Decisão de Belo Monte de reduzir vazão do rio Xingu ameaça 80% das plantas e peixes locais, dizem cientistas

Parecer de especialistas encomendado por procuradores recomenda suspender autorização à hidrelétrica dada pelo Ibama à revelia de seu corpo técnico. Dos 16 projetos de compensação ambiental prometidos por hidrelétrica, só três são novos. MPF analisa se entra com alguma medida contra a seca do rio

A Usina Hidrelétrica de Belo Monte em abril de 2017.
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte em abril de 2017.Roberto Stuckert (PR)
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Um parecer solicitado pelo Ministério Público Federal (MPF) a um grupo de cientistas sobre a autorização concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) à Norte Energia SA, concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, para praticamente secar a vazão do rio na Volta Grande do Xingu e aumentar a produção de energia mostra que das 16 medidas de compensação ambiental propostas pela empresa em troca da licença e apresentadas com o valor de 157,5 milhões de reais em investimentos, 13 já estavam em curso na região e foram adotadas como compensação em compromissos anteriores da hidrelétrica com o poder público e órgãos ambientais. A Volta Grande é o trecho do rio Xingu que fica abaixo das barragens de Belo Monte, no município de Altamira no Pará. Na região vivem pelo menos duas etnias indígenas e diversas comunidades ribeirinhas. Abriga também dezenas de espécies de plantas, animais e peixes, seis dos quais autóctones, ou seja, só existem ali. Todos serão ainda mais afetados pela restrição no volume de água do rio autorizada pelo Ibama.

Mesmo os três novos projetos de compensação ambiental apresentados ao Ibama são ações experimentais, como a criação em cativeiro de peixes que podem deixar de existir por ali, consideradas insuficientes pelos especialistas no parecer que recomenda a suspensão do chamado “hidrograma de consenso” enviado ao MPF. Ainda assim o presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, escolhido pelo Governo do presidente Jair Bolsonaro, autorizou a mudança na vazão do rio no dia 8 de fevereiro, contrariando uma análise feita uma semana antes pela área técnica do próprio Ibama, que negava o pedido em que verificava conclusões com base “em especulações sobre garantias de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados de estudos bióticos [favor de manutenção de vida], que ainda se encontra em andamento.” Agora, com o parecer dos cientistas, o MPF avalia se entra com alguma medida contra a seca da Volta Grande do Xingu na Justiça ou não. Procurado pela reportagem, o MPF disse que os procuradores não comentam o caso.

Antes da construção das barragens de Belo Monte, nesta época do ano a vazão de água do rio na Volta Grande do Xingu era de 14.000 metros cúbicos por segundo. A Norte Energia estava autorizada a manter esta vazão em 10.900 metros cúbicos por segundo e agora, com a nova autorização dada pelo Ibama, passará a liberar 1.600 metros cúbicos por segundo de água. A briga pelo aumento do acúmulo de água nas barragens para a geração de energia e consequente diminuição da vazão na Volta Grande do Xingu é antiga e já foi parar na Justiça diversas vezes.

“Ao analisar o conteúdo das ações elencadas resta evidente que, das 16 medidas apresentadas, apenas as três primeiras consistem em ações novas de fato e verdadeiramente adicionais àquelas já previstas no licenciamento ambiental da usina, as outras 13 medidas incluídas já são obrigações vigentes no licenciamento ambiental”, afirma o relatório assinado por oito cientistas datado do dia 26 de fevereiro. “Vale ressaltar que nenhuma dessas 13 medidas que já existiam foi planejada para mitigar os efeitos da redução extrema de vazão decorrente da aplicação do chamado Hidrograma de Consenso, e, portanto, não deveriam ter sido elencadas entre as ações que justificariam uma mudança de posição do IBAMA quanto à viabilidade ambiental.”

Entre as novidades apresentadas pela Norte Energia, as três são experimentais, ou seja, sem comprovação científica de que serão eficazes para debelar os malefícios da falta de água: um projeto de alimentação externa dos peixes que vão ficar sem ter o que comer, outro de reprodução em cativeiro dos peixes que só existem ali e podem correr risco de extinção, e um terceiro de para “desenvolvimento de metodologias inovadoras de Restauração Ecológica (revegetação de florestas aluviais e formações pioneiras)”, sem nenhum detalhe. Sobre as iniciativas, o painel de cientistas conclui que “as medidas mitigadoras propostas não são suficientes para mitigar o impacto da perda de áreas de inundação de florestas aluviais e pioneiras e consequente redução de área alimentar e habitats para a ictiofauna e fauna, bem como redução de área e comunidade vegetal e seus fluxos gênicos.”

“É algo muito grave, que foi feito à revelia da análise técnica do próprio Ibama”, afirma o professor Jansen Zuanon, especialista em ecologia de peixes amazônicos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, que assina o parecer enviado ao MPF. “Corremos o risco de perder 80% no quantitativo de todas as espécies de plantas e peixes que existem ali, sendo que seis espécies de peixes só existem ali, sem falar no impacto das milhares de pessoas das populações que vivem na região.”

A Norte Energia ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina, iniciada em 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015, ainda no Governo da então presidente Dilma Rousseff, sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. Metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje do Grupo Eletrobras, formado por empresas estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef.

Procurada pelo EL PAÍS, por meio de suas assessorias de imprensa, a Norte Energia SA não respondeu antes da publicação desta reportagem. Em nota, o Ibama afirma que “as ações previstas no Termo de Compromisso Ambiental (TCA) são adequadas para o controle, mitigação e compensação ambiental para o empreendimento”.

O instituto diz que essas ações de mitigação e compensação vinham sendo discutidas desde o final do ano de 2019. “Parte significativa dessas ações estavam previstas no âmbito do licenciamento ambiental. (...) A responsabilidade de Belo Monte foi ampliada com a adequação das ações e outras três novas foram entendidas como necessárias”, afirma o comunicado enviado pelo Ibama.

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