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ONU escuta estudantes para decidir como aplicar o direito das crianças na internet

Organização ouviu 709 crianças, ao lado de especialistas para a construção de um documento que define como a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente se aplica ao ambiente digital

Alunos brasileiros do Programa ProFuturo, da Fundação Telefônica, em imagem de 2019.
Alunos brasileiros do Programa ProFuturo, da Fundação Telefônica, em imagem de 2019.Europa Press
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Imagine realizar um amplo debate internacional sobre os direitos das mulheres e criar normas e leis para os Estados sem a participação do público feminino. “O que o movimento feminista diria sobre isso? Por muito tempo, os adultos, mesmo que com as melhores intenções, têm discutido o direito das crianças e adolescentes sem ouvi-los”, afirma Luis Ernesto Pedernera Reyna, presidente do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU). Desde 2014, a organização vem trabalhando intensamente para mudar essa realidade. Mais de 709 crianças de 29 países foram ouvidas, juntamente a especialistas e organizações da sociedade civil, para a construção do Comentário geral n. 25, lançado na semana passada, que define como a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente se aplica ao ambiente digital. E que vai promover mudanças na forma como Estados e empresas gerenciam negócios na área de tecnologia.

O documento explica que o setor empresarial, incluindo organizações sem fins lucrativos, afeta direta e indiretamente os direitos das crianças na prestação de serviços e produtos relacionados com o meio virtual. Por isso, cabe às empresas respeitar os direitos das crianças e prevenir e remediar abusos no mundo digital. “A legislação deve incluir fortes salvaguardas, transparência, fiscalização independente e acesso a medidas de reparação. Estados partes devem exigir a integração da privacidade por design em produtos e serviços digitais que afetam crianças”, orienta o documento. Na prática, isso significa que os sites precisam, desde o princípio, considerar o direito à privacidade das crianças.

“A internet é uma grande mídia de socialização. Os Estados têm que pensar em ter conteúdo educativo adequado e que promovam desenvolvimento da criança. Não adianta Facebook, Google e YouTube terem termos de uso acima de 13 anos. As crianças estão presentes nas plataformas. Por isso, o direito da criança por design. Isso significa que já no desenvolvimento esses serviços têm que se pensar nas crianças que serão usuárias diretas ou indiretas”, explica Pedro Hartung, coordenador jurídico da ONG Instituto Alana.

Em setembro de 2019, os Estados Unidos multaram o Google e o YouTube em 170 milhões de dólares por violações dos dados de crianças, ao coletar informações pessoais sem autorização dos pais. A preocupação com seus dados aparece no comentário das crianças que participaram da construção do documento da ONU. “Gostaríamos que o Governo, empresas de tecnologia e professores nos ajudassem a gerenciar informações não confiáveis on-line”, disse um deles. “Eu gostaria de entender com clareza o que realmente acontece com os meus dados... Por que coletá-los? Como eles estão sendo coletados?”, apontou outro. “Eu estou... preocupado com os meus dados sendo compartilhados”, destacou um terceiro.

Segundo dados do Unicef, um em cada três usuários da internet no mundo tem entre 0 e 18 anos. As crianças ouvidas pela ONU destacam a importância de sua vida digital, especialmente em tempos de crise, como a pandemia do coronavírus, que há mais de um ano fez com que a comunidade escolar de todo o mundo tivesse que se adaptar ao ensino a distância, nem sempre com as ferramentas tecnológicas adequadas para isso. “A pandemia foi um evento inesperado mas que ajudou a ver com evidências o aprofundamento das desigualdades entre as crianças de diferentes países, especialmente o déficit digital na América Latina”, diz Pedernera Reyna.

Apesar de não trazer recomendações individuais para cada Estado, tem valor de lei para os países que ratificaram a Convenção, dentre eles o Brasil. “O ambiente digital não foi originalmente desenvolvido para crianças, mas desempenha um papel significativo na vida delas. Estados partes devem assegurar que, em todas as ações relativas ao fornecimento, regulação, design, gestão e uso do ambiente digital, o melhor interesse de cada criança seja uma consideração primordial”, afirma o documento da ONU.

“Esse comentário é uma das melhores e maiores contribuições para garantia dos direitos da criança no ambiente virtual pois dá um equilíbrio sensível entre a necessidade de garantir acesso à criança ao mundo digital e também proteger as crianças dos riscos físicos, psíquicos e sexuais”, afirma Hartung. O documento aborda desde o cyberbullying até um capítulo específico sobre a publicidade infantil. “Os dados das crianças e adolescentes são sensíveis porque são coletados numa fase muito vulnerável do desenvolvimento humano. É muito injusto e antiético se utilizar dessa vulnerabilidade para publicidade, para vender um serviço”, defende o advogado.

Hartung lembra que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de 2018, inaugura uma preocupação com a criança no mundo digital, afirmando que o tratamento de dados de crianças e adolescentes deverá ser realizado em seu “melhor interesse”. “O comentário da ONU detalha o que significa ‘melhor interesse’ da criança no mundo digital”, afirma o advogado. Inclusive, o documento deixa claro que os Estados “devem proibir por lei o perfilamento ou publicidade direcionada para crianças de qualquer idade para fins comerciais com base em um registro digital de suas características reais ou inferidas”.

31 anos da Convenção sobre Direitos da Criança: “um documento vivo”

A Convenção sobre os Direitos da Criança e Adolescente foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. Nestes 31 anos, 196 países ratificaram o documento ―o Brasil assinou o documento em 24 de setembro de 1990, dois meses após o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) se tornar lei. Apenas os Estados Unidos não ratificaram o documento internacional. “Nelson Mandela afirmou que a Convenção é um documento vivo”, lembra Luis Ernesto Pedernera Reyna, presidente do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. Por isso, nestes 31 anos, vários comentários vêm sendo editados para interpretar a Convenção frente a novos temas como: meninos e meninas em situação de rua, finanças públicas, primeira infância, dentre outros. “O Comentário número 25 faz uma leitura à luz dos avanços tecnológicos para o respeito, cuidado e promoção dos direitos das crianças”, explica o presidente da comissão.

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