A aposta da Netflix na realidade para manter sua fórmula de sucesso
Plataforma estreia dois programas para conquistar o público com menos interesse por ficção
Woody Allen foi para o inferno ―pelo menos por enquanto― apenas na ficção. No filme Desconstruindo Harry, seu elevador para o inferno fazia paradas e revelava que a sentença dos advogados é passar a eternidade lado a lado com os jornalistas. Condenados pela Mídia, a penúltima série de realidade da Netflix, analisa o papel da imprensa na hora de moldar a opinião pública em torno de crimes, transformando acontecimentos (uma agressão, por exemplo) em histórias (essa agressão encapsula as tensões sociais do momento) e de tratar o cumprimento da lei como um espetáculo.
Um juiz permitiu pela primeira vez, em 1984, câmeras de televisão em um julgamento, se amparando no direito à informação (era um caso de estupro múltiplo, que protagoniza o quarto capítulo da série e que depois foi adaptado para o cinema em Acusados, que rendeu um Oscar a Jodie Foster). Os julgamentos televisionados se tornaram então a origem da realidade televisiva. Em nenhum outro espaço podem confluir a democracia e a violência, o bem e o mal, a justiça e as paixões, os preconceitos e a moral, e todos estão a serviço daquilo que o público mais gosta: uma boa história.
Condenados Pela Mídia é para os julgamentos televisionados o que Mistérios sem Solução, o outro docurreality do momento na Netflix, é para Cuarto Milenio ou ¿Quien Sabe Dónde?, dois programas bastante populares da televisão espanhola: uma reciclagem de eficácia comprovada. Mistérios sem Solução, ao carecer de julgamento (e de resolução), oferece ao espectador a responsabilidade e o prazer de ser juiz, júri e advogado. Enquanto isso, Condenados Pela Mídia propõe uma experiência sociocultural, na qual o espectador pode escolher entre se debater diante dos crimes, se escandalizar com os vereditos ou aplaudir a falta de escrúpulos dos advogados. A lei é o de menos.
Os advogados entrevistados em Condenados Pela Mídia alimentam sorridentes a fama de abutres sem escrúpulos que sua confraria tem nos Estados Unidos: não falam do bem e do mal, nem sequer do legal e do ilegal. Falam sobre estratégias: em 1984, Bernhard Goetz atirou em quatro adolescentes negros em um vagão de metrô, no que podia entender como seu direito de se proteger, uma catarse diante da criminalidade descontrolada da Nova York da época. Falam sobre as emoções do júri: os policiais que deram 41 tiros em um rapaz africano desarmado mostraram seu arrependimento entre lágrimas. Falam de promotores tão tolos que só recorrem aos dados: “Se você não gosta, que vá embora de Nova York”, exclamou o promotor do caso Goetz, diante da bancada de um júri de 12 nova-iorquinos que franziram o cenho. Acima de tudo, falam sobre a teatralidade das alegações. No quarto episódio, que narra o escândalo do empresário Richard Scrushy (o maior golpe financeiro da história), seus advogados explicam suas manobras com orgulho. Jim Parkman abriu sua alegação esclarecendo que não passava de um humilde advogado de uma cidadezinha próxima, que sua avó sempre dizia que todas as panquecas tinham dois lados (e, por conseguinte, a verdade também) e que sabia que tinham muita chance de perder contra o sistema. Seu colega Donald Watkins, negro, contou que, antes de ir para a escola, sua mãe lhe dava balas de hortelã para saciar sua sede, caso o bebedouro para negros estivesse quebrado, mas que graças aos 12 membros de um júri (tão honrados como os ali presentes) agora podia beber de qualquer bebedouro. Acabou caminhando até a bandeira norte-americana da sala e enrolou-se nela. Esses mesmos advogados admitem que, enquanto a promotora detalhava os números da fraude, eles reviravam os olhos e cochilavam para criar simpatia com o tédio do júri. “E quando chegou a minha vez de interrogar o diretor financeiro, comecei acusando-o de ter sido infiel à esposa. O júri se ergueu e se inclinou para frente com os olhos arregalados”, vangloria-se Parkman. Depois esclarece que odiou fazer aquele ataque, porque tinha gostado da testemunha.
A imprensa figura como uma força de manipulação coletiva inevitável. O reverendo Al Sharpton, uma das figuras proeminentes na luta dos negros norte-americanos desde os anos setenta, aparece em dois capítulos diferentes porque se pôs à frente dos dois casos raciais (os tiros no metrô e o tiroteio dos policiais) quando compreendeu que ambos tinham dramatismo suficiente para comover os meios de comunicação e a população. Os crimes serviriam como veículos para sensibilizar a sociedade em relação à injustiças maiores do que o próprio caso. Sharpton explica que, se a imprensa é inescapável, mais vale saber usá-la a seu favor. Condenados Pela Mídia também pressupõe essa entidade abstrata chamada “sistema” e que nos Estados Unidos gera paradoxos tão delirantes quanto o de um episódio de Mistérios Sem Solução em que uma mulher é condenada a indenizar a família de seu marido desaparecido (supostamente assassinado por ela), mas sem ser condenada pelo assassinato pelo fato de o cadáver não ter sido encontrado.
Um dos artífices de Condenados Pelas Mídia é Steve Brill, fundador da Court TV. Em 1991, a presença de câmeras de televisão nos tribunais já era a norma e essa emissora de televisão a cabo soube aproveitar as qualidades imprevisíveis e trágicas que só podem ser encontradas na vida real. Com o caso dos irmãos Menéndez – dois herdeiros milionários que assassinaram os pais – e o de O. J. Simpson, a Court TV alcançou enorme audiência. Onde quer que haja um crime, haverá um espetáculo em potencial, mesmo que frequentemente se aponte para a Lua, para que o espectador fique obcecado pelo dedo: Condenados Pela Mídia não analisa o sistema que acomoda os crimes ou as absolvições e prefere se concentrar na reação apaixonada do público. E a lei e as câmeras se retroalimentam de tal forma que é impossível pensar se esses julgamentos teriam tido um desenlace diferente caso tivessem sido feitos a portas fechadas. Em 1997, o Canal 9, uma emissora espanhola, imitou a Court T,V dedicando tardes inteiras a comentar o julgamento pelos assassinatos de Alcàsser. Um dia, o irmão de Enrique Anglés se contradisse em seu depoimento. “Mas ontem à noite, em Esta Noche Cruzamos el Mississippi (programa da televisão espanhola exibido entre 1995 e 1997), o senhor disseque não sabia”, repreendeu a promotora. “Sim”, respondeu Anglés, sem se alterar, “mas isso foi na televisão”.
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