Doria dobra aposta na polarização política da covid-19 e promete vacinação para janeiro
Governador de São Paulo diz que vai criar programa estadual e critica plano Saúde, que fala de março como data. Tucano classifica Governo Bolsonaro de “irresponsável e ideológico” e vai ao aeroporto receber a “vacina do Brasil”
A polarização política no Brasil contaminou novamente a corrida para obter uma vacina contra a covid-19. A guerra ideológica entre o Governo Federal liderado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o governador do Estado de São Paulo, João Dória (PSDB) atingiu um novo ápice nesta quinta-feira. O político paulista foi pessoalmente ao aeroporto de Guarulhos recepcionar a chegada de um lote de 600 litros de matéria-prima vinda da China, que será usada para gerar 1 milhão de doses da vacina Coronavac, desenvolvida em parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan ―a qual ele costuma se referir como “a vacina do Brasil”.
Pouco depois, Doria disparou a artilharia sobre o Governo Bolsonaro. Anunciou que pretende iniciar por conta própria uma campanha estadual de vacinação já em janeiro, à frente do programa do Ministério da Saúde, previsto para começar em março. O imunizante da parceria chinesa ainda não possui registro final na Anvisa, a entidade regulatória nacional e sob influência do Governo Bolsonaro, mas, pela lei que regula o enfrentamento da pandemia, um fármaco sem esse aval pode, sim, ser usado para imunizar a população, caso ela receba a aprovação dos EUA, União Europeia ou Ásia. A questão é que, ainda assim, é a Anvisa que tem conceder autorizações de emergência que permitiriam a aplicação da vacina sem registro. A agência disse que poderá fazê-lo mas, até esta quarta-feira, informou que nenhuma empresa fabricante havia solicitado o tipo de uso.
Doria prometeu que, na próxima segunda-feira (7), irá anunciar os planos completos para vacinar a população do Estado ―embora não tenha entrado em detalhes, sobre como fará, por exemplo, para evitar grandes deslocamentos de populações em busca do vacina, o que poderia gerar o casos na distribuição do imunizante. Em entrevista coletiva no início da tarde, seguiu na ofensiva:
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“Assisti com indignação ao anúncio do Ministério da Saúde de que a imunização se iniciaria apenas em março. Indago se os membros do Governo Federal não enxergam o fato de que temos mais de 500 brasileiros que morrem todos os dias. É surpreendente a indiferença e falta de compaixão com a vida”, disse Doria. E foi além: para ele, “quase 60 mil brasileiros podem morrer até março pela irresponsabilidade de um governo ideológico, que não tem compaixão, que não tem respeito pela vida, que é negacionista na pandemia. Aqui, nós não esperamos sentados, nós trabalhamos”. No entanto, ao mesmo tempo em que fazia essas declarações políticas, ele afirmava que “não houve, não há e nem haverá decisão política em relação ao coronavírus no Estado de São Paulo”.
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Outros membros do governo paulista seguiram a mesmo linha durante a coletiva, transformada em uma espécie de palco político. Dimas Covas, diretor do Butantan, disse que os resultados de eficácia da fase 3 de testes da Coronavac serão apresentados até o dia 15 de dezembro. “Cumprimos o compromisso de trazer a vacina o mais rapidamente possível. Não faz sentido ter uma vacina pronta e não usá-la. Precisamos de um programa de imunização ágil por parte do Governo federal”, completou o diretor. “Estamos todos perplexos com a previsão do Ministério da Saúde de iniciar a vacinação só em março. Teremos em janeiro milhares de pessoas que vão ficar doentes, que vão se internar, que irão a óbito”, ressaltou João Gabbardo, o coordenador executivo do Centro de Contingência do coronavírus em São Paulo e ex-secretário do Ministério. “No meu entendimento, no momento em que o Instituto Butantan entregar os resultados, ela estará técnica e formalmente apta a ser utilizada em caráter emergencial”, disse ele.
A vacina chinesa se tornou o prato forte das aspirações presidenciais de Doria em 2022. O lote recebido é parte das seis milhões de dose que ele comprou. O Instituto Butantan, de São Paulo, participaria de uma futura fabricação nativa em cooperação com a Sinovac. Seu equivalente carioca, a Fiocruz, colabora na vacina da AstraZeneca e Oxford, cujas primeiras doses são esperadas em fevereiro.
Ocupação em alta
Os políticos brasileiros seguem polemizando, enquanto os juízes analisam se a vacina deve ser obrigatória (quando estiver disponível), e os cientistas e sanitaristas levam as mãos à cabeça, porque a ocupação nas UTIs supera 90% em um quinto dos Estados; o Rio de Janeiro beira o colapso com mais de 92% dos leitos de UTI em uso. Nesta quinta-feira, quando o Brasil registrou 755 mortes pela doença, o Ministério da Saúde chamou atenção para a alta de casos na região Sul. O Brasil é o segundo país do mundo com mais mortos por covid-19 (174.000) e o terceiro em casos (6,4 milhões).
Os contágios por covid-19 aumentaram tanto no Brasil ao longo de outubro que na segunda-feira a Organização Mundial da Saúde fez um chamado de atenção especial ao país. Pediu às autoridades que levem este repique “muito a sério”, porque os números são “muito preocupantes”. Outros aspectos causam inquietação nos especialistas: o Governo federal tem em estoque, prestes a caducarem, mais exames PCR do que já foram feitos em toda a rede pública deste o início da pandemia, e uma formidável batalha política está sendo gerada em torno da aprovação das vacinas, porque cada uma tem seu próprio padrinho político no Brasil. Não se trata apenas de imunizar a população, mas sim do potencial negócio de fabricá-la para o resto da América do Sul.
O Ministério de Saúde anunciou as linhas gerais do seu programa de imunização um dia antes de o Reino Unido se tornar, na quarta-feira, o primeiro país do mundo a autorizar uma vacina. Mas no Brasil o processo de autorização está marcado pela polarização que desde o primeiro momento atrapalha a gestão desta crise sanitária. Diante da falta de liderança do presidente Jair Bolsonaro, cada governador se virou como pôde, e alguns, como Doria, assinaram diretamente seus próprios acordos com os laboratórios, enquanto o país se transformava no campo de provas de quatro ensaios clínicos.
O Governo federal tem um acordo com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford para adquirir 100 milhões de doses (ou seja, quase metade da população, caso as doses sejam únicas), enquanto o Doria aposta tudo no composto desenvolvido pela Sinovac. Antes do carregamento desta quinta-feira, Doria havia recebido no mês passado as primeiras 120.000 doses, que ficaram à espera da conclusão dos ensaios clínicos e do processo de aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Simultaneamente, Bolsonaro semeia dúvidas com o argumento de que a vacina vem da China e proclama que ele não pretende se vacinar. Aos 65 anos, já teve a doença, sem sequelas.
Doria – governador do Estado mais rico, mais populoso e que mais mortes por covid-19 acumula – já havia expressado abertamente dias atrás o seu temor de que essa rivalidade tenha consequências: “Suspeitamos que Anvisa possa sofrer interferências políticas da presidência e poderia não agir com a independência que deveria”, disse ao jornal Metrópoles.
Enquanto Doria pressiona publicamente, os primeiros detalhes sobre como será a vacinação em nível nacional foram divulgados nesta terça-feira pelo Ministério da Saúde. A prioridade serão os profissionais da saúde, os maiores de 75 anos e os indígenas. Por se tratar de um país imenso e tropical, é importante para as autoridades que as vacinas do coronavírus se encaixem em sua cadeia de frio e possam ser conservadas por longos períodos em geladeiras comuns, a temperaturas de 2° C a 8° C. Esse requisito excluiria a vacina da Pfizer, que exige mais frio. O ministério trabalha no marco do já testadíssimo programa nacional de vacinação, que historicamente alcança altas taxas de cobertura – embora em queda por causa do avanço dos movimentos antivacinas.
Outro dos déficits brasileiros relevantes nesta crise sanitária é a escassez de exames realizados, o que resulta em uma subnotificação de casos, além deixar os gestores às cegas, incapazes de saber quem está doente e precisa ser isolado para interromper a cadeia de contágios. O mais novo capítulo na novela dos testes é que o ministério tem, parados em um armazém, sete milhões de kits que vencerão no mês que vem, conforme revelou o jornal O Estado de S.Paulo. Que sejam um milhão a mais que todos os exames PCR feitos até agora na rede pública dá uma medida do fiasco. E causou risos nas redes sociais que isso ocorra quando o ministro da Saúde é um general especialista em logística, que chegou ao cargo depois da destituição de dois médicos.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiEmbora a velocidade dos contágios tenha diminuído, permanece acima do chamado 1 em nível nacional, com as habituais diferenças regionais. Enquanto o Rio debate a retomada das aulas presenciais nas universidades, São Paulo anunciou no dia seguinte às eleições municipais que reduzirá a capacidade de público em bares e outros estabelecimentos.
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