O Governo me deve, não nega e paga quando puder: o “calote” à vista nos precatórios

Sem previsão no Orçamento, dívidas com credores que vencem no ano que vem viram dor de cabeça para Paulo Guedes e para Bolsonaro em pleno ano eleitoral

O aposentado José Luis Guerreta tem precatórios a receber do Governo em 2022, mas corre o risco de sofrer calote.Wanezza Soares

José Luis Guerreta, de 75 anos, é uma das muitas pessoas —não se sabe quantas exatamente— a quem o Governo federal deve dinheiro. O motivo é um erro de cálculo em sua aposentadoria à qual tem direito desde 1989. Seu caso foi parar na Justiça em 2016 e, após vaivéns e recursos impetrados pelo Governo, passou a receber no ano passado os mais de 6.400 reais mensais, valor correspondente ao teto ao qual tem direito. Até o ano passado ele recebia menos da metade desse valor. A Justiça também reconheceu seu direito de receber em 2022 o valor corrigido do que o Governo deixou de lhe pagar nos últimos cinco anos. Mais de 200.000 reais. O erro da Previdência vem de longa data, mas a legislação permite que o Estado só reconheça as dívidas dos últimos cinco anos.

Mesmo vitorioso, Guerreta teme não receber esse dinheiro. Ele tem em mãos precatórios, o papel de dívida que o Governo concede aos seus credores, que deve ser trocado por dinheiro. As declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a possibilidade de não pagar à vista todos os precatórios, causou transtorno para Guerreta. “Devo, não nego, pagarei assim que puder”, afirmou o ministro no início de agosto, ao reconhecer os 89,1 bilhões de reais em precatórios —nome dado a dívidas judiciais acima de 60 salários mínimos com empresas, Estados e municípios, e pessoas de carne e osso— que o Governo deverá pagar em 2022. Muitas delas, referentes a aposentados que tiveram o erro no cálculo da aposentadoria reconhecido na Justiça, como Guerreta.

O assunto virou uma dor de cabeça para o presidente Jair Bolsonaro, que precisa definir ainda neste ano o Orçamento para 2022. O Governo tem planos de aumentar os gastos com programas sociais, como o Bolsa Família, para chegar bem posicionado nas eleições do ano que vem. Ao mesmo tempo, precisa abrir espaço no Orçamento para pagar essas dívidas judiciais que não estavam contempladas nas previsões de despesas do ano que vem. O Governo projetava pagar cerca de 57 bilhões em precatórios em 2022, mas decisões da Justiça elevaram esse montante para 89,1 bilhões —isto é, 32,1 bilhões a mais que a projeção inicial do Ministério da Economia. “É um meteoro que caiu no nosso Governo”, repete o ministro Paulo Guedes, que chegou a fazer um “pedido desesperado de socorro” ao Congresso e ao presidente Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, para aliviar essa dívida.

Diante de uma economia cambaleante —e arrecadação, idem— e de um teto de gastos, que limita o crescimento das despesas, o Governo se vê numa sinuca de bico. Guedes passou a vincular os recursos que deverá dirigir aos precatórios aos investimentos que deixariam de ser feitos, como o aumento do Bolsa Família. O programa vem sendo usado pelo Governo para cobrar do Congresso a aprovação não só do parcelamento dos precatórios como de quaisquer medidas econômicas, como a reforma do Imposto de Renda. Não entrou em seu radar fazer em pleno ano eleitoral corte em outras despesas ou benefícios dados a determinadas categorias. “Como teremos eleições, Bolsonaro quer aumentar o Bolsa Família para se reeleger. Ora, em detrimento das pessoas a quem o Governo deve?”, questiona Guerreta. “É um absurdo. Vai prejudicar não só a mim como a muitas outras pessoas”.

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Os economistas Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, e Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp, apontam que o nome certo para o parcelamento que o Governo pretende fazer é “calote”, uma vez que estaria deixando de pagar suas obrigações com credores. “É impressionante que um ministro use uma linguagem de caloteiro”, afirma Nóbrega.

O ex-ministro critica o Governo pelo fato de não ter planejado com antecedência a despesa com precatórios. Como oriundos de processos que correm nos tribunais superiores, explica ele, a Advocacia-Geral da União (AGU) deveria ter feito um acompanhamento dessas sentenças para manter o Ministério da Economia informado. No caso das dívidas com Estados e municípios, a maior parte do montante se refere a erros no repasse do Fundeb, verbas destinadas para a educação básica. “O Supremo começou a julgar isso em 2017. Portanto, o Governo teve tempo para tentar negociar com os credores ou se preparar para acomodar os valores no Orçamento”, explica ele.

Ainda não está claro como a questão será resolvida, mas a proposta inicial do Governo que tramita na Câmara dos Deputados (Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 23/21) prevê que as dívidas judiciais acima de 66 milhões de reais, ou que ultrapassem 2,6% da receita corrente líquida, sejam pagas através com um depósito de 15% de entrada mais nove parcelas anuais. Essas parcelas, diz o texto da PEC, não estariam sujeitas ao teto de gastos.

Mais furos no teto de gastos

Os economistas da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, vem criticando as propostas que estão sobre a mesa porque elas não envolvem algum tipo de ajuste nas demais despesas para acomodar o pagamento dos precatórios, mas sim em alguma mudança no arcabouço legal. Além do parcelamento fora do teto de gastos proposto pela PEC 23/21, outra proposta que corre no Congresso é a de simplesmente retirar todos os gastos com sentenças judiciais do teto.

Na semana passada, o ministro esteve com os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), debatendo a possibilidade de se criar um limite de cerca de 40 bilhões de reais para o pagamento de precatórios. O restante poderia ser parcelado nos anos seguintes fora do teto de gastos. Ainda não está claro como essa questão será encaminhada dentro do Congresso, mas especialistas concordam que o Governo tenta mudar as regras do jogo durante o jogo, o que impacta a credibilidade da política fiscal. “O teto está ficando cheio de furos”, argumenta Nóbrega.

“Não existe nenhum caso de dívida pública em moeda própria que tenha sido submetida a um calote”, explica, por sua vez, o professor Belluzzo. Para ele, dar um calote nos precatórios pode gerar uma desconfiança no mercado de que o Governo já não pode sequer honrar a dívida pública. “Estamos fazendo uma manobra que vai acentuar ainda mais a falta de credibilidade do Governo. É muito, muito grave”, explica.

Em tese, a proposta que tramita hoje em comissão especial na Câmara não afetaria Guerreta. Mas a discussão por si só traz incertezas sobre se irá receber o que tem direito, ainda mais diante de um Estado que já negligenciou o pagamento da sua aposentadoria anos a fio. “Nada disso ainda está concretizado, mas me sinto prejudicado. A frase [de Paulo Guedes de ‘pagar quando puder’] é um absurdo, eles querem dar um calote na população no ano que vem”, sugere.

Garreta começou a trabalhar muito cedo, em 1960, com apenas 14 anos, na indústria automobilística. Tornou-se ferramenteiro, área que cuida das ferramentas, e na área que produz as peças dos veículos. Mas a natureza insalubre de seu trabalho lhe rendeu uma aposentadoria especial aos 44 anos, em 1989. Deveria ter se afastado da vida laboral recebendo o teto da aposentadoria, hoje fixado em mais de 6.400 reais, mas um erro no cálculo fez com que recebesse até o ano passado cerca de 3.000 reais.

Casado há 52 anos, com três filhos e três netos, Guerreta afirma que quer guardar o dinheiro que tem a receber em precatórios na poupança. Talvez faça alguma viagem. “Mas quero receber primeiro para pensar no que vou fazer”, explica ele, que depois de se aposentar seguiu trabalhando, se formou em Direito e, hoje, é advogado do Sindicato Nacional dos Aposentados.

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