Um paciente sem fôlego atrás do outro. Mãe e filha numa maca. A agonia da covid-19 em São Paulo
Reportagem do EL PAÍS presenciou momentos dramáticos no Hospital Municipal Tide Setúbal, na zona leste da cidade. Estado mira colapso em duas semanas e deve endurecer restrições
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A maca é retirada da ambulância na porta do pronto-socorro. A mãe está deitada com a filha sobre si, um bebê de no máximo três anos de idade. Ela tira a máscara de oxigênio e coloca uma chupeta na boca. Profissionais de saúde vem correndo e ajudam os paramédicos a levarem as duas para dentro. O motorista que as trouxe confirma: estão com suspeita de covid-19 e a menina não está bem, respira com dificuldade. No Hospital Municipal Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, o maior dessa região de periferia no extremo da zona Leste de São Paulo, chegava uma pessoa atrás da outra com sintomas de covid-19 na manhã desta terça-feira. Alguns não conseguiam respirar direito, vinham amparados em outra pessoa e sentavam no chão para recuperar o fôlego antes de ser atendidos.
Entre casais, mãe e filha, famílias inteiras, ambulâncias e gente sozinha, a reportagem do EL PAÍS contou pelo menos 12 pessoas que chegaram em busca de socorro em menos de meia hora. Lá dentro dá para ver que está lotado, e assim os novos pacientes ficam ali mesmo, na calçada. Uma pequena fila de umas cinco a dez pessoas chega a se formar. Apesar disso, as pessoas são constantemente avaliadas, o atendimento acontece de forma ágil e ninguém espera mais que 20 minutos para ser encaminhado lá para dentro. Já que não é possível entrar com os doentes nas áreas contaminadas, os acompanhantes ficam em agonia nas calçadas em volta, esperando notícias. O cenário ainda não é de colapso, mas dá para ver que está quase.
Desde a semana passada chama atenção o esgotamento das vagas nos principais hospitais particulares de São Paulo —na sexta-feira o Hospital Israelita Albert Einstein anunciou que estava com mais de 100% de ocupação geral de leitos—, mas nas periferias o recrudescimento da pandemia não é novidade. Pelo menos desde o começo de dezembro é assim no Tide Setúbal, e a ocupação dos leitos de UTI e internação para vítimas do novo coronavírus fica acima dos 90% por ali. Nesta semana flutua em torno de 95%, isso por que o hospital remove para outros de referência para covid-19 da rede municipal diversos pacientes por dia.
Os cinco bairros onde morreu mais gente ficam na periferia, enquanto que os cinco onde morreu menos ficam na região central. De acordo com o ranking de mortes por covid-19 distribuídas por distritos da Prefeitura de São Paulo, com todas as mortes acumuladas desde o início da pandemia ano passado até 18 de fevereiro, a última atualização disponível, São Miguel Paulista é o quinto bairro onde mais morre gente da doença na capital paulista, com 235 mortes para cada 100 mil habitantes. Assim, quem vive ali tem 3,5 mais chance de morrer em decorrência da pandemia do que quem vive nos Jardins, área nobre da região central onde a taxa de mortes por 100 mil habitantes está em 67. Em São Miguel a situação da epidemia nunca deixou de ser grave.
“Está uma loucura lá dentro, não paramos um minuto, estamos faz um tempo girando em torno de 100% de capacidade ocupada nos leitos de covid-19 para enfermaria e UTI, mas ainda conseguimos atender todo mundo”, afirma um profissional da saúde que ajuda a coordenar um dos setores do hospital, mas não tem autorização da direção nem da prefeitura para falar sobre o hospital com a imprensa. “Enquanto tiver espaço em algum outro hospital da rede, conseguimos ir manejando para lá e para cá. Se todos encherem que nem aqui, vai ser o colapso total igual já estamos vendo em outros lugares”, afirma o profissional, que lamenta a falta de preocupação das pessoas de uma forma geral em relação à pandemia. “Você anda pela rua e dependendo do lugar virou raridade alguém de máscara ou com ela colocada direito. As pessoas desencanaram e o resultado é esse aí.”
O desempregado Luiz Felipe Ferreira Santos, de 23 anos, foi ao hospital municipal em São Miguel tentar fazer um teste para covid-19 e buscar orientações. Com falta de ar, um pouco de febre e dor de cabeça, foi andando sozinho ao hospital. “Não faço ideia como posso ter contraído o vírus”, diz. “Mas acho que peguei porque não sinto cheiro direito e meu peito está chiando e doendo um pouco, então achei melhor vir ver antes de ficar pior.”
A estudante e operadora de telemarketing Letícia Rodrigues, de 21 anos, já tinha o diagnóstico positivo para covid-19 desde a semana passada, mas de segunda para terça-feira seu estado de saúde piorou e resolveu procurar o hospital. “Estou com muita diarreia, enjoo, dor de cabeça e no corpo, estou passando muito mal”, afirma a jovem. “Acredito que peguei no trabalho, fica muita gente no mesmo ambiente apesar dos cuidados”, diz. Sua mãe, a autônoma Maria da Penha, de 48 anos, diz que já pegou covid-19 no início da pandemia e ficou péssima. “Fiquei mais de 15 dias bem doente, até melhorar um pouco”, diz ela, que foi com a filha ao pronto-socorro e ficou esperando na rua depois que ela entrou. “Espero que com ela seja mais tranquilo por que ela tem asma. Até hoje sinto dificuldade de raciocinar direito”, afirma.
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Clique aquiNo Hospital Municipal Doutor Arthur Ribeiro de Saboya, no bairro do Jabaquara, na zona sul de São Paulo, a procura por atendimento para casos confirmados ou suspeitos de covid-19 tem sido grande desde o início do ano e ala de internação da doença —inicialmente reservada para pacientes vindos de outras unidades— está sendo preparada para receber pacientes do próprio pronto-socorro. “Aqui o PS e a internação para casos de covid-19 são separados, mas chega tanta gente lá que estamos tendo que receber”, diz um profissional de saúde que trabalha na UTI do hospital. “Impressiona a quantidade de gente jovem que já chega muito machucada buscando atendimento no pronto-socorro que não dá tempo de esperar a regulação de leitos e a transferência, temos que internar rápido.”
Rede privada perto de colapso
O Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca, zona leste da cidade, estava com a movimentação tranquila na manhã desta terça-feira. A quantidade de cilindros de oxigênio enfileirados na porta onde estacionam as ambulâncias, no entanto, não deixam dúvidas do que se passa ali dentro. Pessoas que trabalham em comércios em volta dizem que em alguns dias têm se formado filas de ambulâncias com pacientes a espera de internação na unidade.
Doria prepara terreno para novas restrições
Na cidade de São Paulo a ocupação de leitos públicos de UTI para covid-19 chegou a 77% das vagas preenchidas, entre vagas na rede municipal e estadual. Nas cidades da Grande São Paulo, a ocupação de leitos é de 76,7%, segundo dados do Governo estadual. De acordo com o governador João Doria, 60% dos internados no Estado tem de 30 a 50 anos de idade e o atendimento pode entrar em colapso em até duas semanas se a transmissão do coronavírus não for freada. Em uma semana a ocupação de leitos cresceu 19%. Em algumas cidades como Araraquara, no interior, a ocupação passou dos 100% e pacientes tem de ser transferidos para outras cidades do estado, inclusive a capital.
“Já temos hospitais com 100% de ocupação dos leitos de UTI, parte deles na rede privada”, afirmou Doria nas suas redes sociais na noite de terça. “Colapsar a rede de saúde significa que pessoas podem ficar sem atendimento médico. Diante da força dessa nova onda, os esforços não serão suficientes se a população não fizer sua parte”, diz o governador, que tem hesitado em adotar medidas mais duras de fechamento da economia. Nesta terça, o tucano se reuniu com prefeitos e prepara o terreno político e de comunicação para anunciar novas regras de confinamento nesta quarta-feira.
Nos principais hospitais particulares de São Paulo, o colapso no atendimento também é iminente. O Hospital Sírio-Libanês também está próximo de sua capacidade de internações. Nesta terça-feira, o hospital estava com 96% de todos os leitos ocupados. “Está puxado, todo mundo fazendo hora extra, o hospital lotado e não para de chegar gente”, afirma um médico do hospital. “Tem vindo muita gente de fora de São Paulo também. O pessoal entra no carro ou no avião de carreira já mal, se joga no PS e diz ‘me salva’. Nós salvamos, mas daqui a pouco não cabe mais ninguém aqui também.”
Para desafogar a lotação que roda na casa dos 100% desde a semana passada, o Einstein começou a mobilizar suas outras unidades espalhadas pela cidade em bairros como Chácara Klabin e Perdizes, por exemplo —geralmente dedicadas a consultas ambulatoriais, exames e pequenos procedimentos cirúrgicos— para internar pacientes de outras enfermidades sem relação com a pandemia. “A coisa está tomando uma proporção que além do espaço, pelo jeito vai precisar ampliar os setores para covid-19, também é mais seguro para evitar a contaminação destes pacientes”, avalia um médico que atua no combate à pandemia no hospital. Ele também está preocupado com a reinfecção de colegas. “Nos principais hospitais da cidade, tanto públicos como privados, aqueles com mais funcionários, já são vários os casos de profissionais reinfectados pelo coronavírus. Conheço seis de um grande hospital oncológico onde atuo que além de estarem de molho com covid-19 pela segunda vez, já tinham tomado as duas doses de uma das vacinas”, diz. Segundo ele, nenhum caso de reinfecção citado por ele no entanto é grave.
Em vários destes hospitais, pacientes recebem alta da UTI para o quarto de madrugada, sem a presença da família, para liberar logo o leito para quem está esperando no pronto-socorro ou na internação. A Beneficência Portuguesa tinha 98% de ocupação nos leitos de UTI para covid-19 no início da semana e o Hospital do Coração (HCor), 90%.
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