“A Coronavac vai nos permitir começar o processo de controle da pandemia”
Vacina da chinesa Sinovac com o Butantan tem potencial de reduzir hospitalizações e facilidade de distribuição, mas eficiência prática depende de Ministério da Saúde conseguir por de pé campanha de vacinação ampla e robusta
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Em um cenário no qual o Brasil apostou na aquisição prévia de poucas vacinas contra o coronavírus e há uma forte disputa global para comprar doses dos mais diversos laboratórios que têm imunizantes promissores, o anúncio dos dados de eficácia de 50,38% da Coronavac é apontada por especialistas como um alento para que o Brasil consiga enfim começar a imunização da população e manter uma campanha com menos riscos de disrupções, já que será produzida nacionalmente e tem facilidades logísticas para distribuição no gigante território nacional. “Esta vacina (Coronavac) é compatível com a nossa capacidade de produção local, armazenamento, cadeia de frios e distribuição”, salienta a presidente do Instituto Questão de Ciência, Natalia Pasternak, que participou do evento de apresentação dos dados gerais de eficácia nesta terça-feira. Já a eficiência prática do imunizante no geral da população dependerá da capacidade do Ministério da Saúde conseguir pôr de pé uma campanha de vacinação ampla.
O anúncio sobre os resultados da pesquisa brasileira com a Coronavac foi feito a conta gotas nos últimos dias e ganhou várias críticas da comunidade científica por problemas de transparência, o que jogou pressão para a divulgação de informações mais gerais, enfim anunciadas agora. Elas mostram uma vacina segura e com um potencial importante para reduzir as hospitalizações pela covid-19 em um momento em que a pandemia voltou a ganhar força no país ―o Imperial College voltou a mostrar que a taxa de transmissão voltou a crescer― e já pressiona sistemas de saúde em várias regiões. A vacina é potencialmente capaz de desafogar o SUS em um espaço menor de tempo, mas precisaria ser aplicada em praticamente toda a população para alcançar uma imunidade de rebanho, ou imunidade coletiva, que é quando o vírus reduz a circulação. Mas isso deve demorar mais a ocorrer e contar com outros imunizantes na estratégia nacional, segundo gestores e especialistas. Até o momento, nenhuma das vacinas tem autorização para uso emergencial, mas a Anvisa promete dar respostas sobre a Coronavac e a da Astrazeneca no próximo domingo, 17 de janeiro, às 17h, se receber informações ainda pendentes.
Na prática, a eficiência da Coronavac ―e de outras vacinas― depende de uma campanha de vacinação em massa e robusta, que deverá ocorrer sob a coordenação de um Ministério da Saúde criticado pela demora no planejamento para fazer a vacina chegar de fato aos postos de saúde. O Governo Federal ainda tem uma série de lacunas na estratégia e uma limitação de poucas doses já prontas para distribuição ou na iminência de chegar ao país nos próximos dias: 6 milhões de vacinas do Butantan e 2 milhões da AstraZeneca, que tem parceria para futura produção pela Fiocruz. Cientistas e gestores públicos têm pressionado o Governo para agilizar a vacinação e apresentar um plano mais sólida, além de solicitar a aquisição de mais tipos de imunizantes para tentar frear a pandemia no país e de promover uma campanha de comunicação pró-vacina clara. Pesa sobre isso a retórica do presidente Bolsonaro, que tem repetido não ser contra nem a favor das vacinas, mas se posicionado contra a obrigatoriedade da vacinação e lançado dúvidas sobre riscos de efeitos adversos.
Coronavac não apresentou efeitos adversos graves
Conforme demonstrou o diretor do Centro de Segurança Clínica e Farmacovigilância do Butantan, Alex Precioso, em coletiva de imprensa, a administração da Coronavac nos testes não registrou nenhum efeito adverso grave associado à vacina e somente 0,3% dos voluntários apresentaram alguma reação alérgica, sem diferenças entre os que receberam a vacina ou placebo. Por outro lado, as promessas políticas feitas nos últimos meses pelo governador João Doria elevaram a expectativa sobre a eficácia da Coronavac e ajudaram a amplificar a desconfiança sobre a vacina quando foi apresentada a eficácia de cerca de 50%, após muitos ruídos de comunicação. “Se os resultados não são exatamente o que esperávamos porque queríamos uma vacina de eficácia de 90%, são bons resultados, honestos, perfeitamente aceitáveis. (...) Esta é uma vacina possível para o Brasil”, alerta Pasternak.
A Coronavac tem alguns pontos favoráveis que devem ser levados em conta para a estratégia brasileira: será produzida em território nacional pelo Instituto Butantan ―que espera chegar a produção de 1 milhão de doses diárias― e não tem grandes dificuldades para distribuição no país, já que as doses podem ser armazenadas em temperaturas condizentes com a rede de refrigeradores que o SUS já dispõe, diferente das vacinas de RNA mensageiro como as da Pfizer e da Moderna, com eficácia superior a 90%. A vacina da AstraZeneca, que começará a ser produzida pela Fiocruz a partir do próximo mês, também tem estas características de facilidade logística. “Temos uma boa vacina. Não é a melhor vacina do mundo, não é uma vacina ideal, é uma boa vacina que tem a sua eficácia dentro dos limites do aceitável”, diz Pasternak, referindo-se à Coronavac. “É uma vacina que vai nos permitir começar o processo de controle da pandemia”.
Na semana passada, o Governo de São Paulo havia divulgado apenas desfechos secundários dos testes da Coronavac no Brasil. Anunciou que a vacina tinha uma eficácia de 78% para prevenir casos leves de covid-19 e de 100% para casos moderados e graves. Os dados ignoravam os resultados de casos muito leves da doença e os assintomáticos. Nesta terça, as autoridades paulistas informaram uma eficácia global de 50,38%, que é a redução de riscos de contrair a covid-19 em relação ao grupo placebo. O percentual vem da análise de casos entre os grupos que receberam a vacina e o placebo (substância sem efeito que é dado para parte dos voluntários, sem que eles saibam, para controlar os resultados do estudo). De um grupo de 4.599 voluntários que receberam placebo nos testes, 3,6% pegaram covid-19. Entre os 4.653 voluntários que receberam a vacina, 1,8% contraíram a doença. Em resumo, a pesquisa mostra que a pessoa que foi vacinada tem metade das chances de ficar doente.
Caminho mais longo para uma imunidade de rebanho
“Não é excelente, uma eficácia altíssima, mas preenche os requisitos da OMS e do FDA. A consequência e implicação dela é que vai nos levar a ter que vacinar cerca de 100% da população para conseguir uma interrupção da transmissão no Brasil”, explica a epidemiologista e vice-presidenta do Sabin Vaccine Institute, Denise Garrett. Ela aponta que a capacidade da Coronavac em prevenir 78% dos casos leves está clara e é estatisticamente significante. Mas as confirmações ficam por aí. A prevenção de 100% de casos moderados e graves é uma tendência importante, mas não é significativo estatisticamente porque foram poucos os eventos observados: apenas 7, todos do grupo placebo.
O próprio diretor diretor médico de pesquisa clínica do Butantan, Ricardo Palácios, ponderou sobre este dado. “Há uma tendência da vacina a diminuir a intensidade clínica da doença. Não há uma promessa de que ninguém vai morrer se vacinado porque nenhuma vacina pode fazer esta promessa”, explicou. “O que temos que começar a interpretar é a tendência, que corresponde a um efeito biológico esperado. O que a gente vê é que este número é consistente com a hipótese, mas fazer uma afirmação absoluta é difícil”, acrescenta, sobre o dado preliminar de 100% de eficácia contra casos graves.
A ponderação não invalida o potencial da Coronavac no combate a pandemia no Brasil. “O que temos é uma vacina com 50% de eficácia, que deve ser usada e já vai ajudar. É nisso que temos que estar focando”, aponta Garrett. Segundo a pesquisadora, quando começar a vacinação em massa, o impacto na redução das hospitalizações vai começar a aparecer. “O que vai demorar é para controlar a transmissão do vírus”, diz. Isso porque há uma correlação entre a eficácia menor e a necessidade de vacinar uma maior fatia da população para alcançar uma proteção coletiva, a chamada imunidade de rebanho.
E é aí que entra outra fase importante das pesquisas com as vacinas: a análise da efetividade delas na população em geral e os impactos na pandemia, o que só ocorrerá após o início da vacinação. “A efetividade desta vacina (Coronavac) no mundo real vai depender da [nossa capacidade de] vacinação”, salienta Pasternak, que lembra que a o início da imunização não representa o fim da pandemia, mas é um primeiro passo para conseguir controlá-la. “Não vai pôr fim e muito menos instantaneamente. Vamos precisar de medidas de prevenção por um bom tempo”, acrescenta. A população deve continuar usando máscaras e adotando o distanciamento social.
O secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, defende iniciar a imunização no Brasil com as vacinas disponíveis no momento, mas ressalta a importância de incorporar novos imunizantes ao Plano Nacional de Imunizações. “Não conseguimos fazer o controle da pandemia como imaginávamos. Só a vacina mudará a trajetória do nosso país”, argumenta.
A comunidade científica brasileira tem defendido o início de uma campanha de comunicação rápida pelo Ministério da Saúde para informar a população sobre a segurança e eficácia das vacinas, especialmente em um contexto em que a disputa política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Doria alimenta a polarização e pode minar a confiança sobre os imunizantes contra a covid-19. O diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri, afirma que o desafio da campanha de vacinação contra a covid-19 será maior por conta da polarização e que é preciso convencer a sociedade para aderir ao calendário que será proposto. “De nada adianta o mais eficiente cientista desenvolver a vacina, o estudo ser desenvolvido com o rigor se elas não chegarem à população”, diz.
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