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“Se vacinarmos 20% ou 30% da população de cada país poderemos voltar à normalidade”

Médico britânico Jeremy Farrar, diretor do Wellcome Trust, diz que é impossível imunizar num primeiro momento toda uma população e defende que as nações compartilhem seus avanços

O médico britânico Jeremy Farrar, diretor do Wellcome Trust.
O médico britânico Jeremy Farrar, diretor do Wellcome Trust.The Francis Crick Institute / Dave Guttridge
Manuel Ansede
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BRA01. SÃO PAULO (BRASIL), 21/07/2020.- Fotografía cedida por el Gobierno de Sao Paulo que muestra la aplicación de una vacuna contra el nuevo coronavirus desarrollada por el laboratorio chino Sinovac, este lunes en una Clínica de Sao Paulo (Brasil). Las primeras dosis de la vacuna contra el nuevo coronavirus desarrollada por el laboratorio chino Sinovac empezaron a ser aplicadas este lunes a un grupo de voluntarios, todos ellos profesionales de la salud del Hospital de las Clínicas de Sao Paulo. EFE/ Cortesía Gobierno de Sao Paulo/SOLO USO EDITORIAL/NO VENTAS/NO ARCHIVO
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Em 31 de dezembro de 2019, enquanto metade da humanidade se preparava para comemorar a virada do ano e dar as boas-vindas ao promissor 2020, o médico britânico Jeremy Farrar postou uma mensagem contra a corrente em sua conta no Twitter. “Preocupante”, escreveu. Foi um dos primeiros a alertar sobre pneumonias sem explicação recém-detectadas na cidade chinesa de Wuhan. “Qualquer acúmulo de infecções respiratórias graves é realmente preocupante”, alertou. Farrar sabia que poderia acontecer o que efetivamente ocorreu. Estava há anos tentando preparar a humanidade para uma futura pandemia letal. Nascido em Cingapura, em 1961, o médico dirige o Wellcome Trust, uma instituição filantrópica com sede em Londres que tem 30 bilhões em euros (cerca de 192 bilhões de reais) em investimentos e dedica os lucros para financiar pesquisas científicas mais destacadas. Em 22 de dezembro de 2019, depois do sucesso de uma vacina contra o ebola cofinanciada por sua instituição, Farrar declarou: “Podemos vencer o ebola, mas devemos nos preparar para o que virá depois”. O que viria depois já estava se multiplicando na China.

A equipe de Farrar ajudou a lançar em 2017 a Coalizão para as Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI), uma entidade criada para acelerar as soluções para doenças emergentes. Em 23 de janeiro a CEPI já estava financiando três vacinas experimentais contra a covid-19. Hoje já são nove, incluindo a da Universidade de Oxford, uma das mais avançadas. E o Wellcome Trust também está por trás do Acelerador ACT, uma iniciativa liderada pela Organização Mundial da Saúde para promover vacinas e tratamentos contra o coronavírus. Farrar defende que só há um caminho para sair da crise: vacinar poucas pessoas em cada país, não todas em poucos países.

Pergunta. Sendo realistas, quando veremos o fim da pandemia de covid-19?

Resposta. Em certo sentido, não há um final. Isto já é uma infecção humana endêmica. Continuará na população nos próximos anos e talvez para sempre. Temos que aprender, por meio de tratamentos e vacinas, a controlá-la, reduzir seu impacto e viver com ela, como fazemos com a gripe, com outros coronavírus e com o HIV. Não irá embora.

P. O senhor acredita que não voltaremos à vida normal?

R. Acredito que voltaremos. Nós aprendemos a viver com o HIV. As pessoas adaptaram seu comportamento e desenvolvemos medicamentos antivirais, mas o HIV ainda circula na sociedade. O mesmo pode acontecer com a covid-19. Desenvolveremos métodos de diagnóstico e tratamentos, salvaremos vidas e teremos uma vacina, mas o vírus continuará circulando na sociedade. Voltaremos a ter uma boa vida, regressaremos à normalidade, mas talvez a normalidade pareça um pouco diferente do que era antes da covid-19.

P. Quando o senhor acredita que voltaremos a essa normalidade?

R. Depende do desenvolvimento de medicamentos e vacinas. Acredito que chegarão em 2021. Penso que teremos resultados em novembro e dezembro deste ano. E teremos boas vacinas em 2021, que poderão estar disponíveis para todas as pessoas que delas necessitarem em todo o mundo. E esse será o início de uma nova era em 2021. A sociedade voltar a uma certa normalidade.

P. O senhor defende que seria muito melhor vacinar poucas pessoas em cada país do que todas as pessoas em poucos países. Como explicaria isso a uma pessoa que paga impostos na Espanha, nos EUA ou em qualquer país que tem de pagar vacinas não para ele ou ela, mas para pessoas de outros países?

R. Sabemos que em todos os países existem algumas pessoas com um risco muito alto [de sofrer de covid-19], mas para a maioria o risco é muito baixo. As pessoas em maior risco são os profissionais de saúde nos hospitais, os idosos e as pessoas com outras doenças. São a prioridade, porque são os que estão adoecendo e morrendo. Se você vacinar essas pessoas em todos os países, reduzirá a transmissão, salvará vidas e fará com que a economia volte a funcionar. A razão pela qual é tão importante vacinar algumas pessoas em todos os países —em vez de todas as pessoas em um único país— é que precisamos fazer a economia funcionar novamente. Precisamos das escolas, para que as crianças tenham oportunidades no futuro. Precisamos das universidades e das empresas voltando ao trabalho. E a maneira mais rápida de conseguir isso é vacinar as pessoas com maior risco de cada país. Provavelmente 20% ou 30% da população de cada país precisará da vacina nos primeiros seis meses a partir do momento em que a tivermos. E então o mundo poderá voltar à normalidade. O caminho para salvar vidas, abrir a economia e recuperar as escolas é vacinar algumas pessoas em todos os países. Este é o caminho mais rápido para sair desta pandemia.

Jeremy Farrar recebe a vacina contra ebola em Rusizi (Ruanda), em 29 de dezembro de 2019.
Jeremy Farrar recebe a vacina contra ebola em Rusizi (Ruanda), em 29 de dezembro de 2019. Ministerio de Sanidad de Ruanda

P. Se houver vacinas em dezembro e 20% ou 30% da população de cada país for vacinada em seis meses, o senhor acredita que em julho de 2021 será possível voltar à vida normal?

R. É algo otimista. Existem nove vacinas experimentais na última fase de desenvolvimento. Não sabemos quais funcionarão. E primeiro temos de verificar se são seguras. É otimista, mas é possível pensar que no verão de 2021 poderemos começar a ver uma redução na transmissão do vírus, com as vacinas começando a ficar disponíveis e as pessoas voltando à vida normal. Isso significaria que as vacinas que estamos desenvolvendo agora, as vacinas de primeira geração, funcionam e podem ser fabricadas e distribuídas em grande escala. Esse é o cenário otimista. O cenário pessimista é que a primeira geração de vacinas não seja suficientemente boa ou tenha problemas de segurança, e então nos atrasaremos até o final do próximo ano. Mas estou otimista e penso que em 2021 teremos novos tratamentos, com os quais poderemos salvar vidas, e teremos mais de uma vacina, que poderemos usar para reduzir a transmissão e proteger grupos vulneráveis em todos os países, de maneira equitativa. É o caminho mais rápido para sair desta pandemia.

P. O senhor pede que os Governos comprem vacinas apenas para as pessoas em maior risco. Mas, normalmente, o trabalho de um Governo é cuidar de sua própria população. Um Governo, por exemplo, o dos EUA, vai querer comprar vacinas para todos os seus cidadãos, não somente para alguns deles e para outros cidadãos da Nigéria.

R. Mas o mundo nunca enfrentou uma pandemia como esta nos tempos modernos. No primeiro ano depois de termos as vacinas, não poderemos vacinar sete bilhões de pessoas. É impossível. Temos de pensar em como usar as vacinas da melhor maneira para permitir que todos os países se recuperem, que suas economias cresçam e as crianças voltem à escola. Se você quisesse apenas vacinar todo mundo na Espanha, não conseguiria fazer isso nos primeiros seis meses. Nenhum país fez uma campanha nacional de vacinação incluindo todo mundo. Seria quase impossível fazer isso. O caminho mais rápido é vacinar os idosos, os profissionais de saúde e os trabalhadores essenciais e garantir que os países vizinhos vacinem da mesma maneira. Então você pode fazer a economia voltar a funcionar e as escolas reabrirem, não terá de voltar aos confinamentos. Isto é o correto do ponto de vista científico, mas também é egoísmo ilustrado: é o caminho mais rápido para sair da pandemia e voltar à vida normal.

P. E se apenas os cidadãos, todos, de pousos países forem vacinados?

R. Se a Espanha só vacinar seus cidadãos, não poderá abrir sua economia. Chegaria gente de outros países e também haveria cidadãos na Espanha que se recusariam a ser vacinados ou que não estariam protegidos porque a vacina não funcionou neles. Assim seria impossível proteger todo mundo na Espanha sem deixar uma porta através da qual o vírus poderia atacar novamente.

P. O senhor advertiu que devemos evitar que a covid-19 provoque outra “guerra fria” pelas vacinas. A que se refere?

R. Eu vivi a Guerra Fria entre o Ocidente e o Oriente. E na última década cresceu a tensão entre o Ocidente e o Oriente, entre os EUA e a China, mas também entre outros países. A pandemia pode piorar essas tensões. Podemos buscar a polarização e ser mais nacionalistas. Podemos decidir lutar uns contra os outros, seja em uma guerra real ou por meio das vacinas. Essas tensões aumentarão se uma região, do Ocidente ou do Oriente, disser: “Temos uma vacina, mas não a daremos aos outros”. Temos que evitá-lo, porque essas tensões serão cada vez piores e voltaremos a um mundo polarizado, com um nacionalismo do Ocidente contra o Oriente ou do norte contra o sul. E muitas vezes isso leva finalmente à guerra. E isso é o desastre.

P. O senhor disse que o mundo está subestimando o problema. Por quê?

R. Há muito otimismo e tem gente que acredita que, com o tempo, o coronavírus irá embora. Muita gente —especialmente em países desenvolvidos, na Europa ou nos EUA— nunca viveu um problema real com doenças infecciosas. A geração dos meus pais viveu. Muitos dos que se esqueceram de como é viver com doenças infecciosas assumem que a covid-19 desaparecerá de alguma maneira. Penso que não vai desaparecer. É um vírus de animais que encontrou as pessoas, que já é endêmico nas populações humanas e continuará tendo repercussões em todo o mundo. No momento, não há como escapar disso. Não temos uma estratégia de saída. Estamos apoiando a economia mundial com 500 bilhões de euros por mês, mas não estamos fazendo o suficiente para ter uma solução e sair dessa. Por isso acredito que o Acelerador ACT é tão importante, porque une o mundo, os riscos e os benefícios são compartilhados, e oferece uma visão de como sair dessa por meio da ciência. É o único caminho.

P. É preciso dinheiro.

R. Para voltar a uma certa normalidade em 2021, temos que investir em tratamentos e vacinas. A economia global está gastando cerca de 500 bilhões de euros por mês para manter os empregos. Para ter os medicamentos e as vacinas de que necessitamos, precisamos apenas de 35 bilhões de euros. Este seria o melhor investimento da história da humanidade, porque salvaria vidas e permitiria voltar às escolas e aos empregos. Os 500 bilhões de euros que se gastam por mês não nos tirarão da situação atual, são apenas um curativo. Temos que investir nas coisas que realmente nos permitirão voltar a uma vida normal.

P. O senhor se refere aos 35 bilhões de euros solicitados pela Organização Mundial da Saúde para o Acelerador ACT.

R. Exatamente. Não só a OMS participa, também a Aliança GAVI, a CEPI, Governos como o da Espanha, que está muito envolvido, a Comissão Europeia, Noruega, África do Sul, Gana, Cingapura... Todo mundo está aderindo ao Acelerador ACT. O Wellcome Trust também está envolvido, assim como a Fundação Gates e Governos de todo o mundo. É nossa melhor esperança. Na verdade, acredito que é nossa única esperança de resultados equitativos. Temos que evitar o nacionalismo, temos que evitar o “tenho minha vacina no Reino Unido e você não a tem na Espanha”. A pandemia não vai acabar se fizermos isso. Temos de estar juntos, temos de aprender as lições da vacinação no século XX e perceber que se escolhermos o caminho nacionalista, teremos um mundo cada vez mais polarizado e injusto que não protegerá ninguém. Temos que decidir nas próximas semanas se nos unimos ou se nos partimos em pedaços.

P. Como é possível que faltem 35 bilhões de euros para desenvolver medicamentos e vacinas? Quem tem de colocar esse dinheiro?

R. Ótima pergunta. Volto aos 500 bilhões de euros por mês que os Governos, o Banco Mundial e outras instituições estão gastando para proteger as economias globais. Uma fração disso seria suficiente para essa estratégia. A filantropia, como no caso do Wellcome Trust, pode fazer algo, mas no final é preciso de dinheiro público, é preciso que todos os países contribuam. É preciso liderança. Estamos enfrentando uma crise que acontece uma vez em várias décadas ou século. O mundo mudou completamente. Além das guerras, nunca se viu nada parecido no último século. A covid-19 está tendo um impacto semelhante ao da pandemia de 1918 ou ao das guerras mundiais. Precisamos de uma liderança visionária, que seja lembrada pelo mundo daqui a um século.

P. Por que a Espanha está tão mal? Como o senhor vê isso de fora?

R. A Espanha sofreu terrivelmente, sim, mas também a França e a Holanda. O Reino Unido também sofreu muito, ou os EUA. A Índia agora está sofrendo horrivelmente. E Peru, Equador, Colômbia, Brasil, Chile... Acredito que cada país, cada cidade e inclusive cada aldeia será afetada por isto. A Espanha sofreu, como outros países, e outros tantos sofrerão nas próximas semanas ou meses, à medida que entrarmos no outono e no inverno [no hemisfério norte]. A Espanha, como o Reino Unido, tem uma população envelhecida, com um sistema público de saúde que ficou sob uma enorme pressão nesta pandemia. A Espanha sofreu logo, como a França e a Itália, antes do Reino Unido. Em fevereiro e março, o pessoal de saúde da Espanha teve de trabalhar com uma doença sobre a qual ninguém sabia quase nada no mundo. Muita gente aprendeu as lições das enfermeiras e dos médicos na Espanha: como tratar os pacientes, porque a Espanha estava à frente na primeira onda desta epidemia. O meu coração está com a gente de Madri, Barcelona e do resto da Espanha, porque foram os mais duramente atingidos e antes de ninguém. Mas, graças a esse sofrimento, a Espanha forneceu informações e compartilhou dados com o resto do mundo, o que permitiu salvar vidas em outros países. Acredito que a Espanha pode se orgulhar dessa contribuição.

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