Virgílio Viana, nomeado pelo Papa para falar de Amazônia: “Cada vez mais Francisco discute a floresta”
Superintendente geral da Fundação Amazônia Sustentável e colunista do EL PAÍS, professor é indicado pelo papa Francisco para uma cadeira na Pontifícia Academia de Ciências Sociais
Em agosto de 2019, Virgilio Viana (Belo Horizonte, 60), superintendente geral da ONG Fundação Amazônia Sustentável (FAS), afirmou em entrevista ao EL PAÍS: “A Amazônia está à beira do abismo”. Para muitos, a afirmação do professor pareceu alarmista. Mais de dois anos se passaram. Repetimos a pergunta a este engenheiro florestal de formação e colunista do jornal na última segunda-feira, mesmo dia em que o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) divulgou os maiores números de desmatamento na região em uma década. A resposta veio sem cerimônia. Para o professor, nós já demos um passo à frente, em direção ao abismo: “Eu diria que já chegamos a um ponto de não retorno para parte da Amazônia. Isso precisa ser dito de uma maneira precisa. Não significa que é o fim dela e que tudo vai virar cerrado. Mas principalmente parte da porção sul de seu território já se tornou uma floresta biologicamente empobrecida”.
Viana está sempre em busca de aliados para ajudar a proteger a floresta e os povos tradicionais pelos quais trabalha há décadas. No início de setembro, conseguiu um feito inédito, ao emplacar a pauta ambiental na Santa Sé: foi indicado pelo papa Francisco para uma cadeira na Pontifícia Academia de Ciências Sociais (PACS), com sede no Vaticano, tornando-se o primeiro brasileiro a integrar a entidade. O colegiado, criado pelo papa João Paulo II em 1994, tem como missão promover “o progresso das ciências sociais, econômicas, políticas e jurídicas”, e busca dar subsídio para o desenvolvimento da doutrina cristã na sociedade atual. “A indicação foi algo que me marcou muito. Houve esta conquista de um espaço e lugar de fala pela trajetória que eu tenho [de luta pela preservação da floresta]”, afirma Viana. “Isso tem uma importância pelo fato de o papa Francisco ter a Amazônia como um lugar de interesse especial. Cada vez mais ele discute questões ambientais”, diz.
Não à toa o pontífice convocou em 2019 o Sínodo da Amazônia, que discutiu no Vaticano com a cúpula da Igreja questões relativas ao bioma mas também à doutrina cristã. Atualmente fazem parte da PACS 34 acadêmicos que somam 35 prêmios Nobel, como o economista Joseph E. Stiglitz, o filósofo alemão Vittorio Hösle e o ex-presidente do Banco Central Europeu Mario Draghi. Não se trata de uma instituição para inglês ver: “O papa realmente busca assessoramento com esta academia para fazer suas encíclicas [documentos papais] e discursos”, diz Viana. “Ele não fala besteira”.
O ponto de não retorno mencionado no início deste texto por Viana foi um termo cunhado por cientistas e estudiosos para se referir às consequências da emergência climática no mundo. Na Amazônia, a expressão é usada para determinar o momento a partir do qual a floresta não mais conseguirá se recuperar sozinha da devastação provocada pelo homem, e, consequentemente, parte dela —e de sua biodiversidade— pode ser perdida para sempre. Os impactos desta catástrofe são sentidos não apenas no Brasil, mas em todo o continente, uma vez que os ciclos de chuva e hidrologia dependem da floresta e de seus rios voadores. Um estudo publicado na revista Nature, por exemplo, apontou que a Amazônia atualmente emite mais gás carbônico do que absorve, um fenômeno recente e preocupante que mostra a degeneração da mata provocado pelo aumento das queimadas e do desmatamento.
Ao contrário do que parece, Viana não é de todo pessimista —ainda que a área da floresta devastada em agosto seja equivalente a seis vezes o tamanho de sua cidade natal, Belo Horizonte. “Veja, não estou falando de um game over. Se você sobrevoar o Amazonas você percebe que existem áreas extensas de floresta protegida ainda. O coração da floresta continua vivo e próspero do ponto de vista ecológico. Mas há uma parte da mata que está decadente, que foi fragmentada em pequenas ilhas florestais”, diz. Nestes locais onde o desmatamento avançou e a floresta virou pasto ou campo de soja, a biodiversidade é menor e as áreas remanescentes se tornam mais suscetíveis às queimadas e secas. É uma bola de neve: “Populações de árvores menos resistentes ao fogo e ao vento entram em declínio, estas espécies vão desaparecendo, e com elas os pássaros, mamíferos e insetos que faziam parte deste ecossistema”, afirma o professor associado especial da Fundação Dom Cabral.
A paixão de Viana pela floresta não é nova —e sequer começou na Amazônia. Quando criança, brincava em uma pequena mata localizada nos fundos da casa da família. “Gostava de fazer casa no topo das árvores”, conta. Já adolescente foi para o Norte do país pela primeira vez na companhia de dois amigos, “no esquema mochilão”. A ida de barco de Porto Velho a Manaus durou mais de uma semana, “pingando de cidade em cidade à beira do rio”, e foi um dos pontos altos da viagem, responsável por fazer brotar no jovem uma “paixão por essa Amazônia aquática, das hidrovias e do encanto da sabedoria dos povos indígenas e ribeirinhos”. Anos depois ele viria a conhecer a Amazônia rodoviária, cujas artérias de terra e asfalto rasgaram a mata e mostraram a ele “o tamanho do desafio da região, com a chegada de gente de todo o país à floresta em busca de uma vida melhor”.
Se parte da Amazônia já passou do ponto de não retorno, como salvar o que sobrou? “Precisamos de um programa que conte com ajuda internacional da ordem de dez bilhões de dólares por ano, algo muito maior do que o Fundo Amazônia [que era mantido majoritariamente por países europeus e foi suspenso em 2019 após o descaso de Jair Bolsonaro com o desmatamento]. É preciso agir com base em uma agenda de restauração e recuperação florestal com economia verde e inclusiva”, diz. O Governo brasileiro também teria que fazer sua lição de casa. Mas não é o que ocorre: em 2020 os cortes orçamentários na casa dos 240 milhões de reais realizados no Ministério do Meio Ambiente deixaram os órgãos de fiscalização como Ibama e ICMbio ainda mais debilitados.
Viana fala com propriedade sobre o papel do Estado na preservação. Ele já atuou como secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, entre os anos de 2002 e 2008, durante a gestão do governador Eduardo Braga (que era do PPS e no segundo mandato migrou para o então PMDB). Atualmente o emedebista ocupa uma vaga no Senado. Sobre o período à frente da pasta, o ambientalista se orgulha de ter ajudado a criar “12 milhões de hectares de unidades de conservação e a reduzir o desmatamento em 66%”. As ações do professor à frente da pasta despertaram a ira de grileiros e madeireiros, o que lhe rendeu algumas ameaças de morte.
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Clique aqui“Faria Lima precisa ouvir a Amazônia”
Para além do papel do Governo para salvar a Amazônia, existem os que apostam na “mão do mercado”. “Muita gente defende a visão de que o mercado é a solução para tudo. Mas quando falamos de preservar a floresta, esta é uma visão absolutamente equivocada. O buraco é mais embaixo: estes investimentos de capital por si só não resolvem o problema da pobreza na região, por exemplo, que é fundamental para entender as dinâmicas que envolvem os moradores da Amazônia. O mercado não vai trazer água potável para as comunidades”.
Apesar da ressalva, Viana acredita que o “centro financeiro do país” precisa se envolver. De acordo com ele, “a Faria Lima [avenida de São Paulo que concentra sedes de bancos e empresas] hoje discute a floresta, o que é positivo. Mas nosso sonho é de que a Faria Lima ouça as pessoas da floresta, porque hoje eles se interessaram pelo assunto, mas ficam em cima de apresentações de power point feitas por quem tem pouca vivência no assunto”, diz. Ele defende que os atores amazônicos tenham “mais voz” nos debates envolvendo a Amazônia. “Eu conheço muitos interlocutores que poderiam estar contribuindo com o debate nacional e agregando qualidade às discussões”, afirma.
Questionado sobre eventuais conquistas na área ambiental sob o Governo Bolsonaro, cuja marca maior são políticas anti-ambientais com acenos a garimpeiros, madeireiros e grileiros, Viana é realista. “Temos uma agenda pouco animadora. Mas não sou da posição de achar que é terra arrasada e que não há nada positivo”, afirma. “Tivemos algumas vitórias”, responde. Segundos depois, completa a frase: “Não decorrentes da ação do Governo, claro. Mas acredito que tivemos um avanço muito importante no nível de interesse da sociedade brasileira sobre a Amazônia, o que é positivo. A floresta passou a fazer parte da pauta, ainda que por razões ruins, como desmatamento e assassinatos de lideranças do campo.”
A destruição da floresta e a condenação das políticas ambientais brasileiras na Europa também fizeram, ironicamente, com que parte do agronegócio despertasse para a importância da preservação. “Setores do Ministério da Agricultura ligados ao agronegócio exportador, por exemplo, já perceberam que as políticas atuais do Governo podem sabotar suas vendas. Eles sabem que um supermercado de Londres pode optar por não vender mais carne de determinada empresa que teve como origem floresta desmatada”, diz Viana.
Segundo o professor, “eles se dão conta de que é burrice fazer um caminho de negócios que não incorpore a agenda ESG [Environmental, social and corporate governance, ou Governança corportativa ambiental e social, em tradução livre”. Esta sigla representa um modelo empresarial que vem ganhando força no mundo todo nos últimos anos. “Como disse a Luiza Trajano [do Magazina Luiza], as empresas sem estratégia ESG estarão fora do mercado”.
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