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Tempestades de areia em São Paulo deixam o alerta da ação predatória de atividade agrícola

Fenômeno conhecido como ‘haboob’ varreu várias cidades do Sudeste paulista e de outros três Estados. Especialistas apontam para o papel da desertificação na propagação das tempestades

Gil Alessi
Tempestade de areia na cidade de Franca, interior paulista, no início de outubro.
Tempestade de areia na cidade de Franca, interior paulista, no início de outubro.Reprodução

Nos últimos meses, tempestades de terra, poeira e areia foram registradas em ao menos quatro Estados do país. Várias cidades de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Maranhão foram açoitadas por este fenômeno conhecido como haboob, palavra árabe que significa em tradução livre “destruidor que se arrasta”. As chuvas voltaram, e as tempestades refluíram. mas deixaram cicatrizes profundas. Ao menos quatro mortes em São Paulo foram atribuídas às ondas que escureceram o céu nas áreas atingidas: sem visibilidade, três pessoas morreram queimadas ao tentar combater um incêndio em Santo Antônio do Arancaguá, e uma faleceu após os ventos fortes derrubarem um muro em Tupã. Estas tempestades, comuns em zonas secas e do semiárido brasileiro, têm relação com a devastação ambiental em curso no país, e também contam com a ajuda de outro fenômeno nocivo, segundo especialistas: a desertificação do solo.

A desertificação é um processo que facilita com que as tempestades e seus fortes ventos arrastem areia e poeira. Ela ocorre quando a camada natural de proteção do solo, formada por matéria orgânica, florestas e mata, é retirada, deixando a terra exposta. “Sem esta camada o solo fica muito ressecado, perde capacidade de absorver água, fica quebradiço e poeirento. Isso destrói o seu equilíbrio e consequentemente piora nossa qualidade de vida”, explica Tatiana Tucunduva P. Cortese, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP e docente do Mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove.

Mas o que provoca esse desequilíbrio no solo? “A desertificação ocorre pelo uso inadequado do solo, da água e da vegetação. É fruto muitas vezes de uma ação predatória do homem sobre os ecossistemas”. Um dos fatores responsáveis pelo fenômeno é o uso intensivo da terra para atividades agrícolas —o que ocorre na região Oeste de São Paulo, uma das principais atingidas pelas tempestades de areia e castigada pela seca. “Estas atividades revolvem muito o solo. Essa prática somada ao uso de fertilizantes, pesticidas, reduz a quantidade de matéria orgânica que recobre o solo e o mantém coeso, deixando-o vulnerável”.

Sem cobertura vegetal ou matéria orgânica, a quantidade de poeira e areia soltas aumenta. “Estas tempestades de areia são provocadas por dois fatores: vento muito forte e poeira e terra soltas, facilmente levantada pelas rajadas”, explica Marcelo Seluchi, pesquisador e meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “E esse ano foi mais um ano de seca, com muita poeira depositada no solo”, diz. Assim, a falta de chuva colabora com a desertificação, e formou-se o cenário perfeito para a proliferação do haboob por várias regiões do país, principalmente no Sudeste.

O que ocorreu este ano, com dezenas de haboob cortando São Paulo e outros Estados, não é considerado normal. “Estas tempestades de areia são pouco frequentes [nessas regiões], não me lembro de ter tido um ano com tantas. Isso é atípico”, diz Seluchi. “Eu enxergo uma relação entre a seca [que colabora com as tempestades de areia] e a alteração dos ciclos hidrológicos provocados pelo desmatamento das florestas”, afirma. De acordo com o pesquisador, há décadas as regiões Sudeste e Centro-Oeste têm registrado índices abaixo da média de precipitação. “Não se trata de uma oscilação pontual, é uma tendência: uma redução constante e sistemática da chuva. E uma tendência dessas só se explica por uma causa que também se mantenha ao longo do tempo. Eu conheço só dois efeitos que se mantiveram ao longo das últimas décadas: um é o desmatamento, a mudança do uso do solo, e o outro é o aquecimento global, derivado do efeito estufa”.

Cortese, pesquisadora do IEA-USP, também aponta para o papel do desmatamento no agravamento do quadro ambiental e na proliferação das tempestades de areia. “O desmatamento traz um acirramento deste quadro e é um alerta: a umidade que a vegetação nativa e as florestas trazem regula o regime de chuvas do Sudeste. Se a área sem cobertura vegetal aumenta, existe um impacto nas chuvas”, afirma a professora. ”E isso não é exclusividade de Amazônia, vale também para a Mata Atlântica, o Cerrado... Com relação à floresta amazônica nós temos algo muito evidenciado que são os rios voadores, que trazem o vapor de água transportadas pelas correntes de ar. Quando tiramos a floresta vai se acabando com aquele grande reservatório, e com certeza haverá menos água circulando”. E mais seca. E mais tempestades de areia.

Com a chegada das chuvas no final de outubro, o número de haboob na região Sudeste diminuiu. Isso porque a água ajuda a fixar a poeira e a areia no solo, impedindo que as rajadas de vento levem consigo o material particulado para as cidades. Mas o que ocorreu este ano é um alerta, segundo os especialistas, do que pode vir a ser o novo normal do clima no Brasil, fruto da emergência climática: seca e desertificação, chuvas concentradas em um curto período de tempo e tempestades de areia nas cidades. “Esses fenômenos todos vão aumentar de frequência e de intensidade. Por isso precisamos agir”, diz Cortese.

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