Fugas, discriminações e tragédias: a história por trás de ‘Power Rangers’, o fenômeno que se recusa a morrer
Série surgiu como um sucesso incompreensível nos anos noventa, mas a Nickelodeon prepara uma nova temporada e seus atores originais já estão chegando à casa dos 50 anos
No Natal de 1994, o The New York Times noticiou um acontecimento inédito nos EUA: por todo o país, milhares de pais faziam fila durante dias inteiros à porta das lojas de brinquedos para conseguir os acessórios de uma série infantil em que cinco adolescentes ― na verdade, na faixa dos 20 anos, como diz a tradição ― com roupas de lycra de cores berrantes lutavam com figuras de isopor que seriam ridículas até em uma apresentação escolar. A série se chamava Power Rangers, o nome de sua equipe de heróis e heroínas, e provavelmente essa indisfarçável cafonice era um dos segredos de seu enorme sucesso.
Figuras articuladas, lancheiras, roupas, disfarces, relógios, cinturões... os donos de seus direitos tinham estampado imagens da série em qualquer superfície física que pudesse ser vendida, mas, apesar da enorme oferta, as lojas ficavam constantemente sem estoque. Os pais mais desesperados molhavam a mão dos vendedores das lojas de brinquedos com notas de cem dólares (560 reais) para tentar obter o cobiçado material, os menos escrupulosos moralmente rasgavam as caixas de material que se acumulavam nos corredores antes de chegar às prateleiras, e os conspiranóicos diziam que tudo não passava de uma estratégia do fabricante para aumentar a demanda.
Não era. A Bandai teve de criar uma dúzia de fábricas novas que funcionavam 24 horas por dia, sete dias por semana, para poder satisfazer o anseio por produtos relacionados à série, o que não impedia que se esgotassem diariamente. O material relacionado aos Power Rangers chegou a representar quase 50% da venda de brinquedos naquele ano, duplicando o que sucessos como as Tartarugas Ninja tinham conseguido. Só a irredutível Barbie era páreo para eles. Ninguém estava preparado para o sucesso de uma série cuja principal característica é que era ridícula.
Ninguém mesmo? Não. Havia um homem que confiava cegamente naquele produto fazia anos e agora contava os dólares que entravam em seu bolso com um sorriso de satisfação: o empresário israelense Haim Saban. Durante uma viagem de negócios ao Japão, Saban, que acumulara uma pequena fortuna adaptando no Ocidente trilhas sonoras de séries japonesas, ficou empolgado com Kyoryu Sentai Zyuranger, uma série que causava furor na televisão local. O formato era inédito no Ocidente, mas clássico no Japão, que repetia e melhorava a fórmula havia décadas. Esse formato recebeu o nome de Super Sentai e se caracterizava por ser protagonizado por um grupo de cinco ou seis adolescentes que combinavam seus poderes para enfrentar monstros gigantes.
A primeira ideia de Saban foi limitar-se a dublá-la e transmiti-la sem alterações, mas, diante da perspectiva de que o público ocidental não captasse as referências culturais e isso o afastasse do produto, decidiu adaptá-la, ou melhor, criar um mix ― porque, para baratear custos, usou imagens das brigas da série japonesa, afinal, era impossível saber quem estava sob os capacetes. Uma economia substancial que teve alguns inconvenientes, como o fato de que na versão original o power ranger amarelo era um homem e isso fazia com que, nas cenas de luta, sua compleição variasse e suas formas femininas desaparecessem, mas quem iria reparar em um detalhezinho desses quando o personagem dividia a tela com um monstro metade polvo e metade abacaxi? Hoje, essa circunstância baseada apenas na economia de alguns milhares de dólares daria origem a uma centena de teses no Twitter sobre a relação oculta entre o gênero, a metamorfose e a lycra amarela.
Durante oito anos, Saban percorreu todos os escritórios dos produtores de televisão tentando vender sua ideia, até que Margaret Loesch, da Fox Kids, concordou em lhe dar uma oportunidade.
Com a ideia vendida, Saban recrutou cinco atores com conhecimentos de artes marciais, mas sem nenhuma experiência prévia diante das câmeras, que embarcaram no projeto acreditando que não passaria do piloto. A definição de seus personagens não foi muito sofisticada: os roteiristas se limitaram a refletir todo o leque de estereótipos que existem em uma escola e já podiam ser encontrados em qualquer serie sobre adolescentes, mas, diferentemente do que era comum nestas, incluiu dois elementos que foram fundamentais para sua popularidade: diversidade racial e que dois daqueles jovens que lutavam para salvar o mundo fossem garotas. Uma peculiaridade importante que contribuiu para que a série cativasse igualmente meninos e meninas. Pela primeira vez, elas podiam sair por aí dando pontapés voadores sem imitar um personagem masculino.
O argumento da série era tão simples quanto extravagante e copiava sem escrúpulos a versão japonesa: a supervilã Rita Repulsa, que passou milhares de anos confinada em uma prisão espacial, foi libertada por engano por alguns astronautas, o que levou um ser interestelar chamado Zordon a recrutar um grupo de adolescentes de Los Angeles para proteger o planeta de sua maldade. Zordon atribuiu a cada um os poderes de um dinossauro ― sim, dinossauros, afinal, todo mundo adora os dinossauros ― e uma cor para defini-los.
Jason (Austin St. John, 1974) seria o power ranger Vermelho e o líder da equipe; Kimberly (Amy Jo Johnson, Massachusetts, 1970) o rosa; Zack (Walter Emanuel Jones, Michigan, 1970) o negro; Billy (David Yost, Iowa, 1969) o azul e Trini (Thuy Trang, Saigon, 1973−San Francisco, 2001) o amarelo. No meio da temporada se somou à equipe Tommy Oliver (Jason David Frank, Califórnia, 1973), que inicialmente chegou como um aliado de Rita Repulsa e estava destinado a desaparecer depois de uma dezena de capítulos, mas seu personagem caiu tanto no gosto do público que acabou voltando à série por aclamação ― aclamação que, naquela época, não se limitava a uma hashtag, precisava de um envelope, um selo e uma ida ao correio, o que tem muito mais mérito. Transformado em power ranger branco, acabou se tornando o líder da equipe e o mais popular de todos.
A dinâmica não variava muito de um capítulo para outro, mas quem queria isso? Em cada nova aventura, Rita enviava à Terra um terrível monstro de papel machê e os cinco amigos demonstravam que a união faz a força, metamorfoseando-se e juntando-se para destruí-lo.
Ninguém na Fox podia imaginar que aquela estética tão pobre pudesse dar certo, e o longa Power Rangers: O Filme (Mighty Morphin Power Rangers) estreou quase escondida − em alguns países, foi preciso trocar a palavra morphin (“metamorfoseante”) do título original, porque lembrava muito o termo “morfina”), como o próprio Saban contou à Entertainment Weekly em um especial por ocasião do 25º aniversário da estreia da série.
“As afiliadas se queixaram ao presidente da Fox, Rupert Murdoch: ‘O que Margaret Loesch está pensando, ela quer colocar essa coisa no ar?’. Mas ela foi muito corajosa, até certo ponto. Programou a série para o início da manhã, no verão, basicamente a faixa horária que era o cemitério” das séries, contou Saban
Mas pouco depois de seu lançamento, em 28 de agosto de 1993, Power Rangers se tornou o programa infantil com maior audiência na televisão americana. As crianças ficaram tão cativadas quanto Saban naquela viagem ao Japão. A partir do primeiro capítulo, mergulharam totalmente naquele universo brilhante de camaradagem e monstros risíveis liderados pela carismática Rita Repulsa, outro dos pilares do sucesso da série, uma malvada histriônica, cuja atriz original jamais pisou em um set americano: assim como nas sequências de brigas, a produtora se limitou a dublar livremente as cenas rodadas para o original.
Na Espanha aconteceu o mesmo que nos Estados Unidos. Depois de sua estreia no canal Telecinco em 1994, tornou-se um fenômeno infantil, para espanto de muitos irmãos mais velhos que, alheios ao conceito de Super Sentai, só viam na tela uma mistura entre seus saudosos Mazinger Z e Comando G, mas com atores que interpretavam seus papéis muito pior que os desenhos animados. Em meados dos anos noventa, os pátios das escolas espanholas ficaram repletos de crianças que saíam para o recreio aos gritos de “metamorfose!”, e a principal disputa antes da grande briga era sobre quem faria qual personagem, porque havia power rangers para os gostos de todos, mas todos queriam ser o branco Tommy ou a rosa Kimberly.
A primeira das três temporadas da série foi gravada na íntegra antes de ser exibida, em jornadas de mais de 15 horas de trabalho e por um salário ínfimo. Quando a série estreou e os atores viram seu sucesso e o que isso significava economicamente, decidiram pedir sua parte do bolo, mas se depararam com a resposta negativa dos produtores. Três dos membros originais, os power rangers amarelo, branco e negro, abandonaram a série, mas isso não afetou seu sucesso, já que simplesmente foram substituídos ― afinal, o que as crianças queriam ser era um power ranger, não importava quem estivesse debaixo do uniforme.
A série seguiu em frente sem eles e já rendeu 20 sequelas exibidas em dezenas de plataformas ao redor do mundo, dois filmes e inúmeros games. Seus direitos já geraram mais de 6 bilhões de dólares (33,7 bilhões de reais) só em merchandising, o principal objetivo que a maioria das produções tem hoje em dia, o que fez com que todo 28 de agosto seja celebrado o Dia Nacional dos Power Rangers, uma ideia da empresa de brinquedos Hasbro para homenagear a galinha dos ovos de ouro. No entanto, o destino individual de cada um daqueles rangers originais que abriram caminho para o sucesso da série não foi tão bom como o da franquia.
Apenas a favorita, a rosa Amy Jo Johnson, teve uma carreira estável. Depois de interpretar Kimberly em mais de cem capítulos, fez parte dos elencos principais das séries Felicity, Flashpoint e Covert Affairs: Assuntos Confidenciais e continua na ativa como atriz e diretora ― totalmente à margem da série que a transformou em um rosto bastante popular, exceto por participações em eventos e convenções. Quem também continua na ativa é Zach, o power ranger negro. Trabalhou como ator de dublagem e ocasional em inúmeras produções, mas, à exceção de A Escuta ― em que participou de três episódios ―, nenhuma muito famosa. São os únicos que mantiveram uma carreira estável na televisão. Seus outros colegas viram como seu nome permaneceu quase exclusivamente associado à série, isso no melhor dos casos, porque o nome dos Power Rangers também acabou relacionado a algumas tragédias, o que levou algumas pessoas a falar de uma maldição da franquia, embora seja uma consequência do fato de que, ao longo de um quarto de século, centenas de atores já passaram por ela.
A primeira a sofrer essa suposta maldição foi Thuy Trang. A power ranger amarela morreu aos 27 anos quando o carro em que viajava na Califórnia com uma amiga (da qual seria dama de honra no casamento) sofreu um acidente. A morte de Trang, filha de refugiados vietnamitas que teve uma infância trágica, foi instantânea. Seu amiga ficou paraplégica.
A morte também rondou outro membro do elenco original. Em 2017, um homem armado com uma escopeta, três pistolas e uma faca de combate rondou a Comic Con de Phoenix (Arizona) com a intenção de assassinar Jason David Frank, o power ranger branco. O homem, que se denominava Punisher (como o anti-herói da Marvel, chamado em português de Justiceiro), vinha publicando fazia meses em suas redes sociais ameaças de morte contra o mítico Tommy Oliver e, depois de um julgamento cujas sessões foram transmitidas no Instagram pelo próprio Frank, foi condenado a 25 anos de prisão, que cumpre em um hospital psiquiátrico. Não foi o único infortúnio em que Frank se viu envolvido: seu irmão Erik morreu após fazer o teste para interpretar seu irmão na série. Tinha apenas 29 anos.
Talvez seja exagero falar de maldição dos Power Rangers, mas nem tanto fazer isso a respeito do power ranger vermelho. Pua Magasiva, que interpretou esse personagem na série Power Rangers Ninja Storm (uma de suas adaptações, que estreou em 2003), morreu repentinamente no ano passado, aos 38 anos, e outro power ranger vermelho, Ricardo Medina Jr., protagonista de Power Ranger Wild Force (que estreou em 2002) e Power Ranger Samurai (2011), cumpre pena por assassinar seu colega de apartamento com uma espada.
Notícias falsas
Não foi a primeira vez que o nome de um power ranger vermelho foi associado com assassinato: em 2008, espalhou-se o notícia de que uma das pessoas que haviam usado esse uniforme na franquia era um assassino: o ator Skylar DeLeon tinha matado um casal para roubar seu iate. Dado o grande número de atores que já interpretaram os diferentes personagens, era possível que a notícia fosse verdadeira, mas um pouco de calma para fazer uma busca em qualquer banco de dados de cinema, como o IMDB, teria bastado para esclarecer que ele tinha simplesmente interpretado um personagem em um único capítulo da série, e nem havia sido creditado.
O verdadeiro power ranger vermelho original, Austin St. John, também foi envolvido em uma notícia falsa, embora menos sanguinária. Segundo um desses boatos que surgem periodicamente nas redes, depois de abandonar a série, Austin teria se dedicado ao pornô gay, uma história na qual poderia ser fácil acreditar, porque foi o aconteceu com outros ex-astros infantis, como o que fez o papel de Samuel Screech Powers em Galera do Barulho. Mas a verdade é que, após sair da série, Austin St. John trabalhou como bombeiro e paramédico.
Outro power ranger que passou por momentos difíceis foi o azul, David Yost, que sofreu ataques homofóbicos durante a filmagem da série. Anos depois de deixar a série, o mais antigo dos personagens originais acusou os produtores de assediá-lo continuamente por sua sexualidade. Em uma entrevista ao No Pink Spandex, Yost disse que os ataques foram tão cruéis que o levaram a abandonar a série. “A razão pela qual me afastei é que me chamaram muitas vezes de faggot [bicha]. Basicamente, sentia que ficavam me dizendo que eu não era digno de estar onde estava porque era uma pessoa gay.” Yost também revelou que esse assédio o levou a tomar uma decisão drástica: “Fiz terapia de conversão porque não queria ser gay”. Finalmente e depois de uma crise nervosa que o fez ficar cinco semanas internado no hospital, começou a se aceitar. “Nos anos noventa, era muito difícil. E em Hollywood não era bem visto. Sendo um ator que estava em um dos programas infantis de maior sucesso naquele momento, eu tinha vergonha porque não queria que as pessoas soubessem o que eu estava passando.”
Essa angustia ficou no passado. “Agora que me manifestei como uma pessoa gay, todos os dias recebo mensagens de pessoas gays do mundo todo que me dizem: ‘Obrigado por compartilhar sua história, porque me ajudou a sair do armário. Posso compartilhar com minha família e ajudá-la a entender que o que você passou é o que eu estou passando.’ É incrível.”
Talvez como uma tentativa de reparação tardia, a versão cinematográfica de 2017, que teve Bryan Cranston (que tinha aparecido brevemente na série original) e Elizabeth Banks como Zordon e Rita Repulsa, fez um aceno para o público LGBTI, pelo qual a ficção científica tem manifestado tão pouco afeto, mostrando a power ranger amarela ― interpretada pela então pouco conhecida Becky G ― como lésbica, o que só foi revelado por meio de uma frase fugaz em que mencionou sua namorada. Por menor que tenha sido seu espaço no roteiro, foi um grande passo para uma indústria que, para algumas coisas, continua tão antiquada quanto os uniformes desses cinco super-heróis.
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