Passou da hora das redações reagirem aos repetidos ataques à imprensa, em especial às mulheres
Prestar solidariedade nas redes sociais e publicar notas de repúdio, apesar de bem-vindas, estão longe de resolver o problema. As redações precisam assumir seu papel na proteção online de seus jornalistas. Se os ataques são organizados, as respostas a eles também precisam ser
A repetição é um dos conceitos da psicologia da desinformação que explica uma das muitas falhas de design do raciocínio humano que nos fazem mais vulneráveis às notícias falsas. Nosso cérebro tende a confundir o que é familiar com o que é verdadeiro. Quanto maior a nossa exposição a um conteúdo, mais familiar ele vai se tornando, e, consequentemente, mais verdadeiro ele soa. Isso quer dizer que a célebre frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista, “uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade”, foi comprovada cientificamente pela neurociência.
A repetição é também uma das estratégias mais eficazes dos agentes da desinformação. Não é de hoje que instituições democráticas, a exemplo da imprensa, vêm sendo atacadas de maneira sistemática, coordenada e insistente. Discursos autoritários contra a imprensa e ataques a repórteres, com o objetivo de silenciá-los, se espalham livremente pelas redes sociais. E a repetição deles vai minando dia a dia a confiança na imprensa. Nesta segunda-feira o presidente da República, Jair Bolsonaro, repetiu a violência que emprega contra jornalistas, principalmente mulheres, em visita a Feira de Santana, na Bahia. Diante da pergunta da repórter Driele Veiga, da TV Aratu, sobre a foto em que o presidente aparece com um cartaz “CPF cancelado” —gíria associada a milícias, mas que chocou diante do número cada vez maior de mortos pela covid-19— Bolsonaro se irritou respondeu. “Você não tem o que perguntar, não? Deixa de ser idiota”.
O Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, que avalia anualmente as condições para o livre exercício do jornalismo em 180 países, mostra que o crescimento das violações à liberdade de imprensa é algo observado em todo o mundo, já que o índice global está 12% mais baixo em comparação ao contexto em que foi criado em 2013. De acordo com a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), o Brasil recuou cinco casas só entre 2018 e 2020, ocupando atualmente a 107ª posição na classificação mundial.
No Brasil, choca o alto índice de violência contra a imprensa. O Relatório sobre Violações à Liberdade de Expressão 2020, da Associação Brasileira de Rádio e TV Aberta, apontou que, no ano passado, a imprensa sofreu 7.945 ataques virtuais por dia, ou quase seis agressões por minuto.
A estratégia da maior parte das redações ainda é ignorar os ataques e orientar os repórteres a não se engajarem com os trolls, o que, na prática, deixa a vítima dos assédios tendo que lidar e documentar os ataques sozinha. Os departamentos jurídicos, daquelas instituições que têm recursos, não acompanharam a evolução da natureza dos ataques. Em poucos anos, esses passaram de linguagem inapropriada na caixa de comentários ou e-mails abusivos a milhares de mensagens em todas as redes sociais, ameaças, insultos e verdadeiras campanhas difamatórias que afetam principalmente o repórter na ponta, mas que também põem em xeque a credibilidade de toda a categoria.
Já passou da hora de redações se estruturarem para reagir de maneira institucional aos ataques que os veículos e seus repórteres, sobretudo as mulheres, sofrem. Prestar solidariedade nas redes sociais e publicar notas de repúdio, apesar de bem-vindas, estão longe de resolver o problema. As redações precisam assumir seu papel na proteção online de seus jornalistas contra os danos profissionais e também pessoais que ataques digitais provocam.
Em 2018, o International Press Institute, organização internacional que promove a liberdade e a segurança na mídia internacional, visitou 45 redações em cinco países europeus para criar um protocolo de apoio a redações e jornalistas vítimas de assédio virtual. Foram entrevistados mais de 110 editores, jornalistas e moderadores de redes sociais, além de especialistas em assuntos jurídicos, representantes da sociedade civil e acadêmicos para elaboração do documento. O Redes Cordiais e o Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio) traduziram o protocolo para o português.
Em linhas gerais, o protocolo orienta primeiro que as redações criem canais de denúncia claros e se responsabilizem pela documentação dos casos de ataques e assédio virtuais. Dessa forma acolhem e liberam o repórter desse fardo. Em segundo lugar, as instituições precisam estar aptas a fazer avaliação de risco dos danos não só à reputação do repórter, mas também do risco de dano físico e psicológico. Em seguida, mecanismos de apoio à vítima precisam ser acionados. São eles: suporte em segurança digital, apoio jurídico, apoio emocional e psicológico, licença temporária (quando necessária), transferência e/ou recolocação, declaração pública de apoio e moderação de conteúdo danoso no ambiente online. Por fim, os casos precisam ser acompanhados e reavaliados periodicamente. Se os ataques são organizados, as respostas a eles também precisam ser. Afinal, a goteira com a água mole está aberta e furando muitas pedras duras.
Clara Becker é fundadora do site Redes Cordiais, uma iniciativa que alia educação digital e combate às notícias falsas e discursos de ódio nas redes sociais.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.