felizes pelo Persona manter-se “vivo”, o que era o sonho de Campadello, falecido há cinco anos. “Esse trabalho teve uma trajetória muito gratificante, virou um ícone cultural, um disco de culto. A ver agora qual será o próximo capítulo de sua história”, diz o guitarrista.

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