Mandetta impõe desgaste a Bolsonaro na CPI da Covid-19, mas é Teich quem pode emparedar Planalto
Sem novos trunfos, ex-ministro da Saúde e presidenciável do DEM disse ter visto minuta para incluir covid-19 na bula da cloroquina por um decreto presidencial. Depoimento de Pazuello é adiado para 19 de maio
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A estreia dos depoimentos dos ex-ministros da Saúde na CPI da covid-19 provocou um impacto negativo ao Governo Bolsonaro já esperado, mas não trouxe novos trunfos apresentados pelo primeiro a ser ouvido pelos senadores, Luiz Henrique Mandetta. O médico, que tenta construir uma candidatura ao Planalto e foi demitido por discordâncias com o presidente sobre o isolamento social, blindou-se com uma carta na qual cobrava, em março de 2020, que o presidente mudasse sua conduta no enfrentamento da pandemia sob o risco de “gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população brasileira”. Afirmou que Bolsonaro não seguia as orientações técnicas do ministério e tinha uma “assessoria paralela”, da qual participava seu filho e estrategista digital Carlos Bolsonaro. Expôs ainda ter visto uma minuta para incluir a covid-19 na bula da cloroquina ―um medicamento sem eficácia― por uma canetada via decreto presidencial, mas disse desconhecer de quem foi a autoria e que a proposta não prosperou.
Ao desgaste provocado por Mandetta ao reforçar a postura negacionista de Bolsonaro durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, soma-se o adiamento do aguardado depoimento do ex-ministro e general Eduardo Pazuello desta quarta (5) para o próximo dia 19 de maio. Se, num primeiro momento, a postergação poderia aliviar o Planalto de uma semana de embates na CPI, a oposição espera com isso ganhar tempo para fazer acareações e sabatinar o ex-ministro.
O general Pazuello cancelou sua ida à CPI porque teria tido contato com dois militares diagnosticados com covid-19 no fim de semana. Espera-se que ele preste esclarecimentos sobre veias centrais da investigação do Senado: a demora do Governo para comprar vacinas e a suposta omissão na crise de oxigênio em Manaus. Pazuello foi o ministro que passou mais tempo à frente da Saúde durante a pandemia e tem sido orientado pelo Planalto sobre como depor aos senadores. Deu como opções ser indagado por videochamada ou adiar o depoimento, mas o presidente da comissão, Omar Aziz, optou pelo adiamento. A análise do Planalto, porém, pendia para a participação remota após a injeção de ânimo dada pelas manifestações bolsonaristas no fim de semana. A participação do ex-ministro Nelson Teich, adiada desta terça para a manhã de quarta (5), também preocupa o Governo. Ele deverá esclarecer se as primeiras ofertas de imunizantes por laboratórios ocorreram durante a sua gestão relâmpago de um mês na pasta. Teich teria deixado o cargo por discordância sobre o protocolo da cloroquina. Especialistas têm avaliado que o Brasil perdeu o timing para efetivar contratos, e a vacinação é a principal demanda da sociedade, do mercado e da classe política neste momento.
Durante mais de sete horas, Mandetta falou a senadores e disse ter a impressão de que o Governo Bolsonaro apostava na teoria da imunidade de rebanho ―que supõe a proteção de uma comunidade quando um percentual da população já tem anticorpos― para superar a pandemia. Enfrentou questionamentos mais agressivos dos governistas, que adotaram a estratégia de tentar responsabilizá-lo por não ter cancelado o Carnaval de 2020 e pela orientação de que as pessoas só buscassem os hospitais somente após apresentar sintomas respiratórios como falta de ar, o que ex-ministro chamou de “guerra de narrativas”. Apoiadores do presidente também tentavam descolar a imagem de Bolsonaro de temas mais polêmicos, como o estímulo ao uso da cloroquina. Tentavam colocar o medicamento como outro qualquer e defender que médicos ao redor do mundo usavam medicamentos sem a indicação em bula contra a covid-19. Equilibravam-se em uma linha tênue entre a tentativa de responsabilizar o ex-ministro e o papel de livrar Bolsonaro. Do outro lado, Mandetta defendia-se como podia. Sem apresentar novos trunfos, ofereceu um discurso limitado diante do risco de ele mesmo se comprometer. Evitou subir o tom, mas não poupou críticas. E afirmou reiteradas vezes que sempre seguiu a ciência e as orientações da OMS.
Convocação de Paulo Guedes
Mandetta também fez duras críticas ao ministro Paulo Guedes, que segundo ele não interessou-se em conhecer os dados da pandemia para traçar ações de preservação econômica na crise. “O distanciamento da equipe econômica era real”, afirmou, acrescentando que mantinha contato apenas com o segundo escalão e que Guedes não atendia suas ligações. Suas críticas levaram o senador Randolfe Rodrigues a apresentar um requerimento de convocação de Guedes ―um depoimento que o Planalto tentava evitar, assim como o do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. O ex-ministro também apontou que o Itamaraty e o deputado Eduardo Bolsonaro prejudicaram as relações com a China. Durante o depoimento, Mandetta ainda ironizou a articulação do Governo para orientar perguntas dos senadores. Ele disse ter recebido por engano, na segunda, uma mensagem do ministro das Comunicações, Fabio Faria, com a pergunta feita a ele nesta terça pelo senador Ciro Nogueira.
Mandetta afirmou que seu ministério nunca indicou o uso da cloroquina ao presidente e o alertou sobre o risco de improbidade se comprasse o medicamento para a covid-19 sem evidências científicas aprovadas pela Conitec, a comissão responsável por incorporar assistência terapêutica e tecnologia no SUS. O Governo determinou a ampliação da produção de cloroquina pelo Exército. Mandetta argumentou ter adotado apenas o uso compassivo (ou seja, na falta de outros recursos) para pacientes graves hospitalizados. Ao longo do seu depoimento, apresentou um presidente vulnerável a influências externas ao Governo, desinteressado em conhecer os dados da pandemia e sem força para tomar decisões sobre a mitigação da crise. Mandetta afirmou que havia um grupo paralelo que o aconselhava ―inclusive com o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, tomando notas em reuniões para as quais o então titular da Saúde era convocado de última hora. Também voltou a afirmar que alertou o presidente verbalmente e por escrito sobre a então projeção de 180.000 mortes feita pela equipe técnica. O país já ultrapassou 411.000 falecimentos por covid-19. “Ele compreendia, falava que ia ajudar. Só que passava dois ou três dias, e ele voltava àquela situação de aglomerar”, afirmou o ex-ministro, que indicou que Bolsonaro não lhe apresentava possíveis soluções para a crise.
O ex-ministro afirmou que políticas da Saúde foram descontinuadas após sua demissão, como por exemplo programa de testagem em massa e vigilância. “Fui exonerado e então soube que a estratégia da testagem em massa não foi utilizada.” Ele também criticou o cancelamento do contrato com a Universidade Federal de Pelotas para realizar um inquérito sorológico no país. “Era a nossa bússola.” O Governo agora vive uma corrida contra o tempo, com um olho na CPI e outro na agenda da pandemia. Tenta provocar boas notícias enquanto transcorre a investigação que busca suas digitais na crise. O atual ministro Marcelo Queiroga, que também será ouvido pelos senadores nesta semana, tem anunciado novas negociações com a Pfizer e a chegada de doses de vacinas. Uma entrevista coletiva foi marcada para esta quarta (5) com o intuito de anunciar um novo inquérito de prevalência após as críticas de Mandetta. As ações recentes podem ser lidas como uma tentativa do Governo de mostrar serviço e amenizar o peso do desgaste que deve ser gerado pela comissão, especialmente sobre a escassez de vacinas.
Mandetta pouco contribuiu sobre a atuação do país para a compra de vacinas. Afirmou que não recebeu ofertas de laboratórios quando ministro e que tinha apenas acesso a uma lista da OMS com os imunizantes que estavam ainda nas primeiras fases de teste. O relator da CPI, Renan Calheiros, considerou o depoimento de Mandetta “produtivo”, especialmente com indicações de como se criou uma linha paralela no Governo aos caminhos técnicos via ministério. O médico Nelson Teich ―além de falar sobre possíveis pressões em prol da cloroquina― deve começar a esclarecer se houve resistência ou recusa do Governo à compra de vacinas contra a covid-19, a única porta de saída da pandemia. Nos primeiros capítulos de um longo caminho que visa desvendar se houve dolo nas ações de Bolsonaro durante a pandemia, o placar é 1 a 0 contra o Governo.
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